BLACK SAMURAI (1977)

Um dos principais atrativos de BLACK SAMURAI, de Al Adamson, é a atuação sempre leve e saltitante de Jim Kelly, o Bruce Lee da Blaxploitation, que parece estar sempre em movimento, não só quando enfrenta seus adversário. O sujeito já tinha demonstrado uma certa classe e um ar cool desde sua estreia, em OPERAÇÃO DRAGÃO, e é bacana vê-lo mantendo seu estilo em todas as circunstâncias, mesmo num produto classe B, de orçamento risível, como este aqui.

Aliás, BLACK SAMURAI foi o primeiro de dois filmes que Kelly fez sob o comando de Adamson. O outro foi DEATH DIMENSION, lançado do ano seguinte. E o sujeito tá ótimo por lá também.

BLACK SAMURAI é um filme que se assiste com um certo prazer e que, apesar das aparências, não exige tanta indulgência especial para isso, sobretudo se você já for um aficcionado por tralhas cinematográficas do tipo “tão ruim que é bom“.

O filme começa meio morno, com uma perseguição meio lenta demais, uns bandidos liderados por Chavez (Roberto Contreras) a mando do ignóbil Janicot (Bill Roy), feiticeiro, traficante de escravos, traficante de drogas, e sei lá mais o quê, que estão atrás da jovem Toki Konuma (Essie Lin Chia), filha de um político influente. Conseguem captura-la. Depois, vem a exposição do herói jogando tênis, com o diretor seguindo a bola de um lado para o outro com sua câmera, sempre com um leve atraso…

Ai, ai, ai, é isso mesmo BLACK SAMURAI?” Pensa-se rapidamente com uma ansiedade apertando a garganta ao ver tanta motivação cinematográfica e planos/contra-planos laboriosos nos primeiros quinze minutos… Mas então, de repente, as coisas melhoram: Robert Sand (Jim Kelly) faz alguns movimentos de treinamento com a espada e o nunchaku diante da câmera antes de trabalhar sua respiração e mover seus músculos flexíveis quando, de repente, um anão aponta uma arma para ele e diz: “pena que os punhos não sejam tão rápidos quanto as balas, né?“. E a negação chega mais rápido do que o esperado, causando surpresa no agressor e alegria no público.

O filme se transforma numa série de cenas de ação intercaladas com alguns trechos de diálogos, umas festinhas de feitiçaria, uma ceninha de striptease, tudo isso em um clima descontraído, um festival de golpes a todo instante e um enredo desconexo e altamente improvável que, no fim das contas, quase ninguém se importa.

Porque afinal, o que se trata BLACK SAMURAIS? É muito simples: é a história desse agente secreto da Dragon (não me pergunte o que é isso), Robert Sand, lidando com a organização do feiticeiro/traficante de drogas/cafetão Janicot, que sequestrou sua namoradinha, a tal Toki, que, como disse, é filha de um político decidido a combater o tráfico de drogas. Sand precisa investigar e correr contra o tempo para salvar sua garota utilizando seu carro com apetrechos de agente da Dragon e outras parafernálias, o que gera uma série de lutas principalmente desarmadas, apesar do uso de algumas armas de fogo em alguns momentos.

Al Adamson claramente mira no nicho do subgênero Spy, filmes de James Bond (o carro “armado” e os gadgets do agente) e no de Bruce Lee (múltiplas lutas, presença de um Jim Kelly com uma agilidade que impressiona), sem esquecer o público negro, surfando na onda da Blaxploitation. O filme atira pra todo lado ao mesmo tempo, com o objetivo de ir o mais longe possível. O coquetel é improvável, poderia ter sido totalmente indigesto, mas até que é bem-sucedido, trazendo até mesmo uma leve embriaguez, mas sem as dores de cabeça, prova de que a mistura dos diferentes ingredientes é perfeita pra quem curte uma boa tralha.

Entre sequências sem pé nem cabeça (como a da mochila-foguete, ou a quantidade de anões que vão surgindo ao longo da trama), artifícios de roteiro que não enganam ninguém, cenários às vezes dignos de uma peça de teatro amador, uma filmagem às vezes relaxada, BLACK SAMURAI funciona e é bom de seguir. Rápido, simpático, Jim Kelly arrasta o espectador consigo, sem se preocupar muito com realismo, vagando pelos cenários toscos e indo de surpresa em surpresa, já que o filme, longe de ser totalmente previsível, muitas vezes não é de todo por falta de rigor no roteiro…

Enfim, se BLACK SAMURAI está longe de ser isento de defeitos, e isso é bem óbvio em se tratando de Al Adamson, mas muitas vezes esses defeitos lhe conferem um charme quase infantil, um espírito troncho das história em quadrinhos mais tronchas que existe o que torna tudo muito divertido.

OPERAÇÃO DRAGÃO (1973)

OPERAÇÃO DRAGÃO (Enter the Dragon) é um clássico e sobre isso eu não discuto. Sua influência no cinema de artes marciais no mundo todo é evidente. Mas eu sempre brinco dizendo que infelizmente foi logo este filme que se tornou um marco para Hollywood. “Não tinha outros filmes melhores não?” Na verdade, tinha. Existem um milhão de exemplares melhores do período que poderiam ter despertado esse “movimento”. Mas isso é só uma provocação boba. Eu amo OPERAÇÃO DRAGÃO e quero deixar isso bem claro, mesmo com suas falhas. E existe uma infinidade de coisas pra se apreciar aqui e que justificam seu status cult. A principal delas, é óbvio, a presença de um tal Bruce Lee como protagonista.

A história toda foi mais ou menos assim: em 1973, Bruce Lee já era um astro na Ásia, consequência feliz de sua, digamos, incapacidade de se destacar nos Estados Unidos (muita gente esquece que Lee era americano). Limitado à televisão com o seriado O BESOURO VERDE, afastado de um projeto que lhe era querido (a série KUNG FU, cujo papel principal foi dado a David Carradine), considerado “muito chinês” para os papeis que tentava nos EUA no fim dos anos 60… Enfim, Lee se refugiou em Hong Kong e deu início a carreira que conhecemos.

Depois de três filmes, percebendo a oportunidade que perderam, a Warner o chamou de volta para propor uma co-produção com a Golden Harvest, a produtora que o havia acolhido. O filme foi este aqui, OPERAÇÃO DRAGÃO, dirigido por Robert Clouse. Bruce Lee finalmente tinha a chance de conquistar o mercado americano, mesmo compartilhando os holofotes com John Saxon e o estreante Jim Kelly. Teve até carta branca pra cuidar das lutas e coreografias, ou seja, o coração do filme. Até mesmo sua filosofia de combate seria explorada, como por exemplo na sequência inicial, quando luta com um de seus aprendizes (um jovem Sammo Hung) e lhe passa alguns ensinamentos, da mesma forma com um garotinho logo depois… O filme é todo Bruce Lee na sua essência.

Mas aí veio a tragédia. Somado ao fato de que Bruce Lee morreu pouco antes do lançamento de OPERAÇÃO DRAGÃO, sua consagração não apenas como astro do cinema de artes marciais, mas como ícone da cultura pop mundial, ficou garantida. Assim como o sucesso do próprio filme.

Com todos os recursos à disposição, aproveitando a sinergia entre as equipes americana e de Hong Kong, OPERAÇÃO DRAGÃO foi a produção mais “profissional” da curta carreira de Bruce Lee como astro. Mesmo sendo no geral um filme com alma de B Movie, com pegada de história em quadrinhos, um filme de artes marciais com estrutura de James Bond, com uma pitada de blaxploitation… E por aí vai.

Na trama, que todos vocês já conhecem, Bruce Lee interpreta um agente chamado… Lee! Ele é contratado por uma agência de inteligência internacional para descobrir as atividades ilegais do Sr. Han, que patrocina uma competição de artes marciais numa ilha particular que usa como fachada para recrutar agentes para trabalhar no seu império das drogas e tráfico de mulheres.

Ao mesmo tempo, Lee tem outras questões pessoais para resolver na ilha do Sr. Han, já que capangas do vilão foram responsáveis pela morte da irmã do protagonista. Na sua jornada, Lee se junta a Roper (John Saxon) e Williams (Jim Kelly) para quebrar a cara de todo mundo no torneio, ter sua vingança e acabar com os esquemas da quadrilha do Sr. Han.

E é isso, basicamente. Um filme simples, uma trama excêntrica com personagens maneiros e com um bocado de pancadaria, cujo principal objetivo é divertir o seu público. Mas que de alguma forma se tornou um clássico. Bruce Lee esperava, a longo prazo, fazer filmes mais complexos, algo que inicialmente queria infundir já em JOGO DA MORTE, o filme seguinte, que Lee só filmou cerca de 25% e foi finalizado sem ele. Mas o sucesso do filme não exigia algo mais elaborado. Bastava a presença de Lee na tela, fazendo seus movimentos, que o público já estava hipnotizado.

OPERAÇÃO DRAGÃO também é interessante como fantasia estereotipada sobre esse herói não branco, algo que já era perceptível em filmes anteriores de Lee, sobretudo pelo seu jingoísmo, o nacionalismo antinipônico em FÚRIA DO DRAGÃO, ou do confronto contra a supremacia americana em O VÔO DO DRAGÃO, com o massacre de Chuck Norris no Coliseu, um símbolo ocidental. Quase se poderia considerar um ato político a arrancada de pelos no peito de Norris por parte de Lee… E aqui a coisa vai na mesma direção, desde o comportamento sóbrio e puro de Lee, em comparação com os seus amigos americanos (que não hesitam em se fartar de tudo que Sr. Han tem pra lhes oferecer), até a humilhação pra cima de mais um lutador ocidental, vivido por Bob Wall.

Agora a parte negativa. O principal problema de OPERAÇÃO DRAGÃO pra mim é o ritmo e o contraste entre as duas metades de projeção. É um filme que acaba praticamente sofrendo de dupla personalidade. A primeira hora foca mais na trama de espionagem, apresenta esse universo, personagens, que não deixa de ter seu fascínio de um modo geral, mas que ao mesmo tempo é um convite ao sono. Principalmente depois de rever tantas vezes, já acostumado com a história, percebe-se o peso narrativo. O Sr. Han mostrando suas dependências, e os setores de fabricação de droga, à Roper é um troço bem arrastado…

Claro, o arco com o Jim Kelly continua uma maravilha, o rapaz demonstrava porque foi considerado o Bruce Lee da Blaxpoitation – guardando as devidas proporções. E eu até gosto muito da traminha pulp de espionagem que temos aqui, mas só depois de passar um bom período de marasmo, conduzido com um ritmo bem caído, que o filme se transforma num exemplar de ação completo, com os últimos 40 minutos envolvendo Lee e a turma “do bem” numa pancadaria contra uma ilha inteira de bandidos.

Outro problema, que na verdade não é bem um problema, é algo que, pessoalmente, acho que tira um pouco a chance que o filme teria de ser ainda melhor, é o fato de que em OPERAÇÃO DRAGÃO o personagem de Bruce Lee é bom demais na porrada. E não tem ninguém que esteja no mesmo nível. Não só aqui, mas em qualquer filme que isso aconteça é algo que não curto. Perde um pouco a graça. Óbvio que é legal vê-lo esmurrando um exército inteiro de capangas, mas não vai ser uma salinha de espelhos ou lâminas no lugar da mão que vai te ajudar a derrotar o herói… No fim das contas, o personagem de Lee não tem páreo e derrota todos nessa sua jornada com uma facilidade quase frustrante.

Só não chega a ser realmente frustrante porque aí entra o trabalho do Robert Clouse, que tava muito inspirado quando filmou OPERAÇÃO DRAGÃO, e consegue entregar uma boa dose de cenas de pancadaria e do uso da imagem icônica de Bruce Lee como artista marcial. Há duas cenas de destaque: primeiro, na base do vilão, depois de se esgueirar pelos seus esconderijos, temos a luta (parcialmente em câmera lenta) de Lee sozinho contra uma horda de agressores (incluindo um jovem Jackie Chan) surgindo de todos os lados do quadro. É um deleite ver Bruce Lee no centro da tela a mover e desferir seus golpes, com seu momento nunchaku… Um clássico.

Pra quem não sabia, esse moço levando porrada do Bruce Lee é o Jackie Chan.

E depois no duelo final com o Sr. Han. Sei que já reclamei que o vilão final não é páreo para o herói, mas, nossa, ainda causa impacto o uso dos espelhos e a maneira como Clouse conduz essa surra toda. Tudo bem, Bruce Lee levas uns cortes. Passa o dedo na ferida, lambe, outro momento icônico… No fim das contas é isso que importa. A imagem cristalizada de Bruce Lee fazendo poses que se tornariam objeto de culto no imaginário pop. Todo o restante é secundário, exceto a partitura de Lalo Schiffrin sempre muito elegante. E claro, a presença de John Saxon, um ator que adoro e que tá ótimo aqui (apesar de não ser ligado ao gênero, o sujeito tinha background em artes marciais), Jim Kelly mostrando potencial, um jovem Bolo Yeung quebrando a espinha de um adversário, entre outras figuras do cinema popular de Hong Kong. Mas OPERAÇÃO DRAGÃO é Bruce Lee até o talo e não seria a mesma coisa sem ele.

Assim, quando o vilão é eliminado e os créditos finais começam a rolar, OPERAÇÃO DRAGÃO não deixa dúvidas dos motivos de seu sucesso, de ter sido repetidamente copiado pelo cinema de artes marciais nas décadas seguintes, sobretudo em Hollywood, tentando recriar a sua magia original mesmo que, como disse na abertura do texto, existam filmes muito melhores nessa mesma época. Em 2023 o filme completa 50 anos e continua uma sessão obrigatória de tempos em tempos.

Precisamos falar sobre JOHN WICK

Aproveitei o lançamento do quarto filme da franquia JOHN WICK, estrelada pelo Keanu Reeves, para rever a trilogia inicial. E como nunca escrevi nada sobre esses filmes por aqui, trago uns comentários que fiz durante os últimos dias no Letterboxd e Instagram, onde tenho sido mais atuante, por isso recomendo que sigam, se tiverem interesse, porque esse recinto aqui anda bem abandonado, e a correria dos tempos atuais quase me obriga a fazer comentários mais curtos nas outras redes, do que posts maiores por aqui.

DE VOLTA AO JOGO (John Wick, 2014), de Chad Stahelski e David Leitch

Acho massa lembrar que na época do lançamento muito pouco sobre JOHN WICK sugeria que a gente estaria prestes a assistir a um dos melhores filmes de ação daquele período. Mesmo com suas imperfeições, foi exatamente o que assistimos e o impacto foi grande, notável pela presença de Keanu Reeves numa performance física impressionante, em sequências espetaculares de tiroteios, lutas coreografadas com capricho, filmadas e editadas com maestria e com uma construção de universo envolvendo um peculiar submundo de assassinos, cheio de regras, que tornava tudo ainda mais fascinante.

E é de certa forma admirável constatar que o filme continua um dos grandes exemplares do gênero (em se tratando de Hollywood), passados praticamente dez anos, mesmo que as suas próprias continuações tenham lhe superado. O que só engrandece essa franquia que eu tanto adoro.

Vou me estender um pouco mais nesse primeiro filme, só pra introduzir algumas premissas caso alguém tenha essa falha de não ter visto o filme ainda e porque acredito que preciso declarar meu amor a esse personagem incrível, que atende pelo nome/título de John Wick (Reeves), capaz de matar cem homens sob o pretexto de que tiraram a vida de seu adorável cachorrinho. Um beagle irresistível. Aquele que sua esposa havia deixado pra ele após sua morte como um presente póstumo. A única coisa que restava dela. A única coisa que o manteve em uma vida normal, longe de um passado carregado de morte e violência. Uma existência de paz que ele escolheu depois de muitos anos trabalhando como assassino contratado para organizações mafiosas. John Wick foi apelidado de “Baba Yaga“, algo que traduziram como o bicho-papão – embora possam dizer também que ele é a pessoa que chamariam para matar o bicho-papão. Temido por todos, ele era o assassino mais eficaz. Quando um chefão russo (Michael Nyqvist) descobre que seu filho roubou o Mustang e matou o cachorro de John, ele sabe o que está por vir. Ele sabe que seu filho despertou uma fera capaz de tudo.

É isso, simples, direto, não perde muito tempo com bobagens. E quando menos se espera, estamos diante de sequências de ação de cair o queixo. Até porque é sobre isso o filme. A trama é só um pretexto para uma sucessão de cenas de tiro, porrada e bomba. A ação – e a estética da ação – é que fala mais alto. Uma essência que vai ganhando uma proporção cada vez maior a cada continuação…

Melhor sequência de ação: A da casa noturna, Red Circle, ainda impera. É um bom exemplo da maestria dos diretores, David Leitch e Chad Stahelski, um balé de corpos, balas, golpes e violência combinado à batida da trilha sonora, à uma noção de espaço precisa, num cenário belissimamente iluminado, com trabalho de câmera refinado ao mesmo tempo nervoso, brutal, uma sequência que já nasceu clássica e dá o tom do nível da ação que estamos diante (e era difícil na época imaginar que os realizadores conseguiriam fazer coisas ainda melhores em possíveis continuações). E é onde podemos ver Keanu Reeves encarando o grande Daniel Bernhardt, um ator de ação B dos anos 90 que sempre que aparece nessas produções atuais eu abro um sorriso. Também ajuda muito, nesta sequência da casa noturna, que esta seja a primeira demonstração real do por que John Wick é um assassino tão lendário e temido, aumentando seu impacto. A sequência anterior, o ataque à casa de John, é bem boa, mas dá só um gostinho das habilidades do homem. Aqui não. Aqui John Wick convence que realmente poderia matar cem homens sozinho se precisasse.

Um adendo sobre os diretores: acho legal notar os rumos que tomaram depois deste primeiro filme. Stahelski ainda se manteve fiel ao universo JOHN WICK. Dirigiu sozinho os três capítulos seguintes e provavelmente vai continuar nos próximos (se tiver). Há alguns anos anunciaram uma refilmagem do clássico oitentista HIGHLANDER comandada por ele. Vamos ver se sai… Já Leitch seguiu um caminho diferente como diretor (ele ainda tá na produção de todos os JOHN WICK), se meteu em outras franquias, como VELOZES E FURIOSOS: HOBBS AND SHAW (19) e DEADPOOL 2 (18), e tentou desenvolver seu próprio universo em filmes com um certo autorismo, como ATOMIC BLONDE (17) e BULLET TRAIN (22), sem os mesmos resultados deste seu primeiro trabalho aqui, embora eu tenha simpatia em algum nível por todos esse filmes dele.

