Provavelmente a minha fase favorita da filmografia do homem.
RESGATE DE UMA VIDA (The Grissom Gang, 1971)
A “síndrome de Estocolmo”, sob a ótica nada sutil de Aldrich. Uma moça rica é sequestrada e mantida como refém. Ao longo do tempo (provavelmente um par de anos), ela se apaixona pelo seu algoz, um sujeito doente vivido pelo Scott Wilson. Foi um fracasso na época do seu lançamento comercial e pelo que pude perceber é bem achincalhado até hoje mesmo pelos admiradores do Aldrich. Tem seus defensores ferrenhos, e agora finalmente posso me juntar a eles. Não que se trate de uma obra-prima, mas é o tipo de coisa que eu adoro, ainda mais que o filme tem aquele aspecto de filme de gangster vagabundo do Roger Corman dos anos 70. Mas é desses filmes que precisa de um pouco mais atenção pra aproveitar suas riquezas. Ele até aparenta tentar pegar uma carona no sucesso de um BONNIE & CLYDE, de Arthur Penn, e de certa forma o faz, mas também te leva a alguns lugares interessantes nessa trama simples de sequestro durante a lei seca nos EUA, que se desdobra pra um estudo de psicopatia muito interessante – e Scott Wilson tem um bom papel nisso. Há bastante força nessas imagens, nas performances e em como Aldrich trabalha esse tipo de material. O trecho final revela um aspecto mais sentimental do cinema do diretor. Transmite um belo espírito libertário na qual as instituições personificadas pelo pai da garota (enojado com a filha agora ‘impura’) não valem mais que os próprios sequestradores, a família Grissom, que ao menos têm o mérito de mostrar sua monstruosidade à luz do dia, embora paradoxalmente tenham representado a única unidade familiar relativamente coesa do filme.
A VINGANÇA DE ULZANA (Ulzana’s Raid, 1972)
Esse ainda me faltava assistir e, caramba, que petardo! Um dos melhores faroestes revisionistas dos anos 70 sem dúvida alguma. A trama é um jogo de gato e rato entre Apaches e a cavalaria americana que se desenrola na paisagem árida do Arizona, mas toda pontuada por episódios de violência gráfica que devem ter feito Sam Peckinpah orgulhoso e claramente uma alegoria mais confrontadora sobre o Vietnã, sobre hipocrisias e atrocidades coloniais. Aldrich tá implacável na representação da violência por aqui. Há uma sequência onde uma mãe e um filho atravessam um terreno hostil com um único guarda como proteção. Os apaches atacam. O guarda executa a mulher com um tiro na testa sem pensar duas vezes e foge, mas acaba tirando a própria vida com uma bala na cabeça quando seu cavalo cai. O clichê “é melhor morrer do que cair nas mãos dos índios” é levado às últimas consequências de forma explícita. E o sangue jorra como nunca. “É assim que eles são”, diz o aliado Apache da cavalaria sobre a violência de sua tribo. No entanto, o filme não faz muitas concessões ao atribuir a barbárie em nenhum dos lados, nem encontra espaço para heroísmo. É um filme sobre a estupidez humana e a inevitabilidade sinuosa da morte.
Foi a terceira parceria entre Aldrich e Burt Lancaster, que tá excepcional aqui, como não poderia ser diferente.
O IMPERADOR DO NORTE (Emperor of the North, 1973)
“You ain’t stoppin’ at this hotel, kid. My hotel! The stars at night – I put ‘em there. And I know the presidents – all of ‘em. And I go where I damn well please. Even the chairman of the New York Central can’t do it better. My road, kid, and I don’t give lessons and I don’t take partners. Your ass don’t ride this train!” (Number One)
A filmografia do Aldrich nos anos setenta é uma coisa impressionante e este filme aqui é um dos melhores. Provavelmente o filme do diretor que mais vezes assisti na vida (sim, mais até que OS DOZE CONDENADOS). E tem uma das tramas mais cascas-grossas do período: durante a época da depressão, Lee Marvin interpreta Number One, o mais famoso vagabundo caronista clandestino de trens do país; do outro lado temos Ernest Borgnine, o mais sádico e durão condutor que já existiu e que não hesita em colocar pra fora qualquer um que queira viajar sem comprar um ticket, seja na base da martelada na cabeça, no uso de correntes e os mais diversos recursos que vem a calhar, mesmo que o pobre coitado caia nos trilhos e termine partido ao meio. O confronto entre esses dois obviamente será inevitável. E quando finalmente ocorre, é como duas nuvens carregadas que se chocam, causando estrondos ensurdecedores!
