Tava em dúvida de qual filme assistiria para homenagear o grande Treat Williams, que faleceu recentemente. O cara tem várias bagaceiras deliciosas no final dos anos 90, muita coisa que eu ainda não vi, mas tem também algumas pérolas mais sérias na carreira, que é o que acabei optando… Revi então essa obra-prima do mestre Sidney Lumet, que já fazia uns bons anos que não assistia.
Entre os muitos filmes do final dos anos 70 e início dos 80, quando diretores famosos se tornaram mais extravagantes em produções, orçamentos e abordagem em geral, O PRÍNCIPE DA CIDADE (Prince of the City), com suas duas horas e quarenta e sete minutos, pode ser o mais “simplificado” de todos. O que não é surpresa alguma considerando que Lumet, com seu estilo nada exibicionista, não parece o tipo de diretor que se “descontrolaria”, como Friedkin, Cimino ou Coppola.
Apesar disso, embora O PRÍNCIPE DA CIDADE possa ter sido uma tentativa de retornar ao sucesso que Lumet alcançou com SERPICO oito anos antes, é também um dos seus projetos mais ambiciosos. Um filme épico sobre corrupção policial, dentro de seu estilo visual mais simples, e que parece uma tentativa de examinar o quanto de informação ele poderia empacotar em uma narrativa, o quanto as pessoas realmente poderiam processar toda essa carga de informação.
Mas vamos à trama, que é baseada no caso real do policial de Nova York Robert Leuci. O PRÍNCIPE DA CIDADE conta a história do detetive Daniel Ciello (Treat Williams) do Departamento de Polícia de Nova York, da Unidade de Investigação Especial, uma equipe de investigadores de narcóticos que praticamente não presta contas a ninguém, sendo considerados verdadeiros “príncipes da cidade” aos olhos de todos. Depois que Danny se envolve em algumas ações questionáveis, ele começa a ter discussões com um grupo de assuntos internos e concorda em ajudá-los a expor os casos de corrupção dentro da Força Policial com a única condição de não denunciar nenhum de seus parceiros. O que eles aceitam.
No entanto, à medida que os anos vão passando, Ciello se vê cada vez mais afundado nisso, uma situação que já durou e ainda vai durar muito mais do que ele jamais imaginou e da qual talvez ele nunca consiga sair. E mais pessoas acabam sendo envolvidas, os interesses lá do alto escalão vão transformando e o sujeito começa a perceber que manter essa promessa de nunca denunciar seus parceiros pode ser quase impossível.
A partir disso, a única coisa que posso indicar é que deixem um bloco de anotações do lado na hora de assistir para ir escrevendo detalhes de nomes, eventos, relacionamentos de Ciello com seus parceiros, suas decisões, suas interações, o que precisa acontecer com ele e assim por diante… Definitivamente não é uma obra de narrativa simples. O roteiro de Jay Presson Allen e do próprio Lumet nunca nos oferece uma cena sequer que explique as coisas com mais clareza, não temos nenhuma fala mais expositiva do protagonista que revela exatamente o porquê dele ter aceitado estar nessa posição.
Um policial que certamente não é puro, mas que acredita que pode fazer tudo funcionar em seus próprios termos enquanto lida com algum tipo de culpa que nem ele consegue admitir para si mesmo. Muito menos para os outros. Mas é impossível pra ele saber totalmente o quão grande é a máquina contra a qual se vê enfrentando e suas esperanças iniciais de resolver tudo rapidamente desmoronam debaixo dele, assim como acontece com a cadeira em que ele se senta durante sua primeira visita aos Assuntos Internos.
Tudo funciona no interior do personagem, que passamos em algum momento ter uma noção dos seus sentimentos. Nada 100% claro, mas como quase tudo é mostrado do ponto de vista de Ciello, a gente chega em algumas conclusões sobre suas motivações.
E o desempenho do Treat Williams é fundamental pra percebermos tudo isso. Olhando pra carreira do cara, nunca foi lá um gigante da atuação. E Lumet certamente conseguiria um outro ator de peso para viver Ciello, como um Pacino, De Niro (que esteve cotado numa época em que o De Palma esteve ligado ao projeto) ou Mickey Rourke, sei lá… Mas calhou de ser o Williams e o sujeito entregou a atuação de uma vida. Seu carisma como um desses príncipes é evidente; seu desespero é palpável e sua crença sincera de que ele pode fazer tudo funcionar é o verdadeiro sustento de suas ações durante todo o filme. Contracenando com ele, temos alguns bons nomes no elenco, em destaque para Jerry Orbach. Bob Balaban, James Tolkan e Lance Henriksen também marcam presença.
Como mencionei, em uma fase inicial da pré-produção, O PRÍNCIPE DA CIDADE poderia ter sido dirigido por Brian De Palma e é fácil imaginar como seria um filme completamente diferente, mais exuberante visualmente, mais formalista… Não entro no mérito do que seria melhor ou pior, até porque eu adoro o estilo de ambos. Mas a direção seca e naturalista do Lumet tá perfeita aqui, o modo como retrata uma Nova York suja, cinza, chuvosa e decrépita, um mestre mais preocupado na condução de um monumento em forma de filme do que em questões visuais, com foco maior nessa narrativa complexa de 167 minutos, que faz sentir o peso da duração para dar uma ideia de como tudo é avassalador para o personagem central.
E é interessante a habilidade de Lumet em explorar diferentes ângulos sobre a mesma coisa. Tanto O PRÍNCIPE DA CIDADE quanto SERPICO giram em torno de um detetive de Nova York que luta contra a corrupção policial, enfrentando grandes custos pessoais. A diferença crucial aqui é nas motivações: enquanto o personagem de Al Pacino é impulsionado por seus princípios, Ciello é moralmente ambíguo. E essa ambiguidade permeia toda a essência de O PRÍNCIPE DA CIDADE, que se torna uma exploração bem mais ampla e novelesca, que evita respostas fáceis, do que SERPICO, que acabou se tornando bem mais famoso na filmografia do diretor.
O PRÍNCIPE DA CIDADE até tem muitos admiradores, mas definitivamente nunca foi um dos títulos mais populares de Lumet. O que é uma pena porque acho um dos filmes mais puros do homem, tanto para o bem quanto para o mal. Não é uma experiência fácil de assistir, acho que deixei isso bem evidente durante todo o texto… Mas prefiro admirar um filme que se recusa em fornecer as coisas de “mão beijada”. E Lumet faz exatamente isso com O PRÍNCIPE DA CIDADE. Quase nos força a descobrir as coisas por nós mesmos, até que todo esse um volume imenso de coisas, nomes, situações acontecendo começam a fazer sentido, a ter um efeito em determinado ponto, e o filme alcança seu poder máximo por meio de sua densidade. E, no fim das contas, se torna essa obra-prima que é.
RIP Treat Williams.