JOHN WICK: UM NOVO DIA PARA MATAR (John Wick: Chapter 2, 2017), de Chad Stahelski

A rapaziada realmente levou à sério a lógica das continuações: maior, melhor e MAIS, tudo MAIS, MAIS… Sobretudo quando se trata de ação e da expansão desse universo, nota-se algo bem mais complexo do que um simples submundo de assassinos, envolvendo grandes corporações criminosas, o que inclui mais regras, mais acessos exclusivos a quem está abaixo dessa sociedade. Literalmente um mundo que se expande ainda mais.

E acredito que diz muito sobre o seu nível de consciência cinematográfica quando você começa o seu filme de ação projetando imagens de Buster Keaton na tela fazendo algum de seus stunts malucos no mesmo plano em que tá rolando uma puta perseguição de carro/moto… Não é a toa que o que se segue a partir daí não é apenas um dos melhores filmes de ação dos últimos anos, mas também um filme que pensa a ação, a estética da ação, de uma forma muito peculiar. Não é a toa que o diretor disso aqui seja Chad Stahelski. Enfim, este segundo filme já é uma obra-prima do gênero.

Melhor sequência de ação: Tem pelo menos umas quatro sequências aqui dignas de antologia, mas se eu tivesse que escolher apenas uma, acho que a última, no museu e sobretudo na sala dos espelhos, seria a escolhida, acho uma das experiências mais imersivas e cinéticas que tive numa sala de cinema (e que continua bem forte na TV, na revisão), além de ser outra prova da consciência de cinema do Stahelski… Clímax com espelhos já se tornou clássico, desde Orson Welles à Bruce Lee. E aqui é tão mágico quanto.

JOHN WICK: PARABELLUM (2019), de Chad Stahelski

É um filme que além de conseguir ser mais épico em sequências de ação, consegue também tirar umas abordagens mais filosóficas e psicológicas desse universo todo e da essência do seu protagonista, embora a narrativa se mantenha cristalina na sua simplicidade. Frequentemente fala-se sobre “consequência” neste terceiro filme, sobre a epifania que surge em John Wick de que sua aptidão em matar, seus instintos assassinos, tem um impacto crucial em sua alma, sem falar nas almas de muitos outros envolvidos, embora possamos admitir que para algumas pessoas seus destinos são irrevogáveis, obviamente. Se John Wick é o Baba Yaga, então seu destino está definido. Agora, se é um homem, então ele sempre tem uma escolha. Pra nossa sorte, suas escolhas até agora têm levado a um derramamento de sangue impressionante, um imersivo festival de sequências de ação realizadas pelos caras que mais entendem e respeitam o gênero na atualidade em Hollywood. E por aqui temos John Wick cavalgando enquanto luta contra motoqueiros em alta velocidade, combates de facas violentíssimos, tiroteios deflagradores, ataques de cães, Mark Dacascos e seus capangas dando um puta trabalho pro nosso herói… E Raramente uma carnificina é filmada com tanta elegância, com um visual tão cuidadosamente elaborado, cheio de luzes bonitas. É o perfeito o encontro da high-art com a vulgaridade da ação. Uma combinação que pra mim resulta no que existe de mais sublime no cinema, e que me faz amar tanto o gênero.

E convenhamos que não é tarefa muito fácil fazer continuações que se igualam ao nível de um filme antecessor, mas Keanu Reeves, Chad Stahelski e toda a turma responsável por isso aqui conseguiram duas vezes com sucesso.

Melhor sequência de ação: Eu fico na dúvida entre a sequência da Halle Berry com os cachorros, que é um primor de coreografia, além de ser muito divertida, mas definitivamente o tiroteio final com aquele exército invadindo o Hotel Continental praticamente de armadura é a que gosto mais, um troço tenso e enervante. E tem a participação do falecido Lance Reddick, usando uma shotgun que faz um belo estrago.

JOHN WICK 4: BABA YAGA (John Wick: Chapter 4, 2023), de Chad Stahelski

E aí depois de tudo isso, fui assistir ao novo no cinema. Só tenho a dizer o seguinte: se a coisa terminar por aqui e este for o último filme da série, já teremos uma das franquias de ação mais extraordinárias deste século… Em termos de ação, de GRAMÁTICA DA AÇÃO, pouca coisa se compara com esses quatro singelos exemplares impecáveis de tiro na cara, perseguições alucinantes e lutas, lutas de todo tipo, com punhos livres, facas e outros objetos cortantes, até um lápis… E BABA YAGA veio pra coroar a grandeza de tudo que envolve John Wick como cinema, como personagem, como universo, como narrativa e estética de filme de ação. É uma belezura. Ou posso apenas estar empolgado momentaneamente, mas acho difícil…

Aqui, os dois primeiros atos são, em grande parte, mais do mesmo. O que não é de forma alguma algo negativo, pois o mais do mesmo em JOHN WICK é muito bom, com alguns momentos geniais: tudo que envolve a participação de Scott Adkins, por exemplo, que tá brilhante aqui. Monstro! Donnie Yen, Sanada, Mark Zaror, Bill Skarsgård, Clancy Brown, Ian McShane, Lance Reddick (RIP), Laurence Fishburne… Baita elenco e estão todos ótimos. Keanu Reeves nem preciso mencionar, o sujeito é uma força da natureza.

Mas aí vem aquele terceiro ato… E aqui entra “Melhor sequência de ação:” deste novo filme.  O arco do triunfo; a homenagem à THE WARRIORS; Paint It Black; o plano sequência com a câmera no alto, digna de um Brian De Palma, acompanhando John Wick por cômodos numa casa abandonada, tocando o terror com uma arma que cospe fogo, literalmente; a escadaria da Basílica de Sacré Cœur… O que temos aqui é simplesmente algumas das sequências de ação das mais absurdas colocadas num filme de estúdio hollywoodiano. Neste momento, não tenho dúvidas em apontar que Chad Stahelski é o principal nome do gênero na atualidade.

Só posso dizer que é um grande dia para ser fã de filmes de ação.

TREM-BALA (2022)

por LUIZ CAMPOS

Este texto contém spoilers.

Muito se diz de que filmes com grandes elencos que envolvem vários personagens do submundo, de pequenos criminosos a grandes chefões, bebam diretamente do QuentinTarantino. Se levarmos em consideração CÃES DE ALUGUEL, PULP FICTION e mesmo parte do KILL BILL, é verdade, ao menos até certo ponto. Existe um outro diretor que penso eu ter tido pelo menos tanta influência quanto o “Queixada” para a fetichização desse universo, se não tiver tido ainda mais: Guy Ritchie, o ex-senhor Madonna, que atualmente está sempre com ternos bem cortados até mesmo quando vai pro banho, aparentemente. Figura oriunda da publicidade, Ritchie levou as histórias de gangsters, recheadas de humor ácido e tragédia para novos patamares, tanto no texto quanto na estética. Inclusive podemos afirmar sem receio que o mundo do crime é muito mais objeto do seu fascínio do que do Tarantino, tendo em vista que metade de sua filmografia lida diretamente com o assunto, e alguns outros, como os dois Sherlock Holmes e sua versão de Rei Arthur, são populados por essas figuras literalmente marginais. Então, se formos chamar TREM-BALA (Bullet Train), de derivativo, eu diria que ele deve mais aos bandidos do Ritchie do que os do Tarantino. E se o próprio diretor David Leitch disser que estou errado, recomendo ao mesmo rever SNATCH, ROCKNROLLA e REVOLVER e comparar com o que ele fez neste aqui.

Pra quem não tá sabendo do que se trata, uma breve sinopse: um grupo de assassinos está em um trem-bala, cada um com uma missão, mas ao longo da noite seus caminhos e missões irão se entrecruzar, gerando situações cômicas e sangrentas.

É muito curioso quando você entende porque determinado filme é odiado ou adorado. Neste aqui, por exemplo, eu consigo ver claramente o porquê do filme dividir tanto opiniões: David Leitch decidiu explorar com ainda mais força a comédia, e embora eu particularmente ache seus filmes engraçados na maior parte do tempo, ele abraça muito daquele cinismo auto-consciente que tomou conta de Hollywood nos últimos 10 anos.

Fora a decepção de muitos de ver um dos melhores coordenadores de ação de Hollywood investindo tão pouco da sua técnica para o desenvolvimento de momentos gloriosos de ação, como seu sócio Chad Stahelski faz na franquia JOHN WICK. Eu gosto muito de todas as cenas de ação, embora me pareça que o coração do Leitch está bem mais na história e nos personagens, e acho que ele foi feliz pela maioria de escolhas que tomou quanto a isso. E eu tenho a impressão que a maior piada de todas – e a que certamente me fez rir bastante – foi perceber que Brad Pitt, na trama, está substituindo o Ryan Reynolds, sendo que a personalidade do protagonista é a mesma de todos os filmes do Reynolds desde o primeiro DEADPOOL. Cabe dizer que Pitt fez ele mesmo uma breve participação em DEADPOOL 2, numa das melhores piadas do filme.

Aliás, eu consigo notar aqui o surgimento de um diretor autorreferente: as pontas feitas por figuras com quem já trabalhou – a Zazie Beets também fez DEADPOOL 2, assim como Ryan Reynolds Hiroyuki Sanada em WOLVERINE – IMORTAL, onde Leitch trabalhou como diretor de segunda unidade; Channing Tatum, quando foi coordenador de dublês em O DESTINO DE JÚPITER; além do diretor ter sido dublê do Brad Pitt no passado; a questão da sorte/má sorte vai gerar a cena do Brad Pitt sobrevivendo a colisão do trem da mesmíssima forma como funcionavam os poderes da Beets no já citado DEADPOOL 2; o Pitt utiliza livros, bandejas, laptops como JOHN WICK; tem cenas com capangas no topo do trem-bala que remetem diretamente a WOLVERINE – IMORTAL; uma trama repleta de assassinos e mafiosos, representando um mundo à parte do nosso, tal qual JOHN WICK. Eu sinto que existe, no fundo, um subtexto que critica o sistema de trabalho de Hollywood, onde homens e mulheres literalmente dão o seu sangue e correm riscos por gente metida que recebe dinheiro demais e não se importa, mas isso provavelmente sou eu lendo demais o filme.

O que acredito ser o problema maior de TREM-BALA é que esse citado cinismo do humor do Leitch acaba sabotando o que o filme tem de melhor, que é a presença dessas figuras marginais em situações crescentemente mais absurdas e, de certa forma, até trágicas. A necessidade da piada arrebenta com o peso da subtrama do Andrew Koji – um talento, aliás, desperdiçado aqui -, com algumas das perdas, como a do assassino Limão, vivido por um inspirado Aaron Taylor-Johnson, e principalmente com a figura do misterioso Morte Branca (Michael Shannon), que chega ao fim do filme menos como a encarnação do mal e mais como uma caricatura.

O filme tinha potencial para terminar em um intenso embate entre esses peões e o grande rei que domina todo esse tabuleiro de xadrez, mas a necessidade de fazer o espectador supostamente rir implode isso. Ele também acaba tendo seu maior ápice emocional muito antes do arco final, o mesmíssimo erro que Leitch cometeu em HOBBS & SHAW. Ainda teremos muita coisa boa acontecendo, assim como no filme do The Rock com o Jason Statham, mas parece que Leitch ainda não entende porque um de seus heróis do cinema, Jackie Chan, dá o seu máximo nos últimos 30 minutos de duração.

Ainda que o filme termine com um extenso – e engraçado – set piece, a verdade é que já chegamos ao fim como convidados para uma festa que está se estendendo um pouco mais do que devia. Mas, se formos citar o lado positivo, temos o já mencionado Aaron Taylor-Johnson em estado de graça, dividindo vários momentos com um também inspirado Brian Tyree Henry, o Brad Pitt também se garante como o desajeitado “Joaninha”, que divide também excelentes diálogos com seu contato, vivido – descobriremos depois – pela Sandra Bullock, e também gostei muito da Joey King como a insidiosa Príncipe, se afastando com força de sua persona teen dos filmes da Netflix.

Leitch sempre trabalhou muito bem com cores e blocagem, e aqui temos mais uma parceria bem sucedida sua com o diretor de fotografia Jonathan Sela. Nada daquelas cores mortas ou de câmera tremida, já que o homem também chamou novamente a competente Elísabet Ronaldsdóttir para editar o filme. Para cuidar da ação, o homem chamou sua rapaziada da 87eleven, então temos aqui um nível de qualidade só rivalizado pelas equipes da Ásia.

No fim, assim como Ritchie, Leitch se mostra um artesão com talento, mas sem uma noção clara de quais são os seus pontos fortes e fracos. Vem se mostrando um autor – sim, definitivamente um autor – com uma abordagem muito particular, mas que, assim como o ex-senhor Ciccone, deve ter uma carreira recheada de filmes interessantes, mas que vão fascinar e alienar a audiência na mesma proporção com frequência. Tendo dito isto, se Guy Ritchie fez ALADDIN, quero O Corcunda de Notre Dame dirigido pelo David Leitch, assim como uma releitura do Arsène Lupin.

O SUPER-HOMEM ATÔMICO (1975)

Uma das bobagens mais divertidas que vi nos últimos dias foi esse O SUPER-HOMEM ATÔMICO (The Inframan ou The Super Inframan), uma prova de que nem só os japoneses sabiam fazer Tokusatsus autênticos. A tradição pode até ser dos japoneses, que em meados dos anos 70 estavam fazendo sucesso com esse tipo de material, filmes e seriados de ficção científica povoados por super-heróis, monstros e muitos efeitos especiais, mas os chineses tentaram demonstrar que um estúdio de Hong Kong – no caso deste aqui foi ninguém menos que a rapaziada da Shaw Brothers – também poderia se sair bem… E deu muito certo.

Na trama, a Terra foi invadida por uma variedade de monstros coloridos, liderados por uma tal princesa Elzebub. Essas criaturas podem ter vindo do espaço sideral, mas os cientistas acreditam na possibilidades de serem indivíduos que viveram aqui na Terra mesmo antes da última Idade do Gelo, vinte milhões de anos atrás. Mas isso pouco importa… O que vale mesmo é que os monstros causam o terror por aqui.

Felizmente a Terra não está sem esperança, pois um cientista tem trabalhado por um bom tempo num projeto chamado Inframan, que consiste numa espécie de homem biônico, que terá superpoderes incríveis e será páreo para qualquer monstro. Um dos assistentes do cientista, Rayma (Danny Lee, um dos protagonistas de THE KILLER, do John Woo), é o escolhido para se tornar o Inframan!

Os monstros tentam sabotar o laboratório de qualquer jeito. Sequestraram um dos assistentes do cientista e o transforma em uma espécie de zumbi. Isso dá aos monstros um aliado dentro do próprio laboratório secreto onde está o projeto Inframan. As coisas ficam ainda piores quando a filha do cientista também é sequestrada pelos monstros. E apenas Inframan pode salvá-los.

E aí, O SUPER-HOMEM ATÔMICO é ação praticamente ininterrupta e pancadaria até o fim. E, claro, com direito à muito kung fu, já que estamos num Tokusatsu made in Hong Kong. Há muitos lasers, explosões, perseguições, os monstros podem de repente ficar gigantescos, assim como o Inframan também pode, sem qualquer tipo de satisfação ao espectador. O tipo de filme que possui todos os elementos pra agradar o seu público. O visual dos monstros são bregas, com trajes de borracha, mas adoráveis. Os efeitos especiais são datados, mas são extremamente bem feitos para o período. E os vários cenários onde a trama e as batalhas se passam são perfeitos pro tipo de filme que temos aqui.

O diretor Shan Hua mantém o clima leve e a ação rolando solta. Não é o tipo de obra que faz grandes exigências aos atores, mas dá pra perceber que o elenco pegou o espírito da coisa. A atuação pode não ser sensacional, mas é enérgica. Destaque para um certo coadjuvante chamado Bruce Le (último frame acima), que é um dos principais nomes da Brucesploitation.

O resultado final de O SUPER-HOMEM ATÔMICO é uma mistura fascinante e divertida do espetáculo que a Shaw Brothers sabia proporcionar com a bobagem de filmes de monstros japoneses que fizeram a cabeça da molecada na TV dos anos 70 e 80. Vale uma conferida.

FORÇA CRUEL (1982)

Por trás de um título nacional meio genérico como FORÇA CRUEL (Raw Force) esconde-se uma pequena preciosidade do cinema exploitation americano-filipino oitentista que precisa urgentemente ser redescoberto. Na verdade, tenho certeza que todos vocês já, no mínimo, ouviram falar ou leram sobre esse petardo. Se não, agora é a hora. E não se preocupem, podem acusar o filme de qualquer coisa, mas genérico é algo que ele não é.

Na trama, um grupo de praticantes de artes marciais embarca numa aventura num pequeno cruzeiro pelo Pacífico, pros lados das Filipinas, que promete ser, digamos, muito agradável. A começar pelo capitão da embarcação ser interpretado por ninguém menos que Cameron Mitchell.

Exibições de artes marciais, uma paradinha na cidade pra compras, bar de striptease, bordéis e uma festinha em alto mar cheia de moças de topless são alguns atrativos. O básico de um bom cinema de exploração. Mas um dos principais destaques desse passeio é visitar uma tal Ilha do Guerreiro, que dizem ser local sagrado, onde grandes mestres das artes marciais estão enterrados. Só alegria.

Outra atividade local é ser um ponto de operação de tráfico de mulheres em troca de pedras de jade entre um sujeito com bigodinho de Hitler – e seus capangas motoqueiros nazistas – com uma ordem de monges canibais que acredita ter o poder de ressuscitar os mortos ao comerem carne das jovens.

Eventualmente, toda essa rapaziada acaba na Ilha do Guerreiro, onde acontece uma batalha envolvendo os turistas das artes marciais, os traficantes nazistas de mulheres, os monges canibais e até os zumbis guerreiros que estavam enterrados ali e que ganharam vida novamente…

Sim, FORÇA CRUEL é tão bom que parece uma produção do Roger Corman ou dirigido pelo mestre do cinema grindhouse filipino Cirio H. Santiago.