Belo filme, cinematograficamente potente, tem ótima recriação do clima da época, os traços da miséria, os programas de rádio, as roupas velhas e rasgadas, um sentimento que parece saído de um livro de John Steinbeck e Jack London, mas sem perder tempo com estudos sociológicos do período em questão (embora as classes estejam obviamente demarcadas nas duas figuras centrais). O IMPERADOR DO NORTE é um filme solto, mais em clima de aventura do que um recorte fiel e chato da depressão americana, e se desenvolve mais em cima do duelo físico e psicológico desses gigantes do cinema americano. Obra-prima.
GOLPE BAIXO (The Longest Yard, 1974)
Na visão de Aldrich, o sistema e suas hierarquias sociais, militares, judiciárias são tão podres que até os degenerados tornam-se heróis. Foi assim em OS DOZE CONDENADOS e é também por aqui. Burt Reynolds (numa das minhas atuações favoritas do sujeito) é um ex jogador de futebol americano que por conta de algumas travessuras acaba preso. Agora, precisa reunir um time de futebol formado pelos prisioneiros da penitenciária para jogar contra o time dos guardas. Ao mesmo tempo em que sua alma é colocada à prova, ele promete uma chance aos seus companheiros de quebrar uns dentes dos sádicos adversários, na longa sequência do jogo de futebol, que é também das mais belas e divertidas alegorias anti-sistema do período. Mais “aldrichiano” que isso é impossível…
CRIME E PAIXÃO (Hustle, 1975)
Eu sempre achei engraçado que a capa do DVD deste filme mostra um carro explodindo, promete um filme de ação deflagrador e tal. Até que um dia decidi assistir e minha sensação se resumia a: “Que diabos é isso? Onde está o velho Burt em ação? Cadê os tiros? As explosões?” Pois é, o filme não tem nada disso, e achei uma porcaria. Deve ter mais de dez anos atrás que vi pela primeira vez…
Fazendo agora essa retrospectiva de Aldrich estava até ansioso para revisitar CRIME E PAIXÃO com outros olhos, já preparado. E aí, meus amigos, não deu outra: é uma maravilha! Um desses filmes que é difícil explicar sua existência. Me deixou até desnorteado… Porque ele realmente tinha todos os ingredientes para ser mais um filme policial com investigação, perseguições e tiroteios, no estilo de OPERAÇÃO FRANÇA e PERSEGUIDOR IMPLACÁVEL, e o diretor certo para isso, um dos grandes nomes do gênero ao lado de Don Siegel, Sam Peckinpah e alguns outros da época. Mas aí, Aldrich resolveu simplesmente pegar tudo isso e transformar em um estudo anti-clímax sobre indivíduos emocionalmente feridos, fragmentados, e jogar a narrativa para um campo mais abstrato. Até existe um enredo definido, uma trama a ser seguida, mas meio que tudo que envolve a investigação da morte de uma jovem é cada vez menos importante dentro das intenções de Aldrich; entra algo mais amplo em jogo, o filme meio que se constrói a partir de uma série de eventos ou circunstâncias que têm o efeito de destruir moralmente os personagens.
Eu não sei o que Aldrich estava passando naquele momento (os EUA eu sei que estavam em um estado de espírito caótico, cheio de crises, o desfecho do Vietnã, Watergate, etc.), mas o fato é que o sujeito fez o seu filme mais amargo, com um Burt Reynolds complexo, dividido entre o dever, embora seja um policial amoral com um código de ética que não vale nada, e o seu relacionamento com a prostituta de alta classe de Catherine Deneuve, com todas as implicações psicológicas que um homem pode ter nessa situação. Filme fortíssimo, um tanto cruel e que carrega um estado de melancolia que poucos filmes policiais dos anos 70 possuem.
Próximo post, vem a derradeira parte desta peregrinação pelo cinema de Robert Aldrich.