Mas essa impressão tem força sobretudo pela presença de atores como Vic Diaz, que tá em quase tudo que o Cirio H. Santiago fez, e Jillian Kesner, que estrelou o clássico FIRECRACKER, que comentei por aqui há um tempinho. No entanto, FORÇA CRUEL não tem nada de Cirio nem do Corman (exceto por algumas imagens de arquivos das paisagens filipinas que a New World Pictures, do Corman, forneceu para esta produção), mas pra quem espera encontrar uma série de elementos típicos do cinema de exploração filipino que esses caras faziam nesse período, numa trama que só serve a este pretexto, o diretor estreante Edward Murphy nos entrega tudo particularmente bem.

Um monte de coisa bizarra tá incluída no cardápio como podem ter notado na sinopse. É até difícil listar a quantidade de absurdos; e mesmo sendo um filme que não necessariamente brilha por sua coerência narrativa, sabe trabalhar os elementos que agradam o seu público específico. E o essencial: com um ritmo que nunca diminui. Uma verdadeira metralhadora dos ingredientes do cinema grindhouse, com a total negligência assumida por um realizador que sabe muito bem que o seu filme não é uma obra-prima.

Mas é quase lá, dependendo do seu bom gosto pra cinema.

Tudo é realmente pensado para deixar as coisas boas que o cinema de exploração tem a nos oferecer. E, o melhor, com humor, sem se levar muito à sério – basta a longa sequência da festinha no barco, que tem o tom das melhores comédias oitentistas, cheia de personagens e situações cômicas pra gerar boas risadas – mas sem nunca tentar parecer um filme bobo. É tudo bem consciente, bem escrito… Er… “Bem escrito” é uma expressão forte, mas tudo funciona tão bem…

Até teria sido fácil tentar fazer uma espécie de autoparódia de, sei lá, filmes de artes marciais em ilhas exóticas. Mas paródias são geralmente muito menos divertidas da coisa real, consciente, que é o que temos em FORÇA CRUEL. Existe uma linha tênue entre maluquice e estupidez, e Edward Murphy é um maluco de primeira linha. O filme inteiro é uma coleção de momentos genuínos de humor, com diálogos que são autênticas pérolas, várias situações com um toque de comédia involuntária, tudo misturado a instantes absurdos de violência e gente pelada. E é o que torna isso aqui simplesmente mágico.

No quesito ação, temos MUITAS sequências de pancadaria, que são decentes até certo ponto. As pessoas lutam em todo lugar – clubes de striptease, cemitérios, barcos – você escolhe. A parte do ataque à embarcação, logo depois da festinha, é bem divertida, tem até alguma coreografia e certa criatividade, é uma das melhores do filme, com destaque para a sequência que uma moça completamente nua está amarrada numa cama, num quarto apertado, enquanto rola uma pancadaria à sua volta.

A ação que acontece no cemitério, já na tal ilha, é outro petardo dentro do filme, cheia de momentos notáveis. E, claro, a ação final, quando os zumbis samurais, ninjas e guerreiros de todas as espécies pintados de cinza aparecem pra dar trabalho para os nossos heróis fecha o filme lá em cima, com chave de ouro. É tudo muito doido, mas que faz valer a experiência de assistir algo único como FORÇA CRUEL.

Temos um elenco divertido para apreciar. Um monte de gente que não conheço, mas que parecem estar se divertindo; temos a já citada Jillian Kesner, que é boa de porrada… Mas nada se compara com o grande Cameron Mitchell marcando presença bem mais que o habitual nesse período, mostrando todo seu entusiasmo, claramente embriagado em todas as cenas que aparece. O grande Vic Diaz também se destaca como monge malvado. E por ser um monge malvado ele ri muito. Por quê? Não faço a menor ideia, mas toda vez que ele faz isso é fantástico. E Ralph Lombardi tá bem engraçado como o Hitler fake, com seu terno branco, sotaque ruim e o olho trêmulo sequestrando mulheres filipinas nuas…

Sem grandes arcos dramáticos, redenções, estudos sociais, filosóficos, psicológicos, contextos políticos… FORÇA CRUEL é apenas uma bagunça majestosa em forma de filme. Quero dizer, é uma obra que apenas joga tudo o que é possível no liquidificador e o resultado é fascinante, um épico do mau gosto cinematográfico que funciona lindamente para paladares finos que apreciam cinema exploitation. Só faltou uns robôs, alienígenas e vampiros saltitantes.

Obviamente FORÇA CRUEL não é recomendável ao cinéfilo brioche que só assiste Truffaut e Bergman… Mas os apreciadores de uma tralha vão aproveitar este festival de nudez, violência e várias bobagens que ele proporciona. O único problema grave é que o filme termina com um letreiro dizendo que teria uma continuação. nunca aconteceu, o que é uma pena…

THE BLADE (1995)

Tsui Hark tem uma filmografia das mais fodas que eu conheço. Longa e cheia de maravilhas. Mas acredito que, dentre tudo que realizou, nada se compare a THE BLADE. Era uma impressão que eu já tinha quando assisti há uns 15 anos e que se confirma agora. Mas é curioso revisitá-lo depois de tanto tempo. Quando vi pela primeira vez eu ainda estava tateando o cinema de artes marciais de Hong Kong, não tinha ideia de suas possibilidades e pelo que lembro nunca tinha visto nada do Hark (a não ser os filmes que ele fez com o Van Damne). Mas já havia achado uma lindeza.

Agora, com um bocado mais de bagagem, me impressiona como é um filme capaz de devastar com as expectativas, com suas imagens de selvageria poética em sequências de ação espetaculares flertando com o experimental. Foi como se estivesse assistindo pela primeira vez. Sim, continua uma obra-prima e representa o auge da habilidade de Tsui Hark como diretor.

THE BLADE chegou no final de um ciclo de filmes de artes marciais que o próprio Tsui Hark havia contribuído, com THE SWORDSMAN em 1990. A maioria dessas obras eram basicamente remakes de clássicos da Shaw Brothers dos anos 1960 e 70 (este aqui mesmo é uma releitura de THE ONE-ARMED SWORDSMAN, do Chang Cheh, que é maravilhoso e ainda quero comentar por aqui), mas infundidos com técnicas avançadas de wirework (as cordinhas que os atores ficam pendurados em cenas de ação), que não eram possíveis vinte ou trinta anos antes, e muitas vezes apresentando acrobacias bem mais exigentes fisicamente, além de proficiência em artes marciais de nomes como Donnie Yen e Jet Li.

Dezenas de filmes de espadachim/fantasia (também conhecidos como Wuxia) inundaram os cinemas mostrando muita energia e criatividade de cineastas experientes que pareciam estar correndo contra o tempo para filmar o máximo possível antes da transferência de Hong Kong para a China em 1997, quando se pensava que a pesada regulamentação governamental da indústria cinematográfica começaria. No entanto, por volta de 1995, depois de uma leva de criatividade, as ideias para o gênero finalmente pareciam estar se esgotando.

Mas aí veio THE BLADE, com um novo sopro de criatividade, demonstrando que ainda era possível realizar algo com um toque de genialidade… Em retrospecto, THE BLADE é um trabalho visionário que lança o gênero em um mundo mais tátil de ação visceral e distante do conceito do guerreiro nobre vestido de branco que povoou os primeiros clássicos Wuxia. Só pra ter uma noção, o filme abre com um grupo de bandidos numa paisagem árida e decrépita observando um cachorro ser decapitado numa armadilha de urso… Até mesmo os épicos de kung fu de Hark de alguns anos antes, como ERA UMA VEZ NA CHINA, acabam parecendo paraísos idílicos de frivolidade em contraste com este aqui.

Principalmente na ação, THE BLADE é um troço absurdamente ousado… A câmera quase joga o espectador dentro das lutas, sempre colada no olho do furacão da ação e até mesmo presa a corpos e objetos enquanto eles rolam, saltam, lutam, tudo atrelado a uma edição rápida, movimentos de câmera frenéticos, coreografia feroz e composições repletas de ritmo, textura e detalhes.

Tudo é um turbilhão de imagens desorientadoras e movimentos acelerados em que Hark equilibra com os cenários quase sempre filmados em ângulos oblíquos. Na real, isso aqui vira praticamente cinema experimental, com planos abstratos, borrões formados por corpos, espaços e movimentos numa edição super agressiva… E o público tem que ser ágil para acompanhar tudo que acontece na tela. Não dá pra piscar. Mas a experiência de ver um dos melhores diretores de ação do mundo no seu auge é algo indescritivelmente extasiante.

Fortes personagens femininas é uma das coisas que não faltam no cinema de Hark. THE BLADE é narrado por Ling (Sonny Song), que dá um toque lírico ao típico enredo de vingança, cujo resultado poderia sair qualquer coisa mais tradicional, mas que ganha força com uma subtrama própria que mostra como as mulheres tentam se encontrar em um mundo dominado pela agressão masculina. Ling é filha de um mestre fabricante de espadas que brinca com os afetos de dois empregados de seu pai em uma cidade fronteiriça no árido território ocidental da China.

Um deles é Ting On-man (Vincent Zhao) que é o escolhido para ser o sucessor do mestre na fábrica, o que lhe atrai muita desconfiança, até de seu melhor amigo Iron Head (Moses Chan), que é o outro interesse romântico de Ling. Mas On-man tem uma jornada própria de vingança à seguir depois de descobrir a verdade sobre o seu passado e sobre a morte do seu pai.

A coisa esquenta mesmo quando On-man, Iron Head e outros trabalhadores da fábrica de lâminas são levados a um confronto sangrento com bandidos saqueadores que mataram de forma brutal um monge, numa sequência espetacular de movimentos de câmera e sons de ossos quebrados. O monge grandalhão consegue lidar facilmente com um número maior de bandidos, mas eles lutam sujo e o emboscam com as tais armadilhas de urso.

Armas que entram em jogo novamente numa das melhores sequências do filme, quando On-man enfrenta os bandidos sozinhos no acampamento de bambus, e que acaba com o protagonista dominado enquanto tenta salvar Ling. É aqui que ele perde o braço direito depois que fica preso em uma dessas armadilhas.

On-man consegue fugir e acaba cuidado por uma jovem órfã que vive numa casa isolada. Considerado morto pelos colegas, o rapaz tenta encontrar uma nova vida suportando todo o tipo de desprezo. Ele inicialmente enterra a espada quebrada (à qual o título se refere) deixada por seu pai. Mas ao encontrar um manual de kung fu, ele começa a treinar um estilo inusitado no qual adapta para lutar com um braço só, aperfeiçoando um ataque giratório e saltitante, aumentado por uma corrente que ele prende à lâmina quebrada para chicotear os adversários.

On-man eventualmente volta sua atenção para encontrar Flying Dragon (Hung Yan-yan), o homem todo tatuado que matou seu pai e que agora ameaça a fábrica de espadas de seu antigo mestre. O confronto feroz de On-man com Flying Dragon no final do filme é de tirar o fôlego, uma das mais brutais lutas de espadas da história do cinema.

Vale destacar que o design de produção de THE BLADE é de William Chang, colaborador de Wong Kar-Wai, que havia feito o seu Wuxia um ano antes, ASHES OF TIME (1994). E é impossível não notar algumas similaridades visuais. O trabalho de Chang aqui é de encher os olhos, tudo é ricamente detalhado pra criar um universo sujo, apodrecido e visceral. Os personagens não voam como de costume no mundo marcial tradicional do Wuxia, e em vez disso eles têm os dois pés plantados na lama e seu vôo é substituído por saltos giratórios e uma velocidade absurda, quase sobrenatural, que é ainda mais inspiradora pelo atletismo que exige. E nesse sentido, Vincent Zhao impressiona. Ator subestimado, apareceu tarde demais para se beneficiar totalmente do boom do cinema de kung fu. Dá pra encontrar coisas boas protagonizadas por ele, mas geralmente seus filmes são inferiores em comparação com um Donnie Yen, Jet Li, Jackie Chan, etc… Mas pelo menos, o cara tem THE BLADE no currículo, simplesmente um dos melhores filmes que Hong Kong já produziu.

O casamento perfeito da ação clássica das artes marciais com uma perspectiva moderna, experimental e desconstrucionista do gênero, e ainda assim, Hark tenta agradar um público mais amplo. Mesmo com a direção ousada, THE BLADE contempla a própria essência dos filmes de espadachim no que há de mais popular. É nesse equilíbrio entre poesia e selvageria, arte e diversão, que Hark sustenta perfeitamente o seu cinema. Obrigatório não apenas aos apreciadores de filmes de artes marciais, mas também pra quem ama cinema de uma forma geral.

THE STREETFIGHTER (1974)

Morreu Sonny Chiba, um dos maiores astros do cinema de gênero. Aproveito para republicar esse textinho que escrevi na época para o finado Action News sobre o clássico cult japonês THE STREETFIGHTER, de Shigehiro Ozawa, um dos meus filmes de artes marciais de cabeceira. Na ocasião, tinha acabado de rever na tela grande, numa mostra de cinema de Kung Fu que rolou em São Paulo, em 2017. Me senti como Christian Slater levando Patricia Arquette ao cinema em TRUE ROMANCE, de Tony Scott. Mas sem a Patricia Arquette…

Quando o filme começa, somos apresentados a Takuma Tsurugi (Chiba) se passando de monge budista dentro de uma prisão, para fazer um agrado a um prisioneiro condenado no corredor da morte, chamado Tateki Shikenbaru (Masashi Ishibashi). Tsurugi é um dos anti-heróis mais infames e desprezíveis da história dos filmes de luta! E Shikenbaru sente o cheiro de sujeira, percebe que Tsurugi é qualquer coisa, menos um monge, e já parte para a porrada. Mas o famigerado Tsuguri revela que, na verdade, está do lado do seu oponente… Mesmo depois de lhe aplicar uns bons golpes.

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Tsurugi dá a Shikenbaru um soco secreto de karatê que o coloca em um breve coma. O sujeito, na real, foi contratado para impedir que Shikenbaru seja executado. E os efeitos de seu soco especial só dão resultado instantes antes do condenado ter a corda colocado no pescoço pelo carrasco. Segundo a lei, mesmo prestes a ser enforcado, o prisioneiro tem direito a atendimento médico caso seja necessário. E Shikenbaru aparentemente está muito mal… Chamam uma ambulância e ele é levado para um hospital. No caminho, acaba interceptado pelo companheiro fiel de Tsurugi, Rakuda Zhang (Goishi Yamada), que desce o porrete nos motoristas da ambulância e foge de lá no veículo com Shikenbaru ainda em coma.

Foi o casal de irmãos de Shikenbaru que pagou Tsurugi para tirá-lo da prisão. No entanto, quando os irmãos aparecem no apartamento de Tsurugi procurando Shikenbaru, ele informa que enviou o sujeito para algum lugar seguro em Hong Kong. E na hora de realizar o pagamento, o casal explica que não tem o restante do dinheiro do resgate. Tsurugi fica furioso e inicia uma peleja com os dois e os resultados são trágicos. O irmão mais novo de Shikenbaru acidentalmente cai da janela e morre. E para melhorar ainda mais a situação, Tsurugi, um sujeito muito prático para resolver as coisas, vende a irmã de Shikenbaru para o mercado de prostituição como escrava sexual para compensar seu insulto. Agora, vocês têm uma noção porque Tsurugi é considerado um patife escroto filho da puta… E mesmo assim torcemos por ele durante todo o filme.

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É preciso dar certa ênfase no arco do personagem de Shikenbaru, como veremos a seguir, mas o fio condutor de THE STREETFIGHTER é outro, completamente diferente. É legal notar como o filme não é apenas pancadaria e que por trás de tudo há uma trama bem contada e elaborada que torna o filme muito mais interessante. O que rola, na verdade, é que um tal de Mataguchi (Fumio Watanabe) deseja contratar Tsurugi para um trabalho. Um barão do petróleo chamado Hammett faleceu e toda sua fortuna foi herdada por sua adorável filha, Sarai (Yutaka Nakajima). Os empregadores de Mataguchi são um braço da Yakuza em Hong Kong e querem sequestrar a moça e forçá-la a assinar a papelada para transferir a bolada para o bolso deles. Mas Tsurugi decide não aceitar o trabalho, porque simplesmente não confia nos chineses.

Além do insulto contra os mafiosos, o problema é que agora Tsurugi sabe demais. Precisa ser eliminado e vira alvo da organização mafiosa. Um grupo de meliantes é enviado para cuidar do sujeito, irrompendo seu apartamento forçando o nosso anti-herói a demonstrar toda a sua técnica em aplicar os mais violentos golpes possíveis em seus desafetos. A cena é um espetáculo e é a síntese do que podemos esperar em termos de ação em THE STREETFIGHTER.

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Pancadarias brutais e grosseiras, grande parte da ação acontecendo em ambientes minúsculos e fechados, como corredores, escadas ou quartos apertados cheio de móveis; a câmera nervosa do diretor Shigehiro Ozawa, com ângulos e movimentos inusitados; ao invés de prezar por coreografias elaboradas, aposta mais nas habilidades de Chiba, nas suas expressões corporais e faciais (leia-se caretas!) e, obviamente, na técnica de respiração do sujeito, que é cem vezes mais exagerada do que os gritos que são a marca registrada de Bruce Lee; e, claro, uma boa dose de violência gratuita.

Não é a toa que THE STREETFIGHTER foi o primeiro filme a obter uma classificação X nos Estados Unidos POR VIOLÊNCIA! Como vocês sabem, geralmente a classificação X é usualmente colocada para filmes de sexo explícito. Na época, os anúncios de jornais americanos que anunciavam o filme continham a citação “AVISO: A MPAA classificou este filme como inadequado para espectadores menores de 17 anos por causa de suas extraordinárias sequências de luta“. Obviamente, com o passar dos anos, o impacto da violência estilizada de THE STREETFIGHTER é bem menor. Mas até hoje fico realmente impressionado com algumas cenas… Não faltam por aqui ossos quebrados, dedos nos olhos, crânios esmagados (um deles numa visão de Raio X), gargantas arrancadas, dentes estourados com um soco e até mesmo as bolas de um sujeito são arrancadas com as mãos!!! Isso mesmo! Tsurugi castra um sujeito sem anestesia com as próprias mãos. Tudo extremamente visceral! São litros e litros de um sangue vermelhão precisamente derramado, quase artisticamente colocado nas cenas…

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Depois de sobreviver ao ataque da Yakuza, Tsurugi resolve mudar de lado e se vingar de Mataguchi. Candidata-se ao posto de guarda-costas de Sarai. Mas antes, precisa encarar o tio da moça, Masaoka, o diretor de uma escola japonesa de Karatê. Mais uma sequência de luta magistral, com Chiba posudo, inspirando, fungando e rosnando. No decorrer da luta, Tsurugi descobre que Masaoka conhecia seu pai. O velho se sente mal por fazer Tsurugi se lembrar de como seu velho foi morto, taxado de traidor e fuzilado na frente do filho, e lhe dá o trabalho de proteger Sarai.

Mas como já disse, Tsurugi é um filho da puta. E um filho da puta sempre será um bastardo cruel desprezível. A ideia de “trocar de lado” e proteger Sarai, na verdade, consiste em tentar ele mesmo colocar as mãos no dinheiro da moça. E mesmo sabendo disso, continuamos torcendo por Tsurugi. Mas para isso, o sujeito vai ter uma jornada de violência, enfrentando vários capangas na porrada e uma variedade de lutadores exóticos, como um brutamontes chinês, um cego que esconde uma espada na sua bengalinha, ao estilo Zatoichi, e até o nosso velho amigo Shikenbaru, que retorna ao Japão com sede de vingança por conta do que fez com sua irmã e pela morte do irmão.

A vingança de Shikenbaru acaba tendo vida própria dentro do filme. Possui um peso tão forte na trama de THE STREETFIGHTER que a batalha dos dois personagens ao final, a bordo do navio de petróleo, numa noite chuvosa, só poderia ganhar ares épicos e um desfecho dramático típico de uma tragédia japonesa.

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O sucesso de THE STREETFIGHTER e do personagem de Sonny Chiba gerou ainda duas continuações, THE RETURN OF STREETFIGHTER e THE STREETFIGHTER LAST REVENGE, que expandem o universo de Tsurugi, apesar de inferiores. São divertidos e violentos, mas não aproveitam a figura de Tsurugi como neste primeiro. Takuma Tsurugi é uma figura fascinante, por mais politicamente incorreta que seja, e o desempenho de Sonny Chiba é uma força selvagem da natureza, especialmente ao realizar suas performances nas cenas de luta, na maneira quase primitiva de se impor diante dos adversários. Acaba sendo cômico em alguns momentos, mas percebe-se o talento expressivo de um ator criando uma assinatura. E Tsurugi é a assinatura de Sonny Chiba, ícone do cinema de artes marciais. Ganhou até uma bela homenagem de Quentin Tarantino em KILL BILL, no papel de Hatori Hanzo.

R.I.P. Sonny Chiba.

AMERICAN SAMURAI (1992)

A franquia AMERICAN NINJA era um sucesso no fim dos anos 80 e início dos 90, já estava no seu quarto filme em 1992 e o diretor Sam Firstenberg, que realizou os dois primeiros (e também dois filmes da trilogia iniciada por ENTER THE NINJA: REVENGE OF THE NINJA e NINJA III – THE DOMINATION), concentrou-se em americanizar outra figura icônica da cultura japonesa: os samurais. Obviamente o filme recebeu o título de AMERICAN SAMURAI. O resultado não é do mesmo nível dos melhores trabalhos do Firstenberg, mas até que não é mau, dá para o gasto.

David Bradley, que também deu sua contribuição na franquia ninja (estrelou o terceiro, o quinto e participou do 4 ao lado de Michael Dudikoff), é Drew Collins, um americano que perde os pais num acidente de avião no Japão e é adotado por Tatsuya (John Fujioka), um mestre das artes marciais local, que lhe passa os ensinamentos dos samurais em pleno século XX. Curioso que Fujioka interpreta praticamente o mesmo personagem em AMERICAN NINJA, quando ensina ao órfão Joe Armstrong (Dudikoff) alguns movimentos de ninjitsu.

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A principal distinção entre AMERICAN SAMURAI e AMERICAN NINJA, no entanto, é a presença de Kenjiro (Mark Dacascos, num de seus primeiros papeis no cinema), o filho biológico do mestre Tatsuya, que também teve seu aprendizado samurai, mas sofre insanamente de ciumes pelo seu irmão adotivo.

E a coisa vai de mal a pior com o pobre Kenjiro, como podemos ver na cena em que Tatsuya escolhe Drew, apesar do seu seu sangue ocidental, como o guardião que irá manter a honra da família possuindo uma famosa espada sagrada para os samurais. Kenjiro até tem um bom argumento de que, como o filho biológico, com sangue japonês correndo nas veias, deveria ter sido o escolhido. Só que seu argumento perde um pouco de ímpeto quando ele revela uma grande tatuagem nas costas e anuncia que ele é agora um membro da Yakuza, a famigerada máfia japonesa, que todo mundo conhece…

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Passam-se os anos, Drew está morando na América e tem a espada sagrada exibida com bom gosto em uma caixa de vidro na parede de seu apartamento. Pelo menos até que um grupo de assassinos da Yakuza invada o seu recinto, atire nele e roube a espada… E enquanto Drew está deitado morrendo, ele começa a ter visões psicodélicas dele enfrentando seu irmão, que está usando algum tipo de máscara demoníaca, num combate de espadas mortal. Mas aí o diretor Firstenberg sai de seu transe achando que é um diretor de cinema arthouse experimental e se lembra que é um cineasta de fitas vagabundas de luta… Volta ao filme com Drew utilizando as misteriosas técnicas orientais aprendidas com seu mestre para arrancar a bala do bucho! Quem precisa de seguro de saúde quando você é um mestre samurai?

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Meses depois, Drew viaja como repórter – sua profissão, quando não é samurai nas horas vagas – para Turquia, em companhia de uma fotógrafa (Valarie Trapp) para investigar algumas mortes envolvendo um estilo muito específico de corte de lâmina, que ele suspeita que seja Kenjiro com a tal espada roubada. Chegando ao local, não demora muito para o nosso herói samurai cair nas armadilhas de seu irmão e se vê forçado a lutar em um torneio de artes marciais.

Entra em cena aquele estilo batido de “filmes de torneio” que infestavam as locadoras no início dos anos 90, reunindo lutadores com todos os tipos de estereótipos e variações de luta em combates sangrentos. Aqui a coisa é meio bizarra, meio medieval… Os caras parecem selvagens de outras épocas que resolveram desenterrar para este torneio, como vikings, piratas, bárbaros do oriente… E, obviamente, um americano do Texas, com chapéu de cowboy.

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Até que em termos de confrontos, temos algumas sequências bem legais e violentas, nisso o Firstenberg manda bem. As cenas de luta definitivamente compensam um pouco certa estupidez do roteiro e uma falta de ritmo, que é um autêntico convite ao sono até chegar até a este ponto da trama. Mas um dos principais problemas de AMERICAN SAMURAI começa já na escolha do ator central. David Bradley até possui alguns filmes bacanas no currículo, como os filmes da série CYBORG COP e HARD JUSTICE. No entanto, em alguns veículos ele se comporta como uma mosca morta no piloto automático. É o que acontece um bocado por aqui, que até possui um material que outros atores da sua categoria teriam aproveitado mais, como um Loren Avendon ou Billy Blanks. Mesmo nas suas sequências de luta o sujeito demonstra uma certa preguiça e parece não se interessar muito em balançar uma espada samurai em torno de uns oponentes a cada 5 ou 10 minutos…

Quem acaba se destacando é Dacascos, embora não tenha muito tempo de tela. Podiam ter utilizado bem mais seu personagem, já que no começo, por exemplo, ele se revela como um Yakuza. Por que não explorar esse núcleo dele em algum tipo de negócio de drogas na Turquia? Alguma cena em que um grupo de policiais tenta prendê-lo e ele demonstra seu poder sádico pra cima dos policiais? Bom, o que resta ainda vale. Mesmo o Dacascos se resumindo a fazer caretas consegue mais interessante que Bradley no filme inteiro.

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Mas talvez a maior sacada de AMERICAN SAMURAI é a ideia do confronto entre irmãos. Afinal de contas, é sempre melhor ver o herói ressentido com a perspectiva de ter que matar um próprio membro da família do que apenas vê-lo fatiar um homem de negócios malvado de óculos escuros e fora de forma. Mas não me entendam mal, Drew ainda vai em frente e perfura o bucho de seu irmão na sequência final, apesar de ser uma das lutas de espada mais estranhas que já vi… É anti-climática, tem um diálogo sobre “ser o melhor” que aquela altura pouco importa, e quando o confronto começa, acontece muito rápido, são pouquíssimos os planos que vemos os dois atores no mesmo quadro. Claro, fica evidente também, pela montagem, que costuraram trechos e cenas de outras lutas pra dar a ilusão de terem Dacascos e Bradley lutando, quando é perceptível que algo deu errado e nem filmaram a sequência com os dois…hehe!

AMERICAN SAMURAI não encontrou o esperado sucesso para merecer uma sequência, diferente da franquia AMERICAN NINJA, que teve quatro continuações. Mas realmente nem os mais alucinados fãs do gênero vão lamentar por isso. É provável que numa sessão, com um grupo de amigos e algumas latas de cerveja, tirando sarro do filme, ele funcione. Há algumas coisas bizarras e involuntariamente engraçadas acontecendo aqui e ali, mas não tenho certeza se posso recomendá-lo por esses méritos. Como filme de ação e artes marciais não é grandes coisas, mas diverte e pelo menos é melhor que AMERICAN NINJA 5.

PUNHOS DE FERRO (1981)

PUNHOS DE FERRO (FIRECRACKER no original, mas também conhecido como NAKED FIST) é uma produção da New World Pictures, de Roger Corman, filmado nas Filipinas, com direção do grande Cirio H. Santiago.

Na trama, uma americana chamada Susanne Carter (Jillian Kesner) chega às Filipinas para procurar sua irmã, uma repórter desaparecida na região. A busca rapidamente a leva ao The Arena, uma espécie de clube noturno com apresentações de artes marciais e, em ocasiões especiais, noites de lutas clandestinas com apostas cheio de figuras amigáveis. E a coisa é violenta mesmo, geralmente terminando com o perdedor pronto para ser levado para o hospital ou direto pro caixão. O local é dirigido por um sujeito chamado Erik (Ken Metcalfe), o tipo de personagem que logo de cara não temos dúvidas de que é o malvado da trama, e foi o último lugar onde a repórter foi vista.

Outro cara mau do filme é a atração principal da Arena, um jovem lutador americano, um bigodudo chamado Chuck (Darby Hinton). Durante suas investigações, Susanne é avisada de que o rapaz é barra-pesada, do crime, do tráfico, das coisas seriamente perigosas e que deve ficar longe dele. Acontece que, por um acaso, Susanne também é especialista em artes marciais e não se intimida. Obviamente, o couro vai comer entre os dois… Em vários sentidos.

Nas buscas por pistas do desaparecimento de sua irmã, Susanne é constantemente atacada por bandidos, pelos mais diversos motivos, e Jillian Kesner aparenta ter sido realmente treinada em algum tipo de arte marcial. Isso fica evidente nas inúmeras cenas de pancadaria que ela aborda com gosto. Seus movimentos parecem convincentes não importa o cenário, roupas que usa – ou não usa – ou a quantidade de adversários, a moça manda muito bem na porrada. E é preciso dizer que PUNHOS DE FERRO não perde muito tempo para nos alegrar no quesito pancadaria. Nos primeiros minutos, há uma luta na Arena em que Chuck empala seu adversário, e Susanne, ainda em sua roupas íntimas, é atacada por dois bandidos em seu quarto de Hotel assim que chega no local.

E a coisa não para. A cada 5 minutos há alguma situação envolvendo pessoas lutando, trocando tiros ou em perseguição. Mas as investigações de Susanne continuam. E aos poucos, quanto mais adentra no universo da Arena, ela acaba cada vez mais atraída por Chuck, mesmo sabendo do envolvimento dele com os possíveis responsáveis pelo desaparecimento da irmã. E, claro, a certa altura já dá pra imaginar que algum coração vai sair machucado, a coisa não vai acabar muito bem…

Apesar da intensidade da ação, para um filme produzido por Roger Corman nos anos 80, não há tanto material de exploração quanto poderia almejar e é preciso esperar um tempinho para ter uma dose maior de violência ou um bocado de pele a mais. Quando chega, no entanto, é sublime e faz valer o tempo esperado. A melhor sequência é a fuga noturna de Susanne de dois tarados que acaba fazendo com que seu vestido seja rasgado, de forma totalmente gratuita, obrigando que ela encare os meliantes e aplique seus golpes só com a “roupa de baixo”. E isso já é legal o suficiente. Mas a coisa melhora ainda mais quando um dos sujeitos pega uma foice bem afiada e se lança pra cima da moça…

Não se preocupem, ela consegue sair ilesa do ataque, mas a lâmina corta exatamente o necessário…

Aparentemente, a ideia inicial não era para que isso acontecesse. Mas Roger Corman sentiu que os atributos da protagonista não estavam o suficiente “explorados” quando ele viu o primeiro corte do filme. Então, contratou o diretor Allan Holzman (que viria a fazer filmes futuros para Corman) para adicionar um par de novas cenas que obrigou Kesner a se despir. A primeira, foi esta aqui.

A princípio era apenas para que ela lutasse de calcinha e sutiã, mas um acidente legítimo na hora das filmagens realmente fez a atriz perder o bojo e a convenceram de continuar filmando assim mesmo… É desses momentos mágicos do cinema de exploração. O que se segue a partir disso é uma mulher de topless descendo o cacete num macho escroto. Isso que é empoderamento! E se vai mostrar seios num filme, dá muito bem pra fazê-lo com um certo estilo. É só tomar essa sequência de PUNHOS DE FERRO como exemplo. Aqui temos estilo de sobra.

A outra sequência que foi filmada por Holzman é o sexo bizarro cujas preliminares Susanne tem suas roupas removidas por Chuck, muito lentamente, com um par de facas bem afiadas. Sabe-se que Kesner não ficou lá muito satisfeita com a ideia de adicionar novas cenas apenas para tê-la nua na tela, mas aceitou fazer de boa… A única coisa que a irritava mesmo era a impressão de que sempre parecia haver mais homens no set durante essas filmagens do que o habitual.

Mas é exatamente nesta cena de sexo que Kesner finalmente atua, atua de verdade, com expressão. Ela transmite bem o estado emocional de Susanne de forma bastante eficaz. A cena possui uma carga de tensão a mais, dada uma certa informação que é conhecida pelo espectador, mas não por Susanne ainda, a de que Chuck é, na verdade, o assassino de sua irmã, o que torna o sexo entre eles um ato bem perverso.

E para quem não sabe, Kesner era esposa do grande Gary Graver, diretor de inúmeros filmes que passavam na famigerada sessão de filmes da Band, o Cine Privé, e que foi parceiro e diretor de fotografia de Orson Welles em seus últimos anos. Tanto Graver quanto Kesner dedicaram boa parte da vida preservando materiais e o legado de Welles – o que inclui THE OTHER SIDE OF THE WIND, filme póstumo do diretor de CIDADÃO KANE que só viu a luz do dia mais de trinta anos depois de sua morte. Mas a própria Kesner não pôde ver isso acontecer, já que faleceu em 2007.

Sobre outros membros do elenco, não há muito o que destacar. Darbin Hinton até funciona bem como vilão apaixonado, mas é aquele tipo canastrão que a gente elogia mais pelo ridículo do que pelo talento. No geral as atuações são simplesmente horríveis. Só que estamos diante de um exploitation, então quem diabos se importa com a performances? O importante pra filmes dessa espécie é não ser chato. E o ritmo por aqui é ótimo, há uma abundância de ação, Cirio H. Santiago filma bem, aproveita as locações urbanas e campestres das regiões filipinas, e o filme ainda tem um pouco de nudez, sexo e perversidade para apimentar a coisa.

Inclusive, a relaçao que é estabelecida entre Susanne e Chuck torna o clímax, a luta final entre os dois, ainda mais intenso e cheio de nuances. Chuck claramente poderia matar Susanne com as próprias mãos, mas entra em conflito por estar enamorado, enquanto a moça só tem desejo de vingança no coração. O desfecho é dos mais violentos possíveis. E há ainda o envolvimento da polícia e de alguns personagens secundários, amigos que Susanne faz pelo caminho, todos juntos tentando descobrir o paradeiro da irmã desaparecida e desbaratar o esquema das drogas que rola com a turma do vilão, Erik. O que acrescenta ainda mais um dose de pancadaria e ação. Sobretudo por conta da participação de um sujeito que é um clone do Bruce Lee e que possui alguns dos melhores movimentos nas sequências de luta.

PUNHO DE FERRO não é o tipo de filme que vai ganhar um prêmio de valor artístico ou vai entregar alguma reflexão sobre a condição humana, mas no quesito entretenimento e pancadaria de qualidade (bom, pelo menos para o nível da produção) pode apostar que não há do que reclamar. Altamente recomendado.

QUATRO FILMES DA SHAW BROS.

TEMPLO DA LOTUS VERMELHA
(Temple of the Red Lotus, 1965)
dir: Hung Hsu Teng

Sinopse: Jimmy Wang Yu interpreta um jovem espadachim que parte numa jornada de vingança, procurando os assassinos de seus pais, e também em busca de uma amiga de infância que foi prometida como sua noiva. Quando ele chega no local, descobre que a família da noiva pode ser um bando de bandidos e começa a investigar a história por trás da rivalidade que eles têm com os monges no Templo da Lótus Vermelha.

Primeiro filme wuxia em cores da Shaw Brothers, meio que inaugura uma era de ouro do cinema de kung fu da produtora, o que por essas razões históricas já seria recomendável pra quem realmente tem interesse a entrar de cabeça nesse cinema e perceber sua evolução.

Porque de resto TEMPLO DA LOTUS VERMELHA não é grandes coisas. O drama é fraco e pesado, tem pouca ação (e quando acontece é rápida, sem muita criatividade, acho que a coisa ainda viria a melhorar nos anos seguintes nesse departamento), a jornada do herói, vivido por Jimmy Wang Yu, soa um bocado enfadonha, sem graça – a longa sequência que ele tem que fugir do castelo com sua companheira, enfrentando irmã, tia, mãe e avó da moça, uma de cada vez, é bem ridícula e me fez soltar altos bocejos…

Mas não deixa de ser legal ver alguns rostos que viriam a fazer sucesso pela Shaw na década seguinte, como Lo Lieh e Tien Feng. Nos créditos ainda aparecem nomes como Liu Chia-Liang e Yuen Woo Ping.

O filme faz parte de uma trilogia, formada por ainda por AS ESPADAS GÊMEAS (65) e A ESPADA E O ALAÚDE (67) que em algum momento vou acabar assistindo. Todos dirigidos por Hung Hsu Teng, mas confesso que depois deste aqui fiquei com preguiça.

THE OATH OF DEATH (1971)
dir: Pao Hsueh-Li

Sinopse: Três heróis tornam-se irmãos de sangue para lutar contra a tirania dos invasores tártaros. Um deles decide se infiltrar entre os inimigos e acaba ganhando uma posição de destaque. Não demora muito, fica evidente que o sujeito gostou da posição de poder e está disposta a sacrificar qualquer coisa e qualquer pessoa para mantê-la, incluindo seus irmãos de sangue.

Um dos filmes mais curiosos que vi da Shaw Bros. Um exemplar de espadachim que se alterna entre uma trama melodramática levada muito a sério e um filme excêntrico de artes marciais, bem puxado para o exploitation, mostrando muito sangue e selvageria, mas também um bocado de sexo e nudez fornecida por Ling Ling uma das estrelas residentes da Shaw.

Pao Hsueh-Li pode até não ser um Chang Cheh – as lutas são filmadas muito de perto, editadas com desleixo em alguns momentos, sem muita preocupação com a coreografia – mas ele se dedica tanto a transformar essas sequências num banho de sangue que fica difícil não elogiar os esforços. E os contextos que as batalhas ocorrem, mais a variedade de armas utilizadas deixa tudo ainda mais divertido. Os trinta segundos finais, um duelo onde um dos personagens centrais tem uma perna decepada por um chicote (!!!) e continua lutando para enfiar o braço no peito adentro de seu adversário é um dos momentos mais insanos que já vi num filme da Shaw… Só não esperem uma abundância de lutas durante o filme, a parte dramática realmente toma um tempo grande de projeção, com situações do tipo “amigo roubando mulher de amigo” e etc… Mas se você entrar na história e chegar inteiro até os minutos finais, não vai se decepcionar.

No elenco, temos Lo Lieh fazendo papel de herói desta vez e o grande Tien Feng. Mas vale reparar na pequena participação de Bolo Yeung como um dos soldados malvados.

THE MAGIC BLADE (1976)
Dir: Chor Yuen

Sinopse: Dois espadachins rivais unem forças para evitar que uma lendária arma mortal, chamada Peacock Dart, caia nas mãos do mestre das artes marciais, Sr. Yu, e de seu malvado submundo do crime.

Esse aqui é daqueles filmes que beira a perfeição. Ti Lung com sua espada giratória é o fodão dos fodões. É o Clint Eastwood do Wuxia, numa jornada de sangue, honra, contra os ardis de uma sociedade secreta, na busca em trazer justiça ao mundo, sem qualquer recompensa de volta. É também uma jornada cheia de MacGuffin’s que o roteiro, um fiapo de história, faz brotar do nada só para fazer a ação continuar surgindo na tela. No caso, a busca pelo tal Peacock Dart, que não pode de jeito nenhum cair nas mãos do velho mestre das artes marciais que comanda uma sociedade de assassinos.

Estamos diante de um filme de espadachim da melhor qualidade possível. E a ação é maravilhosa, tem aos montes, a criatividade do diretor Chor Yuen parece não ter fim na elabroação dessas cenas e na relação que a ação estabelece com os espaços, os mais variados cenários, ambientes e locações, num belo trabalho de manipulação cênica. A sequência final é daquelas que parecem capazes de reproduzir o equilíbrio cósmico do universo!

Lo Lieh, e Lily Li estão no elenco, além de outras figuras… Enfim, pra quem entra na vibe de ver filmes de artes marciais da Shaw Bros. um atrás do outro, como eu tô fazendo neste início de ano, tudo o que pedimos é mais filmes como THE MAGIC BLADE, uma dessas experências raras de imaginação sublime e um senso de aventura fabuloso que já de cara se tornou um dos meus favoritos da Shaw.

EXECUTIONERS FROM SHAOLIN (1977)
Dir: Liu Chia-Liang

Sinopse: Chen Kuan Tai é o protagonista aqui, liderando os sobreviventes do massacre no Templo de Shaolin pelas mãos do sacerdote Pai Mei, encarnado pelo Lo Lieh. O grupo se disfarça numa trupe de artistas de ópera e entre suas viagens, Hung conhece Yung Chun (Lily Li). Os dois se casam e têm um filho, mas Hung acaba sendo morto depois de tentar se vingar do massacre no Templo encarando Pai Mei duas vezes ao longo dos anos. O filho deles, Wen Ding (Wong Yu), une então o kung-fu do Tigre de seu pai com o kung-fu da garça da mãe para enfrentar Pai Mei, que teve seu ponto fraco descoberto por Hung.

Como qualquer filme dirigido pelo grande Liu Chia-Liang, a pancadaria rola pra todo canto. Já começa com uma participação de Gordon Liu, que enfrenta uma vários soldados manchu para dar cobertura para o grupo de Hung. Mesmo cravado de flechas o sujeito dá trabalho. É curioso como tudo por aqui possui um controle sobrenatural das artes marciais: política, religião, família e até o sexo. Logo depois de se casarem, Chen Kuan Tai tem que se esforçar para abrir as pernas de Lily Li… E isso não é numa alegoria, ela literalmente usa técnicas de artes marcias para manter as pernas fechadas e só vai liberar se o marido conseguir “destravar” a moça! haha!

Um dos grandes destaques do filme é Pai Mei, um dos vilões mais desgraçados que Lo Lieh já viveu, com seu ponto fraco que possui relação temporal e muda de lugar no seu corpo à medida em que relógio avança. O cara é quase indestrutível… E ainda tem um lance bizarro dele esconder os testículos contraindo a barriga e prendendo o pé dos adversários entre as pernas! Sensacional! E sim, muita gente vai se lembrar de Pai Mei como o personagem que Quentin Tarantino colocou em Kill Bill para treinar Beatrix Kiddo. Mas quem já tá mais familiarizado com o cinema de kung fu sabe que o personagem existe faz teeempo…

Exibido nos cinemas nacionais como OS CARRASCOS DE SHAOLIN.

THE MATRIX REVOLUTIONS (2003)

Minhas impressões da revisão de THE MATRIX REVOLUTIONS são meio malucas. Se por um lado eu consigo identificar tudo que desagradou os fãs na época (eu incluso), por outro já não me importei com nada e simplesmente embarquei nessa tragédia shakespeareana misturada com uma viagem pseudo-cyber-filosófica-espiritual cheia de ação épica… Achei um filme fascinante.

O grande problema pra mim desta vez foi bem diferente do que senti quando vi THE MATRIX REVOLUTIONS no cinema há quase duas décadas. Eu só queria que aquela bobagem toda acabasse o mais rápido possível…

Nesta revisão, não sei explicar porquê, acontece justamente o contrário. Eu queria mais e mais, eu queria uma série pra TV com vinte temporadas explorando a riqueza visual/espiritual/filosófica de THE MATRIX, eu simplesmente fiquei maravilhado e queria mais!

E, bom, as Wachowski se arriscaram pra caramba pra concluir essa bagaça. THE MATRIX tava no coração da moçada, quase todo mundo tinha curtido, tinha sua importância dentro dos blockbusters hollywoodianos, então este terceiro filme era muito aguardado. E elas vão lá e, PIMBA! não entregam nada daquilo que o público queria! Hahaha!

Convenhamos que o encerramento de uma série dessa magnitude nunca vai agradar todo mundo mesmo que tivessem feito “o básico”.

Mas THE MATRIX REVOLUTIONS acabou sendo uma aula de como subverter as expectativas do público e até mesmo de narrativa: por exemplo, colocando a tão aguardada batalha de Zion, dos homens contra as máquinas, no meio do filme, sem sequer contar com a presença do protagonista. Forçando toda a solução das suas questões filosóficas entregues numa única luta de tirar o fôlego entre Neo (Keanu Reeves) e o Agente Smith (Hugo Weaving).

A batalha de Zion é um esplendor que mal tenho palavras para descrever. Não lembro muito o que senti há quase vinte anos quando vi pela primeira vez, na tela grande, mas como não curti na época, é bem capaz de não ter achado grandes coisas.

Hoje foi bem diferente. São praticamente 30 minutos de espetáculo sensorial de ação de tirar o fôlego, que tem um peso poderosíssimo e uma sensação insuportável de ameaça, realmente convence – mesmo que por um momento – de que tudo está realmente fodido e que a humanidade vai ser extinta.

As irmãs Wachowski têm uma excelente percepção de onde colocar a câmera na ação. Os enquadramento nunca são óbvios, as figuras são milimetricamente posicionadas no quadro, um pouco distorcidas para ganhar movimento, apenas o suficiente para proporcionar um prazer visual que não é comum. A edição também é sólida: em nenhum momento a geografia é confusa ou incoerente.

E as cenas de artes marciais são compreensíveis. O que nos leva à luta entre Neo e Smith, toda belíssimamente construída, com quadros que remetem a um duelo de faroeste. Começa com os dois sujeitos em extremos opostos de uma longa rua, enquanto gotas de chuva os encharcam, entre duas filas de cópias do Agente Smith. É sublime.

Neo e Smith trocam algumas palavras antes de dar tudo de si numa briga de proporções épicas que carrega aquele aroma de inevitabilidade, como diria o Agente Smith.

Há uma outra sequência de ação que é menos lembrada do que esses dois mastodontes que citei aí em cima, mas que ainda impressionam: a que Morpheus (Laurence Fishburne), Trinity (Carrie-Ann Moss) e Seraph (Collin Chow) trocam tiros com uns caras que literalmente andam no teto do cenário… É uma dessas pequenas joias dentro do filme que também provam a maestria das Wachowski na condução da ação.

Mas uma das coisas mais importantes pra mim por aqui é como a coisa se resolve dentro de sua própria lógica filosófica de boteco e religiosidade de fundo de quintal (é quase uma versão sci-fi de passagens bíblicas), deixando um monte de ponta solta, um bocado de perguntas sem resposta, tudo tão aberto, pra desespero dos fãs.

Mas que ao mesmo tempo toca no fundamental: o nível de sacrifício exigido de seus personagens em algo reconhecidamente humano, fazendo-nos sentir o custo mortal por trás das figuras e feitos que se tornam lendas. Se THE MATRIX RELOADED rejeita os mitos que alimentamos, THE MATRIX REVOLUTIONS nos mostra como novos mitos são criados.

Enfim, depois dessa revisão, agradeço às Wachowski por não terem realizado algo pra agradar os fãs (não é mesmo, Disney?).

Passei tempo demais sem revisitar esse universo, deveria ter feito antes e mais vezes e redescoberto essa maravilha que é toda a saga THE MATRIX, especialmente se olharmos agora e percebermos que não tivemos nada remotamente parecido no gênero como essa trilogia desde então em Hollywood.

Que me perdoem os fãs da Marvel Cinematic Universe, mas todos os seus trocentos filmes juntos não dão nem pro cheiro que é a trilogia THE MATRIX.

★ ★ ★ ★


Quero saber as impressões de vocês. O que meus cinco leitores acham da trilogia THE MATRIX? Não deixem de comentar na caixa de comentários aqui do blog, ou no facebook, Twitter, Instagram… Bora papear.

THE MATRIX RELOADED (2003)

Pois, inspirado pelo último post, resolvi rever os outros dois exemplares da trilogia THE MATRIX de uma vez. Eu já esperava gostar de THE MATRIX RELOADED, novamente dirigido pelas irmãs Wachowski, até porque tinha lembranças vívidas de algumas sequências de ação e que confirmaram o nível de qualidade nessa revisão (uma em específico é uma obra-prima).

Então, acabou que não foi nenhuma surpresa me deparar com um filme tão maneiro. E obviamente a ação é importate… Crucial, eu diria – como verão à seguir – mas me interessou bastante tudo aquilo que o filme se propõe como continuação.

Na verdade, THE MATRIX RELOADED é bem funcional como capítulo intermediário e só faz sentido acompanhado dos outros dois. É quase impossível entender alguma coisa sem ver o seu antecessor e conferir logo em seguida o encerramento da bagaça, THE MATRIX REVOLUTIONS (que foi lançado no mesmo ano, alguns meses só de diferença, em 2003).

Não que a trama seja tão complexa ou difícil de acompanhar, mas toda a gama filosófica de mesa de bar do primeiro filme precisa estar na mente para perceber os seus desdobramentos por aqui. Nada muito complicado, mas que torna-se incompreensível se falta a parte inicial e fica incompleta sem o desfecho.

Então, pra que que serve MATRIX RELOADED?

Olha, eu poderia até dar uma resposta mais detalhada, explicar que serve pra expandir o universo do primeiro filme, explorar os personagens e até mesmo se aprofundar nos seus conceitos que agora transcendem as questões cyber filosóficas para se tornar algo mais energia-espiritual-budista e blá blá blá… Mas não.

A única coisa que eu consigo pensar como razão deste filme existir é pelo espetáculo sensorial do segmento de ação “da rodovia”. Sabem qual é? Sabem do que tô falando?

Tudo que rodeia esses momentos frenéticos, tudo que vem antes ou depois dessa pancadria, perseguições, tiros e explosões que são a matéria prima dessa sequência, só serve de pretexto para esse segmento em específico acontecer diante dos nossos olhos. Não tenho dúvida alguma de que é uma das melhores sequências de ação do século.

Então minha resposta é essa. Pra que serve MATRIX RELOADED? Pra isso:

Toda essa construção, essa sucessão de acontecimentos, é simplesmente do caralho! Eu perdi a noção do tempo, mas devem ser uns quinze minutos de ação frenética ininterrupta.

Começa com um kung fu de Neo (Keanu Reeves) contra uns sujeitos numa espécie de chateau, desce pra uma garagem com os Gêmeos que viram fumaça, dando um trabalho do cão pra Morpheus (Laurence Fishburne) e Trinity (Carrie-Ann Moss) e o barraco acaba indo parar numa perseguição alucinante de carros, caminhões, viaturas de polícia, moto na contra-mão, com gêmeos-fumaça e os agentes da Matrix (aqueles caras fodões de terno e gravata do primeiro filme) perseguindo Morpheus, Trinity e um tal chaveiro numa rodovia de alta velocidade lotada de veículos.

A coisa termina quase num orgasmo com uma luta entre Morpheus e um dos agentes (vivido por ninguém menos que o grande Daniel Bernhardt, o sub-Van Damme dos anos 90, protagonista das continuações de O GRANDE DRAGÃO BRANCO e o petardo bad movie O GRANDE DRAGÃO DO FUTURO) em cima de um caminhão em movimento… Ufa! É o fino da grosseria!

Tudo lindamente bem filmado e coreografado pelas Wachowski. E os efeitos especiais até hoje impressionam… Honestamente, é essa sequência que faz valer o filme. Eu não queria mais saber das armações políticas em Zion, do ataque das máquinas no “mundo real”, do romance entre Neo e Trinity, se o Oráculo tava certa ou errada, ou pra que caralho serve o tal chaveiro. Eu queria simplesmente viver naquela sequência de ação por, sei lá, mais duas horas… Um clássico.

Sobre o restante de THE MATRIX RELOADED, é tudo o que se pode esperar de uma continuação para uma obra tão pop e cultuada do cinema da virada do milênio. Uma aventura de ficção-científica à altura de seu antecessor – apesar do fator novidade não existir mais aqui – mas que exige atenção do espectador e entretém com categoria.

Na trama, finalmente vemos Zion, a tal cidade do mundo real – e que rola umas raves hippies muito loucas sem qualquer motivo, a não ser mostrar corpos suados e com pouca roupa em movimento, ao som do batidão, o que pra mim tá bom…

Ficamos sabendo que as máquinas estão avançando em direção à cidade, cada vez mais perto de aniquilar os últimos 250 mil homens, mulheres e crianças da Terra, e é praticamente inevitável o confronto homem vs máquina.

A turminha Morpheus, Neo, Trinity e Link (Harold Perrineau) chegam na cidade. Personagens vão se apresentando, se reencontrando… O ritmo do filme é bem lento nesse início, com todas essas informações sendo lapidadas, com direito até a “reuniões de conselho” onde discute-se alguma coisa que parece importante (estilo Guerra Nas Estrelas). Rola até um Neo & Trinity fazendo saliências

Não sabemos ainda como Neo vai salvar a humanidade. Nem ele, na verdade, mas continua sua jornada de descobertas com o apoio de Morpheus e Trinity. Talvez a grande revelação do filme aconteça na sequência que Neo encontra o Arquiteto (Helmut Bakaitis) e descobre-se a existência de outros “Neo’s” e que ele na real não tem escolha alguma, a não ser seguir o que lhe foi determinado desde o princípio pelas máquinas.

Seu destino é jogar um jogo dentro dos termos já estabelecidos, o que é uma baita quebra de expectativa do que a rapaziada almejava pras continuações considerando o final do primeiro filme. Motivo pra ter deixado muita gente puta na época, o que já prova que foi a escolha certa das Wachowski.

Temos uns outros personagens novos, Jada Pinkett-Smith, Monica Belucci e Lambert Wilson, como Merovingian, importante pra trama. O Chaveiro também é crucial – mas que no fim das contas só serve mesmo para ser jogado de um lado para o outro na tal épica sequencia de ação.

Mas dessa nova galeria de figuras, os melhores pra mim são os tais Gêmeos, capangas do Merovingian, que tem por trás tem aquele conceito incrível de se transformarem em fumaça, em fantasmas, sei lá… Só sei que é massa!

Outro ponto a destacar é a presença de Hugo Weaving, o agente Smith, que ressurge com novos propósitos após sua “libertação” no final do primeiro filme (à princípio imagina-se que ele foi destruído por Neo). No entanto, só vamos entender totalmente seu arco em THE MATRIX REVOLUTION. Aqui em RELOADED sua participação ficou marcada pela sequência de pancadaria entre Neo e múltiplos Agentes Smith.

É outro momento de ação bem legal que até nessa revisão me surpreendeu, especialmente enquanto vemos atores e dublês, de carne e osso, atuando e encenando as coreografias. Quando entram em cena os bonecos de CGI rodopiando a coisa fica fake demais, parece jogo de Playstation 2, envelheceu mal pra caralho… Mas ainda gosto bastante, acho que faz parte do charme que essa cena possui.

É tudo muito divertido, barulhento e muito bem feito, até para os padrões atuais de cinema espetáculo de sci-fi/ação. Muito melhor e mais autoral, por exemplo, que qualquer filme da Marvel feito nos últimos quinze anos.

Foi realmente uma revisão proveitosa. Algum momento mais lento aqui, outro mais chato ali, especialmente no primeiro terço do filme. As cenas em Zion se demorassem mais um pouquinho iam me perder… Mas uma vez que a intensidade do ritmo aumenta e a ação entra pra valer, THE MATRIX REALOADED cresce muito. Um filmaço.

Em breve comento o que achei de THE MATRIX REVOLUTION. Vou deixar no suspense…

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E vocês? Há quanto tempo não assistem à trilogia? E o quais as suas impressões sobre a série da primeira vez que viram e nas revisões? Deixem aí uns comentários pra eu saber.

THE MATRIX (1999)

Escrevi esse textinho no início do ano passado, em 2019, exatamente vinte anos após o lançamento de THE MATRIX, para o extinto Action News. A minha intenção era rever toda a trilogia, como podem perceber no final do post… Como na época acabei revendo apenas este primeiro, vou republicar aqui no blog pra ver se animo finalmente revisitar os outros dois. Até porque um quarto filme vem aí…

Primeiro, é preciso ter consciência de que já se passaram vinte anos que THE MATRIX foi lançado e se tornou um fenômeno pop cultural, celebrado como um filme inovador em vários aspectos – revolucionário em termos de efeitos especiais e ação, e carregado de filosofia pós-moderna cibernética e blá, blá, blá. Mas e hoje? Como é ver THE MATRIX hoje? Muita coisa mudou de lá pra cá. O mundo vivia às vésperas da virada do milênio, a era da informática se iniciava, tudo o que apresentava em termos de comunicação e internet parecia tão distante da realidade; eu era um adolescente que peguei o VHS numa locadora e assisti, no mínimo, nove vezes antes de devolver rebobinado… Até as diretoras do filme, as irmãs Wachowski, ainda eram chamadas de irmãos Wachowski naquela altura… Sim, muita coisa mudou.

Resolvi encarar o filme de novo. Hoje. E se tem algo que NÃO muda é o fato de THE MATRIX ainda manter sua força em certos quesitos: alguns conceitos premonitórios, o visual cyberpunk que parece uma novela de William Gibson ganhando vida, e o fato de ser um cânone do cinema de ação na virada do século. Não dá pra conversar sobre cinema de ação do período sem que alguém cite Neo (Keanu Reeves) desviando de balas, com a câmera girando em slow motion, que ficou conhecido como “bullet time”, um tipo de cena que foi abusada à exaustão nos anos seguintes, mas que aqui ainda impressionava, era novidade; ou Neo encarando o agente Smith (Hugo Weaving) num metrô abandonado; Salvando Trinity (Carrie-Ann Moss) de um helicóptero em queda; ou enfrentando Morpheus (Laurence Fishburne) num treinamento de Kung Fu (cujo coreografo das cenas de luta foi o lendário Yuen Woo-ping)…

Lembro que na época era um filme considerado difícil de entender entre a molecada que tentava encarar a jornada do hacker Neo com mais prudência, prestando atenção no seu conceito filosófico. E toda a trama que envolve um mundo real e outro virtual, questões de livre arbítrio e identidade do indivíduo, e até um elemento religioso, com a concepção do “escolhido”, que volta para salvar o mundo, bagunçava mesmo a cabeça de um mancebo no final dos anos noventa que mal tinha entrado na internet na vida e só queria ver uns tiros, porrada e bomba. A trama nem era tão original assim, e depois foram se revelando vários filmes anteriores que tinham premissas similares.

É aquilo, THE MATRIX é a definição perfeita do que Hollywood costuma promover como algo “novo”, mas que acaba sempre sendo mais do mesmo… só que diferente.  Quem já tinha assistido na época filmes como EXISTENZ, do Cronenberg, DARK CITY, do Proyas, e O 13º ANDAR não deve ter visto nenhuma novidade por aqui, exceto a ação eletrizante, numa intensidade de encher os olhos, e que realmente tinha uma proposta inventiva. Mas era o tipo de filme que, de certa forma, nos levava a refletir, a fazer as perguntas sobre questões da vida sem conseguir obter respostas muito concretas.

Mas o que realmente encantava e, curiosamente, ainda encanta nessa revisão, é como THE MATRIX é divertido pra cacete! Quero dizer, se tu não tá a fim de ficar esquentando os miolos com os elementos filosóficos, ao menos temos aqui uma história cheia de momentos que te prendem na cadeira sem tirar os olhos da tela. Ou, basicamente, temos Keanu Reeves lutando, correndo, pulando, atirando, etc, por duas horas. “Eu sei kung-fu.” Esse tipo de coisa nunca envelhece. E obviamente é sempre importante destacar os efeitos especiais seminais, que realmente surpreendiam na época. Mesmo que em alguns momentos tenham ficado datados, mas faz parte. Tudo somado, THE MATRIX é um filme de ação sci-fi inteligente, com uma filosofia de boteco que tem seu charme. É frenético, bem dirigido, com momentos e personagens icônicos que ainda fascinam, um visual interessante, enfim, continua incrível.

Depois de THE MATRIX, as Wachowski criaram muito barulho com a expansão do universo do filme. Vieram as animações compiladas em ANIMATRIX e terminou numa das trilogias mais célebres da primeira metade dos anos 2000’s. Para alguns. Extremamente decepcionante para outros… Eu incluso. Até tenho boas memórias de RELOAD. No entanto, REVOLUTIONS era simplesmente intragável. O legal é que quase tudo desse período revelou-se bons filmes em revisões recentes. E é gratificante quando isso acontece, adoro mudar de opinião e descobrir maravilhas de coisas que eu detestava. Por isso vou rever o restante da trilogia. Volto pra falar se melhoraram com o tempo ou se ainda são as porcarias que tenho na memória…

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E termino esse post com essa imagem maravilhosa das filmagens de THE MATRIX 4, que poderiamos ver mais cedo, mas graças à pandemia só será lançado em 2022. A Lana Wachowski parece feliz em dirigir mais um capítulo dessa saga…

MIAMI CONNECTION (1987)

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Na época do seu lançamento, em meados dos anos 80, MIAMI CONNECTION passou batido. O longa foi um fracasso de bilheteria em meio a tantos filmes de ação de qualidade que o período nos proporcionava e acabou no limbo, onde permaneceu por mais de duas décadas. Y. K. Kim, que era um famoso instrutor coreano de Taekwondo que vivia em Orlando, Flórida e idealizador do projeto, quase chegou a falir com essa produção.

O sujeito escreveu o roteiro, produziu, dirigiu algumas cenas e atuou como um dos protagonistas – mesmo falando um inglês horrível. Em 2012, a Drafthouse Cinemas, sabe-se lá porque, resolveu redistribuir o filme, a recepção foi extremamente positiva e ganhou fanáticos seguidores.

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O que fez MIAMI CONNECTION ressurgir das cinzas para se tornar cult entres os fãs de filmes de ação e artes marciais, é algo que eu não tenho a mínima condição de explicar de forma racional. Mas finalmente eu me deparei com a obra, algo que já vinha adiando há algum tempo e agora posso, ao menos, especular as razões de seu culto.

Trata-se de um filme vagabundo, realizado à toque de caixa com péssimas atuações e um roteiro ingênuo e moralista que parece ter sido escrito por um pré-adolescente aficionado por filmes de luta, synth rock, ninjas e toda uma iconografia enraizada nos anos 80, mas sem qualquer noção da representação dramática das emoções humanas… Onde raios eu estou com a cabeça? Quem se interessa por dramaturgia quando temos uma gangue de NINJAS MOTOQUEIROS TRAFICANTES DE DROGAS encarando uma banda musical de lutadores de Taekwondo? Sim, MIAMI CONNECTION é uma porcaria em vários sentidos, só que o filme possui toda uma combinação de elementos desastrosos que resulta num universo muito particular dentro do gênero de ação e artes marciais e que, de alguma maneira, acaba em pura diversão cinematográfica.

Y. K. Kim, celebrando o resgate de “Miami Connection”.

A trama gira em torno de uma banda de synth rock chamada Dragon Sound, composta de amigos órfãos que lutam taekwondo e possuem etnias diferentes entre si; temos um italiano, um irlandês, um coreano, um negro, e por aí vai… Ou seja, é um filme com pluralidade inclusiva. Quando um deles começa a namorar uma mocinha, o irmão ciumento dela, que por acaso é o líder de uma perigosa gangue, acaba virando uma pedra no sapato da banda que, por este e outros motivos, entra numa guerra envolvendo traficantes de drogas e motociclistas ninjas.

É um filme muito bobo, para dizer o mínimo, que acaba tendo sua graça com seu humor involuntário, situações esdrúxulas, mas também porque não economiza em ação. Muita ação mesmo.

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A maioria delas se resume em sequências de pancadaria, onde o pequeno grupo que forma a banda (uns cinco sujeitos ao todo) encara sempre um número bem maior de oponentes. A coreografia não é nenhum primor, mas também não é de se jogar fora. E há alguns momentos sangrentos aqui e ali.

Dentre os heróis da trama, Y. K. Kim se destaca demonstrando boa habilidade na encenação das lutas. Tudo o que lhe falta em talento como ator, diretor, roteirista e seja lá mais o que tenha feito em MIAMI CONNECTION, ele esbanja competência nas cenas de luta, no uso do corpo, em movimentos que ficam bem na tela. É seu único trabalho no cinema.

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Lá pelas tantas, resolve-se criar um arco dramático com um dos personagens, Jim, que descobre que tem um pai. A coisa atinge um nível constrangedor. Há uma cena, em que Jim faz um monólogo em um longo plano, com a câmera estática, que é nível de teatrinho do ensino médio.

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Mas é o que acrescenta uma dose a mais de dramaticidade na sequência de ação final. Uma batalha difícil de definir e que acaba ficando entre algo de enternecedor e a falta de noção dos realizadores. Um troço tão ridículo e tão fascinante, tudo ao mesmo tempo.

O filme foi dirigido por Woo-Sang Park (de LOS ANGELES STREETFIGHTER, outro petardo do período), mas quando Y. K. Kim assistiu ao primeiro corte de MIAMI CONNECTION, não gostou muito do resultado. Resolveu que queria filmar mais algumas cenas para dar uma melhorada. Só que a essa altura, Park já não estava disponível e Kim meteu a mão na massa e dirigiu o que bem quis para melhorar o filme, e que acabou por ser a versão final. E se esta versão aqui ele achou que ficou boa, imagino o que deve ter sido a versão que ele achou ruim. Enfim…

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Mas acima de tudo, MIAMI CONNECTION possui uma boa energia, um típico exemplar feito com muito entusiasmado e por pessoas que claramente se divertiram muito fazendo (grande parte do elenco é formado pelos alunos de taekwondo de Kim). Só não sei se tudo isso que foi escrito aqui é suficiente para justificar o culto que surgiu pra cima do filme entre os fãs do gênero nos últimos anos. Mas ele merece ser visto, especialmente acompanhando de alguns malucos que curtem esse tipo de tralha, com algumas latinhas de cerveja, num domingo à tarde e chuvoso. Não existe programa melhor!

Os membros da “Dragon Sound”, reunidos novamente.

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Texto originalmente escrito e publicado no Action News.

DUPLO IMPACTO (Double Impact, 1991)

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Curioso pensar que Jean-Claude Van Damme, no auge da primeira fase de sua carreira, ainda estava na fissura de provar mais uma vez suas habilidades, não apenas como homem de ação badass, mas como um ator com certas qualidades dramáticas, antes de encarar super produções bancadas por grandes estúdios.

Não bastou LEÃO BRANCO, CYBORG e GARANTIA DE MORTE, filmes que o belga conseguia sair um pouco da zona de conforto e tentava desenvolver figuras diferentes umas das outras. Ou pelo menos encenava situações que exigissem mais de JCVD como ator dramático. Mas foi com DUPLO IMPACTO que essa ideia de deixar sua marca como um artista mais refinado, mesmo trabalhando em filmes de gênero, chega ao seu limite máximo. Definitivamente o filme mais desafiador de sua carreira até então, com o belga dividindo a tela e lutando lado a lado com seu ator favorito: ele mesmo.

Posteriormente, Van Damme interpretaria mais de um papel num mesmo filme, como RISCO MÁXIMO e REPLICANTE, mas nada parecido como encarnar os irmão gêmeos Chad e Alex. Inspirado no clássico da literatura Os Irmãos Corsos, de Alexandre Dumas, DUPLO IMPACTO é sobre esses dois irmãos, separados com seis meses de vida, que se reúnem depois de vinte e cinco anos para encher qualquer meliante que entre em seus caminhos de tiro, porrada e bomba em prol de uma vingança contra os assassinos de seus pais.

A trama mesmo não tem lá muita importância, é mera rotina para o desenvolvimento das duas práticas que realmente valem em DUPLO IMPACTO, que são as sequências de ação e a construção dos dois personagens centrais, ambos interpretados por Van Damm, e como o sujeito consegue lidar com esse empreendimento. Nos dois polos, o filme se sai de maneira brilhante.

Van Damme nunca esteve tão envolvido num projeto como em DUPLO IMPACTO. Concebeu a história, e vejam só, inspirado em literatura clássica; escreveu o roteiro (juntamente com o diretor Sheldon Lettich); dirigiu as cenas de ação; e teve a ousadia de interpretar dois personagens totalmente diferentes, que em certas ocasiões interagem entre si. E por mais difícil que se possa acreditar, Van Damme convence. Por isso enfatizo que se a ação é crucial em DUPLO IMPACTO, o mesmo tem de ser dito sobre a performance de JCVD.

Na trama, Chad foi criado num orfanato de freiras francesas em Hong Kong (motivo pelo qual possui sotaque francês) e cresceu nas ruas, envolvido com criminosos, calejado desde cedo com as dificuldade da vida dura. O outro, Alex, é mais sensível e inocente. Conseguiu ser levado pelo guarda-costas de seus pais, Frank (Geoffrey Lewis) para a França (mais uma explicação para o sotaque) e depois foram para L.A. montar uma academia, onde dá aulas de ginástica e karatê. Um sujeito que nunca teve que arregaçar as mangas e teve certos privilégios. Personalidade e caráter opostos, mas numa dessas coincidências amadas pelos fãs do gênero, a única coisa que ambos têm em comum é o talento em artes marciais.

E ao rever o filme recentemente, meu cérebro entrou em colapso e tive sérias dúvidas se Van Damme, na construção de ambas personagens, não teria estudado o famoso método de Stanislávski e se tornado ator da mesma estirpe de um Marlon Brando e Paul Newman. Basta observar a sutileza do olhar, das expressões, o comportamento em cena quando encarna Alex, ou o jeito grosseiro na representação de Chad… E você realmente acredita que há dois JCVD’s no filme.

Mas não vamos esquecer que DUPLO IMPACTO é um filme de ação. E é importante também para JCVD mais a capacidade de encarar Bolo Yeung num “mano a mano” do que demonstrar seus sentimentos diante de seu irmão gêmeo – o que na verdade o faz com incríveis resultados, como quando Chad pensa que sua namorada está pulando a cerca com Alex e, num frenesi de ódio, enche a cara e quebra tudo o que vê pela frente, numa atuação digna de um Leão de Ouro em Veneza. Mas quando o sujeito têm que espreitar por trás de um inimigo e quebrar seu pescoço sem chamar a atenção de outros bandidos, aí, meus caros, Van Damme é pura poesia…

O sujeito nunca esteve tão bem em frente às câmeras. Há uma sequência em que Chad tira um guarda de circulação e percebe a chegada de outros. Ele pega uma pistola em câmera lenta, enquanto seus adversários chegam atirando com metralhadoras, que obviamente nunca vão acertar o nosso herói, só para que o ele ainda em slow motion, faça uma pose cinematográfica, enrijeça seus músculos do braço e comece a atirar precisamente em cada bandido. Uma coisa linda para os fãs, mas que daria um autêntica úlcera aos cinéfilos que frequentam espaços culturais e cinemas “de arte”.

A ação do filme é simplesmente espetacular, com a classe e objetividade formal que esse tipo de cena merece. E a direção de Sheldon Lettich, que já havia dirigido Van Damme em LEÃO BRANCO, é muito energética. Alguns tiroteios são inspirações óbvias do cinema de Hong Kong, com Chad empunhando duas pistolas em trocas de tiros frenéticos. Curioso que a primeira escolha para a direção do filme era Albert Pyun, que também já tinha trabalhado com Van Damme, em CYBORG. Embora seja um hábil diretor de ação, sua pegada é bem diferente, abstracionista e experimental… Talvez DUPLO IMPACTO hoje fosse um objeto de arte nas mãos de Pyun. Seria demais para o meu coração. Então é melhor deixar como está.

As sequências de luta em DUPLO IMPACTO podem não ter uma coreografia de encher os olhos, mas a maioria são realizadas em contextos e cenários que deixam tudo mais tenso e emocionante. Algumas até possuem boas sacadas visuais, como a que Chad enfrenta um sujeito na penumbra, num excelente trabalho atmosférico de fotografia e jogo de sombras.

DUPLO IMPACTO deve ser o filme de Van Damme com a maior galeria de vilões interessantes amontoados numa mesma história. São dois cabeças do crime, responsáveis pela morte dos pais dos gêmeos, vividos por Alan Scarfe e Philip Chan, mas também seus capangas: uma mulher musculosa cuja chave de perna seria capaz de estraçalhar uma laringe; há um sujeito que usa botas com esporas e mata suas vítimas com chutes que rasgam o pescoço do infeliz; e a cereja do bolo… er… que é literalmente o Bolo Yeung, uma escolha pessoal do próprio Van Damme para compor o elenco. Os dois ficaram amigos íntimos depois de contracenarem em O GRANDE DRAGÃO BRANCO.

Vale destacar ainda no elenco o grande Geoffrey Lewis, que consegue, no meio desse monte de brucutus, ser um dos personagens mais badasses de DUPLO IMPACTO. A sequência inicial em que salva os gêmeos da execução é um primor. E também Alonna Shaw, que faz a namorada de Chad e oferece alguns dos momentos mais calientes do filme.

É verdade que em termos narrativos, não há nada de novo para se ver aqui. Trata-se de mais um filme de ação do período como outro qualquer nesse sentido. O que não deixa de ser um ótimo exemplar do gênero com o suficiente para uma agradável sessão num domingo à tarde acompanhado de uma cerveja bem gelada. No entanto, DUPLO IMPACTO é bem mais que isso. Algumas situações mais movimentadas são realmente criativas e pensadas para se tornarem antológicas. E conseguem facilmente essa proeza, ou quem viu o filme quando era moleque esquece do épico confronto entre Van Damme e Bolo Young? Além disso, temos o fator Van Damme em dose dupla, que eu, particularmente, considero seu melhor desempenho. Seja no esforço para construir dois personagens opostos, seja nas sequências de ação com seu singular “cinema corpo”, seja usando uma calça legging atochada no rabo fazendo espacate diante de várias garotas… Um clássico.

LEÃO BRANCO – O LUTADOR SEM LEI (1990)

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LEÃO BRANCO – O LUTADOR SEM LEI talvez mereça ser observado com mais atenção. Não que seja maltratado ou coisa do tipo, os fãs de filmes de luta até gostam, mas poucos veem algo a mais. E quem estou tentando enganar? Provável que nem exista esse “algo a mais”. É simples, direto, filme da mais pura essência narrativa voltada para a pancadaria como eram tantos outros que alegravam a infância dos moleques nos anos 90. Ou seja, funciona perfeitamente como aquilo que se propõe a ser, um veículo para Jean-Claude Van Damme demonstrar seus talentos em artes marciais e contar uma história que lhe proporcione isso. E só. No entanto, revendo essa semana, percebi umas nuances subjetivas por trás de toda a simplicidade narrativa que colocaria LEÃO BRANCO como o filme mais definitivo dessa fase inicial pós-estrelato da carreira de JCVD.

É o filme que sintetiza a obra de Van Damme: a linguagem do físico, do corpo como instrumento de dramaturgia, dos excessos, dos desacertos, da superfície, da maneira mais intensa que qualquer outro filme estrelado por ele até então. Principalmente em como se entrega a este personagem específico, Lyon, o legionário desertor, que foge para os Estados Unidos após receber a notícia que seu irmão está à beira da morte. Entrega-se mais até do que ao interpretar Frank Dux em O GRANDE DRAGÃO BRANCO, ou quando viveu Kurt Sloane em KICKBOXER, pra ficar em dois dos seus filmes de maior sucesso no período. Há uma expressão facial que Van Damme carrega todo o filme, um olhar que o desconstrói como típico herói dos “kickboxer movies”, um olhar insuportavelmente triste, vulnerável, um olhar de pedra no qual só vejo paralelo em um Buster Keaton.

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É a partir daqui que Van Damme prova estar preparado para encarar o peso de ser o astro de ação que fora nos anos 90. É como se depois de ter atingido o estrelato com seus primeiros filmes, o sujeito quisesse confirmar seu propósito como ator e realizar alguns trabalhos mais pessoais e intimistas – ainda que totalmente subjugados ao gênero, mas que também faz parte das suas idiossincrasias – antes de finalmente alçar vôos maiores. LEÃO BRANCO é o resultado dessa prova, um filme menor, mas que lá no fundo sintetiza toda uma carreira que estava por vir e reafirma o fenômeno Jean-Claude Van Damme dos anos 90.

Mas vamos à trama, que também nos interessa. A história começa em Los Angeles, com François, um sujeito que é incendiado durante uma negociação de tráfico de drogas. Ele sobrevive, mas tem o corpo todo queimado e grita por seu irmão, Lyon! Mas Lyon está no norte da África fazendo trabalhos forçados para a Legião Estrangeira Francesa. Quando recebe a notícia sobre o estado de seu irmão, conversa com seus superiores para pedir uma licença ou algo parecido para poder visitar o ente querido. Mas seus superiores são filhos da puta o bastante para não deixar. O jeito é escapar, arrumar um barco e ir para os EUA.

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Chegando em Nova York às duras penas, sem um puto no bolso, percebe uma movimentação estranha debaixo de um viaduto. Descobre um pequeno negócio de luta clandestina rolando solto em plena luz do dia e vê a oportunidade de, à base da pancada, descolar uma grana. Lyon não perdoa, quebra a cara do seu oponente e ainda ganha um autoproclamado agente de lutas, Joshua (Harrison Page), que promete levá-lo para L.A. Acaba, no entanto, se envolvendo num universo de lutas clandestinas bem maior, onde rola muita grana e diverte milionários entediados com lutas de boxe convencionais, buscando uma emoção a mais. Uma das responsáveis pelo circuito é Cynthia, interpretada por Deborah Rennard (GUERREIROS DO APOCALIPSE), que além de perceber potencial em Lyon, faz de tudo para usar o corpo do sujeito para outras coisas… Vale destacar também a presença do grande Brian Thompson (COBRA) como braço-direito de Cynthia.

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Ao desembarcar em L.A, Lyon descobre que seu irmão já bateu as botas e agora tem de lidar com a viúva, Nicole (Ashley Johnson), que o culpa por tê-lo abandonado. Então decide fazer a única coisa que sabe, entrar de vez no círcuito de lutas clandestinas e ganhar dinheiro suficiente para ajudar o que resta de sua família. Ao mesmo tempo, possui dois legionários lhe vigiando, tentando prendê-lo e levá-lo de volta para ser julgado por deserção – uma situação parecida com a de Frank Dux, personagem que JCVD viveu em O GRANDE DRAGÃO BRANCO, que vai participar do Kumite em Hong Kong e dois agente do governo ficam na sua cola para levá-lo de volta. Uma curiosidade aqui é que um dos dois legionários é vivido por Michel Qissi, que é ninguém menos que o Tong Po, de KICKBOXER.

Um detalhe que gosto bastante em LEÃO BRANCO é que Lyon nunca segue a trilha da vingança atrás dos responsáveis pela morte de seu irmão. O médico diz que provavelmente o assassino já foi capturado, nunca se sabe… Mas isso basta. O filme simplesmente deixa isso de lado e o protagonista apenas se concentra em tentar compensar sua ausência e obter dinheiro para ajudar sua cunhada e a adorável sobrinha. E o faz sujando as mãos de sangue, sem que isso desperte qualquer reflexão ética sobre seus atos, não há momento para julgamentos num filme desses. É um filme de porrada, caralho, vence quem fica em pé, não importa o que aconteça! Menos ética e mais honra era a palavra de ordem dos filmes de luta dos anos noventa, algo que o politicamente correto nos fez o favor de exterminar no cinema atual, com raríssimas exceções. E que LEÃO BRANCO segue à risca.

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Mas falando em porrada, um dos principais atrativos de LEÃO BRANCO é a diversificação das cenas de luta. São vários momentos em que Lyon arregaça as mangas e arrebenta seus adversários sem que, no entanto, o filme soe repetitivo, sempre inovando em oponentes e ambientes. Cada confronto, uma narrativa, cada rival, uma personalidade diferenciada – um escocês, de kilt e tudo; um cabeludo meio capoeirista; o desafiante final, Attilla, um brutamontes que sai de uma limousine de terno preto e um gatinho branco no colo… Os cenários também se renovam em cada luta: uma garagem iluminada com os faróis de carros à uma quadra de squash ou uma piscina com água em um dos lados…

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O diretor de LEÃO BRANCO é Sheldon Lettich, co-roteirista da KICKBOXER, e faz aqui um trabalho muito seguro, mas com certa personalidade. Manda bem nas cenas de luta, coloca a câmera no lugar certo, mas em alguns momentos chega a impressionar. Há um plano, por exemplo, de Nicole e sua filha saindo do apartamento e caminhando pela rua enquanto a câmera as segue numa grua bem lenta mostrando a rua e o bairro. Não parece que o plano tenha qualquer outro propósito que isso… No entanto, de repente, a câmera chega no apartamento do outro lado da rua e, no primeiro plano, mostra um dos legionários pra fora da janela as espionando. Uma cena simples, mas filmada com a mesma elaboração que veríamos num filme de um Brian De Palma… O tipo de coisa que não se espera ver num filme do Van Damme do período.

Mas isso é o de menos. O que realmente impressiona mesmo em LEÃO BRANCO é a sua veia definidora, a presença física e grande atuação de Van Damme, numa entrega que há muito não se vê nesse tipo de filme. Vale destacar que o filme é o primeiro roteiro escrito pelo próprio JCVD (juntamente com Lettich) que é levado às telas. O que intensifica ainda mais essa ideia de entrega tão pessoal que senti nessa revisão. Ok, LEÃO BRANCO certamente não vai mudar a vida de ninguém, nem quero dizer que seja uma obra-prima a ser redescoberta. Continua sendo o filme escapista de pancadaria que se espera. Muita pancadaria, aliás. E é bem provável que eu prefira outros filmes citados aqui neste texto, além de CYBORG, outro exemplar que veio antes, e que talvez seja o meu favorito do homem. Mas deem um pouco mais de atenção ao desempenho do belga quando forem ver ou rever LEÃO BRANCO. Garanto que vão se surpreender.

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KICKBOXER – O DESAFIO DO DRAGÃO (1989)

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KICKBOXER – O DESAFIO DO DRAGÃO forma uma espécie de trilogia do “Dragão” com outros filmes que Jean-Claude Van Damme estrelou em sequência no fim dos anos 80, no seu período de ascensão. Pelo menos aqui no Brasil podemos chamar de “trilogia”, já que BLOODSPORT recebeu o título nacional de O GRANDE DRAGÃO BRANCO e CYBORG tem o subtítulo O DRAGÃO DO FUTURO.

Claro, uma picaretagem dos nossos distribuidores para associar os filmes de JCVD de alguma forma diante do público. No trabalho seguinte do belga, resolveram dar uma variada e mudaram o animal: LIONHEART ficou LEÃO BRANCO – O LUTADOR SEM LEI (1990), que em breve eu comento por aqui. Por enquanto, ficamos com KICKBOXER. É hora de enfaixar as mãos, molhar com resina, afundar em cacos de vidro e voilá, tudo pronto para mais uma sessão nostálgica com um dos nossos action heroes favoritos.

BIGODE E MULLETS. AH, OS BONS ANOS 80!

Dirigido pela dupla Mark DiSalle (produtor de O GRANDE DRAGÃO BRANCO) e David Worth (LADY DRAGON), a partir de uma história do próprio Van damme (que ficou responsável aqui pela direção das cenas de luta e provavelmente da famigerada sequência da dancinha), KICKBOXER é centrado em Kurt Sloan (Van Damme), um aspirante a lutador e companheiro do seu irmão mais velho, que por um acaso é o campeão mundial americano de Kickboxing, Eric “The Terminator” Sloan (Dennis Alexio, que realmente era campeão de kickboxing), cujos mullets e o bigodinho de trocador demonstram claramente que estamos num bom e velho filme da década de oitenta.

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LIÇÃO DE KICKBOXER: NÃO SEJA UM BABACA ARROGANTE

Procurando por novos desafios, Kurt e Eric viajam para a Tailândia, onde estão os melhores lutadores do mundo. Eric desafia o campeão local, Tong Po (Michel Qissi), para um combate. Na cabeça de Eric, arrogante pra cacete, ele pensa que será moleza chegar no país, diante de uma cultura alheia, e vencer o campão tailandês com a mesma facilidade que seus oponentes habituais. Mas os problemas começam a poucos instantes do início da luta, quando Kurt busca gelo para o irmão e acaba vendo pela primeira vez o temido adversário.

Tong Po surge em cena de costas, balançando sua longa trança na cabeça careca. E praticando seu aquecimento antes de ir para luta. O que consiste em chutar o pilar do seu aposento e ver o pó cair do teto ao chão. Desculpem meu francês, mas não precisa ser um gênio para perceber antes mesmo da luta que Eric Sloane está literalmente fodido.

O estilo de luta comum da Tailândia é o Muay Thai. Ou seja, usa-se cotovelos e joelhos. Bem diferente do kickboxing que The Eliminator está acostumado. Mas Eric, orgulhoso e confiante, não acha que tem que se importar com esses pequenos detalhes, por mais que Kurt lhe suplique para que a luta seja cancelada. E, obviamente, o inevitável acontece. Eric é estraçalhado por Tong Po de todas as formas possíveis, com direito a uma cotovelada na coluna vertebral que deixa o campeão americano paralisado o resto da vida da cintura para baixo.

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O ingênuo Kurt, obviamente, fica chateado com a situação. Até porque os funcionários do ginásio não lhe dão exatamente um tratamento VIP. Os caras pegam Eric, levam-no para fora em uma maca, colocam-no na rua e trancam o portão do recinto. E pronto. Felizmente, num momento de fúria ainda em cima do ringue, Tong Po desfere um chute Em Kurt, que cai, literalmente, no colo de um americano, ex-forças especiais, chamado Winston Taylor (Haskell V. Anderson III) que estava assistindo aos combates. Um jeito estranho de começar uma amizade, mas Winston acaba levando Eric e Kurt para um hospital.

“… E QUE A MÃE DELES FAZEM SEXO COM MULAS”

O resto do filme é o básico. Desejando vingança, Kurt procura treinamento para poder enfrentar Tong Po como forma de honrar seu irmão. Winston lhe apresenta Xian (Dennis Chan), um treinador localmente famoso, mas há muito tempo recluso. Relutante no início, Xian percebe algo em Kurt e concorda em treiná-lo. E tome montagens de treinamentos dos mais bizarros ao som de músicas oitentistas e inspiradoras. Kurt tem as pernas esticadas à força, pratica movimentos de artes marciais sob a água, quase quebra a perna chutando uma árvore até cair duro no chão, corre de um cão com carne presa à coxa, treina nas ruínas de antigas civilizações orientais, entre outras coisas…

Mas nada nos prepara para a melhor sequencia de KICKBOXER. O melhor teste é de longe quando Xian leva Kurt a um bar, deixa-o totalmente bêbado e o manda para dançar na jukebox com algumas senhoritas. O que leva a um bando de locais a atacá-lo. A sequência de luta é boa, mas o que torna todo este momento lendário é o gingado entusiástico de Van Damme, com um sorriso maroto, rebolando e descendo até o chão. Ui!

Mais tarde, Xian comenta o que fez os sujeitos mal encarados do bar ficarem tão nervosos, numa das frases mais brilhantes de KICKBOXER: “Eu contei que você disse que eles não eram bons lutadores… E que a mães deles fazem sexo com mulas“. Mas se fosse pra ficar ofendido apenas pela dancinha do Van Damme, eu acho que também faria todo sentido.

TONG PO E A MÁFIA TAILANDESA

Como se não bastasse apenas um vilão, que é cão chupando manga na luta, em meio a todo o treinamento de Kurt tomamos conhecimento de que há também um mafioso por trás de Tong Po. Freddy Li (Steve Lee) comanda uma organização criminosa que toca o terror nos pequenos comerciantes. E ainda apimenta mais a situação de Kurt em sua jornada de vingança. Em determinado momento, por exemplo, ele sequestra Eric para chantagear Kurt e garantir que o americano perca o combate. A coisa fica mais pesada ainda quando seus capangas chegam ao ponto de prender a namoradinha de Kurt, sobrinha de Xian, para que seja estuprada por Tong Po. Tudo para desestabilizar o nosso herói. Esses caras não têm escrúpulo algum…

E Tong Po, como podem ver, não é apenas um adversário a ser batido em cima do ringue. O sujeito é o mal personificado e tem esse background ligado à máfia. Além de ser um estuprador filho da puta. Po não tem tanto tempo em cena para apresentar realmente uma personalidade. Da mesma maneira que Chong Li em O GRANDE DRAGÃO BRANCO. É apenas o típico vilão retratado como um monstro, uma unidimensionalidade que se encaixa perfeitamente ao tipo de filme que temos aqui.

Curioso que nos créditos iniciais, Tong Po seria interpretado por “ele mesmo.” Como se Tong Po realmente existisse. Seria algum famoso lutador que não se importa de ser retratado dessa maneira? Era o que eu pensava quando assistia ao filme na minha infância. Bem, por mais tentador que seja essa ideia, a verdade é que o sujeito é interpretado por Michel Qissi, um lutador profissional, amigo de infância de Van Damme. Foi o seu treinador pessoal para O GRANDE DRAGÃO BRANCO (além de ter uma pequena participação no filme, é ele que tem a perna quebrada por Chong Li). Em KICKBOXER, colocaram uma maquiagem no homem para parecer asiático, a célebre trancinha, e já está. Um dos mais icônicos vilões da galeria que Van Damme encarou em sua carreira.

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VAN DAMME E UM CLIMAX À MODA ANTIGA

Como é habitual nesses filmes de início de carreira, Van Damme é um bocado rígido no seu desempenho. Mas até que tenta, dentro de seus limites, explorar seu “talento” dramático. Ele consegue convencer, por exemplo, na situação de desespero quando seu irmão se machuca. Ou passa tristeza no momento em que recebe a notícia de que Eric nunca voltaria a andar. Claro, o sujeito nunca foi um Orson Welles, não dá pra exigir uma atuação shakespereana do belga. Ademais, Van Damme preenche os requisitos que o tornaram num dos grandes astros do cinema de ação do período. É hábil lutador, tem presença em cena e, principalmente, muito carisma.

É evidente que vamos perceber melhor a arte de Van Damme nas sequências de pancadaria. É quando o sujeito fica mais à vontade. Em KICKBOXER essa lógica chega ao seu limite no combate final entre Kurt e Tong Po. Por mais que eu tenha ressalvas quanto a luta em si, é impossível não encher os olhos ou estampar um sorriso na cara se você for um autêntico fã desse tipo de material. Temos Van Damme e Qissi explorando ao máximo do que chamamos de “cinema físico”, há uma excelente ambientação – a luta foi planejada nos “moldes antigos”, nos subterrâneos, iluminado por tochas – e há ainda o memorável detalhe das mãos enfaixadas, mergulhadas em resina e, em seguida, coberta de cacos de vidro. Mas que de certa forma não parece causar tanto dano quanto parece.

As ressalvas vão para a própria construção e encenação da luta. Pelo menos enquanto Eric se encontra refém dos capangas de Freddy Li e Van Damme é obrigado a perder a luta, a coisa toda ainda funciona e prende a atenção. Tong po é brutal e não dá moleza, mesmo fazendo diversos joguinhos para agradar o público presente na arena. Obviamente ele sabe que vai ganhar de qualquer jeito. O problema é a partir do momento que Kurt nota que seu irmão está a salvo e percebe que pode atacar de verdade. Tong Po, de repente, se torna mais fácil de bater que bêbado em fim de festa. O tailandês não demonstra a mínima resistência e todo golpe de Kurt entra fácil. A partir daí é só pose. É só Van Damme enrijecendo os músculos pra ficar bem nos enquadramentos. E em termos de qualidade de luta, coreografia, até mesmo edição, a coisa desanda…

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Se na execução do confronto entre Kurt e Po, deixaram a desejar, ao menos os diretores foram inteligentes o suficiente para incluir no meio da sequência de luta uma outra cena mais agitada na qual alguns coadjuvantes têm a oportunidade de botar para quebrar. Xian e Taylor aproveitam o evento e resgatam Eric dos seus sequestradores, com direito a tiros e explosões ao melhor estilo anos 80. E Eric até ajuda da maneira que pode, desferindo alguns golpes mesmo preso em uma cadeira de rodas. Portanto, no fim das contas, o resultado final do climax é positivo. Tem seus problemas, mas é divertido de se ver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tirando pequenos detalhes, KICKBOXER é um grande filme, feito na medida certa para quem curte o gênero. É honesto, não tem receio de parecer ridículo e tem Van Damme esbanjando carisma. Se você gosta de uma história inspiradora, montagens de treinamento e cenas de luta legais, tá na hora de (re)ver KICKBOXER. Vale lembrar ainda que o filme teve quatro continuações nos anos 90. Nenhuma delas com Van Damme. Mas duas dirigidas por Albert Pyun, que é o responsável por CYBORG, um dos meus trabalhos favoritos de JCVD. Recentemente tivemos uma espécie de refilmagem, KICKBOXER: VENGEANCE. Van Damme reaparece como coadjuvante de luxo, interpretando o mestre que treina um jovem lutador. E os caras parecem incansáveis. Já preparam mais duas continuações deste último. KICKBOXER RETALIATION sai ainda este ano, e KICKBOXER: ARMAGEDDON tem previsão para 2018. Haja chute na cara!

CYBORG – O DRAGÃO DO FUTURO (1989) & SLINGER (2011)

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CYBORG vs SLINGER – Dois filmes em um

CYBORG – O DRAGÃO DO FUTURO foi um dos principais filmes de ação que me fez apaixonar incondicionalmente pelo gênero. Trata-se de mais uma variação do subgênero “pós-apocalíptico”, tão comuns nos anos 80 e 90, filmes em que vislumbramos o futuro da pior maneira possível, com suas grandes cidades destruídas por alguma catástrofe natural ou não, geralmente com um punhado de pessoas que já perderam a noção de humanidade tentando sobreviver ao caos, enfrentando as piores desgraças, agindo com violência, imoralidade e sem esperanças de uma vida melhor. No futuro de CYBORG, a “peste” devastou com a população mundial e a esperança do que resta da humanidade é a segurança de uma cyborg detentora da cura. Na trama, esta cyborg precisa chegar a Atlanta, único local com estrutura para trabalhar com o material que provavelmente vai restaurar a ordem no mundo.

Mas existem grupos anarquistas que preferem deixar tudo como está. É o caso da gangue do maquiavélico Fender, que faz de tudo para impedir que a moça de lata chegue ao seu destino. Aí é que entra o nosso herói, Gibson (sim, os nomes dos personagens são marcas de guitarras), na pele do belga Jean Claude Van Damme, um mercenário que se propõe a ajudar a indefesa cyborg, embora seja motivado por um instinto vingativo, rixa do passado entre ele e Fender, o qual é muito bem explorado nos flashbacks do protagonista.

Dirigido por um dos grandes mestres dos B movies, Albert Pyun nunca escondeu sua predileção pelo universo pós apocalíptico e cyber punk. No seu currículo podemos conferir umas maravilhas como NEMESIS, RADIOACTIVE DREAMS, KNIGHTS, VICIOUS LIPS e muitos outros… Portanto, deve ter adorado trabalhar com todos esses elementos neste que é considerado por muitos admiradores o seu melhor filme. Ou não… As histórias dos bastidores de CYBORG é tão insana quanto o próprio filme visto na tela. Pyun fora contradado pela Cannon Films em meados dos anos 80 para dirigir uma continuação de MESTRES DO UNIVERSO e um live-action do HOMEM ARANHA, que seriam filmados simultaneamente. Mas a produtora estava passando por problemas financeiros e cancelou seus acordos com a Mattel e Marvel, proprietárias dos direitos de He-Man e Homem-Aranha respectivamente, apesar de já terem gasto cerca de dois milhões de dólares com sets e figurinos.

Pyun teve a ideia de partir para algo novo, um filme totalmente diferente, se virando com o que tinham disponível, além de um orçamento de menos de quinhentos mil dólares, contando com o salário do astro Van Damme. O realizador escreveu o roteiro em uma semana e logo em seguida partiria para uma das filmagens mais caóticas de sua carreira. Em mais três semanas, o filme estava na lata, filmado, prontinho. A pós-produção também não se mostrou uma experiência confortável. Pyun se mostrava disposto a realizar um filme de gênero mais experimental, sombrio, violento e operático, homenageando aos filmes de samurai e faroestes que ele cresceu assistindo. Essa proposta não era vista com bons olhos pela Cannon e Van Damme, claro. Apesar dos pesares, o resultado é uma obra singular e visionária dentro do possível, limitada pelo baixo orçamento da produção. CYBORG, a versão de cinema, é um dos melhores filmes do diretor e um atestado do quanto pode ser prazeroso assistir a uma fita de orçamento restrito feito com paixão e criatividade. Uma curiosidade é que o filme chegou a ser promovido na TV americana carregando o nome MASTERS OF UNIVERSE 2: CYBORG!

CYBORG é bem curto, não chega a uma hora e meia, mas dispões de ação constante e muita atmosfera, um clima pós-apocaliptico desolador que não fica muito longe dos melhores filmes do subgênero, como MAD MAX 2. Difícil esquecer algumas cenas antológicas – Van Damme nos túneis dos esgotos, em espacate, esperando seu oponente passar debaixo para dar o bote é genial. Aliás, toda a sequência que antecede a crucificação do protagonista e a maneira em que o personagem se livra da cruz com toda a fúria sempre me marcou bastante. Hoje ainda reserva grande força para quem embarca na trama e neste tipo de diversão.

Além de Van Damme (cujo sotaque na época ainda era um problema para Pyun), que se sai muito bem em cena, vale destacar o desempenho do grande Vincent Klyn, o vilão Fender, que possui uma puta presença ameaçadora e poderia muito bem ter sido melhor aproveitado no cinema. A descoberta de Klyn é curiosa. Quando Pyun estava trabalhando no casting para a continuação de MESTRES DO UNIVERSO, o diretor foi ao Havaí procurar um ator que substituísse o Dolph Lundgren no papel de He-Man e acabou encontrando, no meio de vários surfistas, Vincent Klyn. Pyun se impressionou tanto com aquela figura, que quando os projetos se transformaram em CYBORG, Pyun exigiu que Klyn fosse o vilão do filme… Daquelas escolhas simplesmente perfeitas. Pra mim Fender é uma das mais insanas, impiedosas e assustadoras representações do mal no cinema de ação de todos os tempos!

Eu posso estar sendo um nostálgico exagerado, mas CYBORG é um grande filme. Ótimo veículo de ação para o Van Damme, de quem eu nutro uma enorme admiração desde pequeno, muito bem dirigido pelo Pyun, ótimos cenários, atmosfera, efeitos especiais old school que chutam a bunda de qualquer CGI atual, trilha sonora marcante, etc e tal, mesmo sabendo que para a nova geração tudo isso não passa de uma tranqueira sem qualquer interesse… Uma pena.

Passados pouco mais de vinte anos do lançamento de CYBORG, eis que Pyun aparece com SLINGER, a SUA versão de CYBORG! Explico: Apesar de ser um dos títulos mais lembrados de sua filmografia, Pyun sempre fez questão de deixar claro que a versão de CYBORG lançada nos cinemas em 1989 pela Cannon não era o filme que gostaria de ter lançado. O problema é que o grande nome do filme, Van Damme, odiou o corte de Pyun, o que fez o diretor sair do projeto e Sheldon Lettich (roteirista de O GRANDE DRAGÃO BRANCO e diretor de DUPLO IMPACTO) entrar para trabalhar numa nova edição do filme, que se tornaria a versão de cinema. Mas e SLINGER? Bom, num belo dia qualquer lá por volta de 2010, o compositor e parceiro de Pyun, Tony Riparetti, estava limpando seu depósito e encontrou duas VHS com o último corte de Pyun antes de Van Damme e Lettich tomarem conta da produção!

Um detalhe importante é que o termo “director’s cut” não possui a mesma definição da qual estamos acostumados. Não é o trabalho de alguém que resolveu remontar o filme, nem pretende o relançamento comercial para substituir o “original”. SLINGER é uma versão de CYBORG praticamente em estado bruto, percebe-se até uma falta de acabamento em algumas cenas, formatos de tela diferentes, além da imagem ruim, de VHS, sendo destinada somente para os verdadeiros fãs do filme e de seu diretor.

SLINGER é a denominação utilizada para os personagens errantes do universo do filme, como é o caso de Gibson Rickenbacker, vivido pelo Van Damme. Nesta versão, não existe praga alguma devastando a população. Gibson persegue o vilão Fender (Vincent Klyn) por vingança, pura e simples, e nem se preocupa tanto com a tal cyborg sequestrada. Quanto a esta, a sua função no filme é carregar dados que vão ajudar a reestabelecer as redes elétricas deste futuro pós apocalíptico. Ao menos é o que ela diz, mas descobrimos no fim que ela e seus responsáveis possuem segundas intenções não muito amigáveis para o que resta da humanidade, dando ao filme um tom mais depressivo que já tinha.

Fender, na brilhante presença de Vincent Klyn, não muda muito. É a personificação do mal em todos os sentidos em ambas as versões, mas ganha um tom meio religioso aqui, como um enviado do diabo para trazer o caos, reforçado por uma narração em off que não havia na outra versão. Aliás, a director’s cut ganha uma narração que permeia quase todo o filme e as palavras de Gibson dão ao personagem um interessante viés de samurai, algo que Pyun sempre declarou ter buscado para o sujeito.

A trilha sonora é um dos elementos que mais se diferencia do original. Eu gosto bastante da trilha de Kevin Bassinson, com destaque para as melodias suaves e melancólicas das cenas de flashback. Mas a que temos aqui, composta por Tony Ripparetti, parceiro de Pyun até hoje, se encaixa perfeitamente à narrativa, não apenas acompanhando as imagens, mas realmente dá ritmo e eleva a obra num patamar mais operístico, que era a ideia inicial de Pyun.

Não há nada em SLINGER que eu não tenha gostado, mas existem alguns detalhes dos quais eu prefiro na versão anterior. As cenas de flashback na director’s cut são objetivas e surgem antes cronologicamente em relação à versão para cinema. Por exemplo, quando chega a grande sequência da crucificação de Gibson em SLINGER, já sabemos de toda a história entre ele e Fender. A própria cena da crucificação ficou mais curta, embora não menos brutal. Em CYBORG, a conclusão dos flashbacks vinha no momento em que Gibson estava pregado na cruz, prolongando ainda mais a cena, deixando-a com uma carga dramática muito maior. Outra grande diferença é na luta final entre Fender e Gibson. Ambas são excelentes, na minha opinião. Mas a desta aqui, apesar de possuir uma idéia mais visceral, sua execução fica um pouco a desejar, poupa o espectador de mostrar a morte horrível de Fender, deixando as coisas na imaginação, provavelmente pelo baixo orçamento, mas o fato é que entre as duas, prefiro a original, que é mais longa e mostra tudo o que tem que mostrar.

De uma forma geral, acho que esta director’s cut se encaixa mais ao estilo de Albert Pyun naquele período. É mais sombrio e dá ênfase às suas peculiaridades estéticas e influências (Sergio Leone e os filmes de samurai). Já a edição dos produtores deu a CYBORG um aspecto de filme de ação de baixo orçamento que tinha tudo pra ser um tradicional exemplar do período, mas acabou com o olhar peculiar e criativo de um realizador cheio de personalidade. Não é a toa que, de alguma forma, foi um dos filmes que mais me encantou durante a infância, justamente pelos vestígios deixados por Albert Pyun na versão para cinema.

E pra ser totalmente franco com vocês, essa director’s cut não possui modificações gritantes em relação ao “original”, está bem longe de ser “outro filme”. E o grande lance é que o material bruto das filmagens de CYBORG, totalmente realizado por Pyun, é muito bom e é o que realmente faz toda a diferença! Todas as grandes cenas antológicas que transformaram esta obra num clássico permanecem aqui. Acho que se eu pegasse esse material e editasse a minha versão, seguindo a mesma trama, não tenho dúvidas de que seria capaz de fazer um bom filme! Mas são as mínimas nuances que diferenciam uma versão da outra que demonstram claramente a idéia mais autoral de Albert Pyun. E olha que CYBORG, do jeitinho que era antes, já era o meu filme preferido do diretor… essa versão chega apenas para definir não apenas essa minha opinião, mas para colocar CYBORG entre os meus favoritos do gênero.

Ao fim do filme, há uma menção sobre um futuro projeto que retornaria ao universo de CYBORG em uma nova produção. Talvez uma sequência ou uma pré-continuação… Pyun chegou a anunciar e até trabalhar nessas ideias nos últimos anos, mas nada de concreto foi lançado. Continuamos aguardando.

OBS: Como disse antes, Pyun nunca lançou SLINGER comercialmente. Tive o privilégio de conferir o filme há alguns anos, quando o próprio diretor me enviou uma cópia assinada, da qual me orgulho muito e guardo com carinho na prateleira.

THE TALE OF ZATOICHI (1962)

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Quando os estúdios Daiei escolheram adaptar para o cinema a história de Zatoichi, um samurai cego que só havia aparecido em pequenas crônicas publicadas no final dos anos 40, eles não faziam ideia da extensão que seria o sucesso do personagem, que se transformaria num herói popular, ícone da cultura pop japonesa e renderia ainda mais de vinte filmes, seriados, além de spin-offs e revivals em tempos modernos, como a do Takeshi Kitano, em 2003… Ou aquela versão com o Rutger Hauer, FÚRIA CEGA.

Aqui, no entanto, é onde tudo começou. Dirigido pelo veterano Kenji Misumi e magistralmente personificado por Shitaro Katsu, THE TALE OF ZATOICHI inicialmente pode parecer muito influenciado por YOJIMBO, de Akira Kurosawa, lançado no ano anterior e que exibe uma trama similar em alguns pontos. Em ambos vemos um outsider itinerante de habilidade marcial fora do comum vagando em espaços rurais arruinados pelo conflito entre dois clãs rivais que disputam o poder local. Só que Zatoichi rapidamente se estabelece como um protagonista mais equilibrado e simpático, diferente do grosseiro Sanjuro, de Toshirô Mifune, embora as motivações dos dois permaneçam igualmente ambíguas, com a busca de dinheiro em ambos os casos soando como fachada para redenções morais não explícitas.

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A principal diferença de YOJIMBO, porém, é o fato de que THE TALE OF ZATOICHI se assume apenas como um entretenimento popular e não uma obra filosofica auto-consciente, como é o caso de Kurosawa. Até porque estamos falando de um sujeito cego que é capaz de encarar grupos inteiros de meliantes armados com objetos cortantes e ainda por cima se sair bem, como uma espécie de Matt Murdock/Demolidor do Japão feudal. Não dá tempo pra filosofias por aqui… E as sequências de ação são excepcionais, apesar do filme carecer de um pouquinho mais de combates de espada. Ficou um gostinho de “quero mais”…

Na verdade, THE TALE OF ZATOICHI poderia ser bem mais divertido se fosse mais focado no seu protagonista e com mais cenas de ação, mas o excesso de subtramas neste enredo que não chega nem a duas horas de duração é demais para suportar. O filme atira pra todo lado com histórias envolvendo estupro de uma moça, a gravidez de outra, a doença mortal de fulano, abuso, suicídio, alcoolismo, jogos de azar, amor, e vários outros tópicos… Me parece um pouco demasiado complexo para o que poderia ser bem mais simples. E fica faltando mais tempo para explorar a ação. Tá certo que, possivelmente, os realizadores optaram por retratar o fato de que Zatoichi não saca sua espada de forma vulgar e evita ao máximo o confronto. Mas, porra, eu ansiava por um pouco mais das habilidades do lendário samurai cego.

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Mas preciso ressaltar: quando Zatoichi resolve usar sua espada, o resultado é incrível, como no esperado e antológico duelo na pontezinha. São por esses momentos que o filme vale uma conferida.

Impossível deixar de destacar também o trabalho de Shintaro Katsu na pele de Zatoichi, que tem aqui um desempenho do cacete, muito convincente e carismático. É o que realmente segura THE TALE OF ZATOICHI e que faz o personagem tão fascinante. Vou continuar assistindo a série aos poucos e comento aqui a medida que for assistindo. Este aqui, apesar dos pesares, tem todos os méritos para ser o clássico das artes marciais que é. Mas espero que as próximas vinte e tantas continuações tenha um bocado mais de ação…