MAIS HAWKS

A essa altura, na maratona Howard Hawks que me propus a fazer, já foram 26 filmes conferidos. A velocidade com a qual tenho assistido aos filmes é muito maior do que o tempo que tenho pra parar e postar individualmente sobre cada filme, como no post anterior. Então, vamos de mini reviews mesmo, porque aí dá pra cobrir tudo aos poucos. Aqui vão mais cinco filmes do homem.

THE CRIMINAL CODE (1930)
Depois que um jovem comete um assassinato bêbado, defendendo uma garota, ele é processado por um ambicioso promotor (Walter Huston) e condenado a dez anos. Seis anos depois, esse mesmo promotor se torna o diretor da prisão e oferece ao jovem um emprego como motorista. O rapaz se mantém íntegro no local, mas às vésperas de sua liberdade condicional, um companheiro de cela o arrasta de volta ao mundo da violência, e ele enfrenta escolhas difíceis de fazer… O único problema do filme é a forçada história de amor que surge no final entre o jovem e a filha do promotor, que quase coloca tudo a perder. Mas no geral ainda é um drama prisional bem forte, um olhar duro sobre o efeito que o sistema de justiça criminal pode ter sobre os homens apanhados por ele. Hawks explora mais as possibilidades do cinema sonoro, testando o que fazer com isso. A abertura do filme, com dois detetives tendo um desacordo prolongado sobre as regras de um jogo de cartas a caminho da cena do crime e a capacidade de Huston de transformar um simples “Yeah?” em uma espécie de mantra é algo para se contemplar. Hawks conta uma história muito mais dependente de diálogos e o resultado é bem sólido. Ajuda muito ter um ator do calibre de Huston num desempenho magnífico.

Boris Karloff, num papel pré-Frankenstein, tem pelo menos uma cena memorável, a do assassinato do delator, que aproveita muito bem a sua fisicalidade e expressão corporal. A forma como se move pelas salas com uma graça pesada e aterrorizante é o tipo de coisa que eu não duvido que possa ter influenciado na hora de escalarem Karloff como o famoso monstro no ano seguinte.

SCARFACE (1932)
Esse aqui merecia um texto mais longo. Mas fica pra depois. Por enquanto, a gente ressalta que se trata da primeira obra-prima de Hawks. A trama é obviamente inspirada em Al Capone e é um trabalho definitivo sobre a ascensão e queda de um mafioso com fome de poder. O filme ficou famoso na época por causa da controvérsia e pela violência nessa escalada de poder do protagonista, mas resistiu bem ao teste do tempo (mesmo depois de algumas revisões, apesar de que fazia uns bons anos que não revia), por causa do forte roteiro, as ótimas atuações do elenco, sobretudo um Paul Muni explosivo, e a direção – já magistral a essa altura – de Hawks. Um filme de gangster essencial.

THE CROWD ROARS (1932)
Um famoso campeão de automobilismo (James Cagney) retorna à sua cidade natal para competir em uma corrida local e descobre que seu irmão mais novo tem aspirações de se tornar um campeão de corrida, ao mesmo tempo em que tem que lidar com uma relação amorosa complicada. É outro trabalho do Hawks que tem uma subtrama de amor cego que me tira um pouco do filme (lembram de FAZIL que comentei no outro post?). Mas, no fim das contas, é um filme de 70 minutos que não consegue se aprofundar em muita coisa, acaba sendo divertido de se ver, em especial pelas sequências muito bem feitas de corridas de carro, que tem um senso de tensão e tragédia muito forte. Primeiro filme que Hawks utiliza Cagney, que tá excelente como sempre.

TIGER SHARK (1932)
Esse aqui é um filmaço do Hawks que eu não conhecia. A trama é sobre um pescador de atum português que se casa com uma mulher cujo coração fica dividido entre ele e o seu primeiro imediato no barco. Junto com THE DAWN PATROL, provavelmente é o filme mais puro do Hawks deste período, tem muito dos seus temas habituais, os tipos de personagens e os tipos de valores que ele respeita. Uma colônia unida de homens no trabalho, arriscando a vida, tendo se acostumado com despedidas sem saber se voltam. As sequências de pesca, semi documentais, são tão boas quanto as sequências de ação que Hawks fazia até aquele momento. Mas a alma do filme é o grande Edward G. Robinson interpretando o pescador português maneta, num desempenho magnífico.

TODAY WE LIVE (1933)
Sem dúvida um belo filme. Só demora um bocado pra chegar lá. Começa como um melodraminha bobo, sobre uma moça (Joan Crawford) que se apaixona por um piloto de caça (Gary Cooper) durante a primeira guerra mundial, mas que é dado como morto, então ela vai pra guerra como enfermeira – ou algo do tipo – e se casa com o melhor amigo do seu irmão, até que descobre que o piloto, na verdade, está vivo… Enfim, uma confusão. No entanto, essa traminha de alguma forma ganha força e eventualmente se transforma em um sólido drama romântico com alguns temas habituais do Hawks: um triângulo amoroso em meio à guerra, missões que envolvem sacrifício, homens disputando pra ver quem tem o pau maior… Coisas do tipo.

Sabe-se que a personagem de Crawford foi empurrada à força na trama, os produtores a tinham sob contrato e pediram a Hawks para incluí-la (o roteiro foi escrito por William Faulkner e não tinha a sua personagem). Ela tá até bem, mas as coisas nem sempre acontecem de maneira orgânica (a forma como se apaixona pelo personagem de Cooper é muito esquisita). O filme fica realmente interessante quando os dois homens que disputam seu coração começam a se desafiar, colocando suas vidas em risco além das linhas inimigas. As cenas de ação, tanto pelo ar, quanto pela água, são de encher os olhos. Hawks voltaria a trabalhar com Gary Cooper algumas vezes ainda…

DELTA HEAT (1992)

DELTA HEAT era pra ser uma série de televisão que acabou não despertando muito interesse dos produtores. Nem quando ainda estava no papel. Então, o roteiro do piloto foi estendido pra ser se tornar este longa, totalmente esquecido atualmente, mas que vale uma descoberta. Até porque eu não resisto em indicar um filme que é basicamente um buddy cop movie estrelado pelo Anthony Edwards (MIRACLE MILE), com mullets e brinquinho pendurado no formato de algemas, e principalmente o Lance Henriksen (O ALVO), como um ex-policial badass, com um gancho no lugar de uma das mãos.

Situado nos pântanos da Louisiana, em DELTA HEAT temos Mike Bishop (Edwards), um policial de Los Angeles que viaja até o local para descobrir quem matou seu parceiro, também de LA, que estava na cola uns traficantes de drogas. A sequência inicial, que mostra o assassinato do policial é um primor de iluminação, cores, enquadramentos e estilização. E não é a toa. A direção do filme é de Michael Fischa. Falo mais dele a seguir…

O assassinato do policial, aparentemente, tem as características de um chefão do crime local chamado Antoine Forbes. No entanto, o que se sabe é que Forbes morreu em um tiroteio anos atrás. E o mistério paira no ar. E como o departamento de polícia local é pouco cooperativo, Bishop é forçado a pedir a ajuda do ex-policial Jackson Rivers (Henriksen), se ele quiser descobrir o que realmente aconteceu e os responsáveis pela morte de seu parceiro.

Digamos que, apesar da trama parecer simples e genérica, DELTA HEAT não é o filme pra quem se preocupa com a verossimilhança dos procedimentos de investigação e resolução de crimes. E acaba sendo prejudicado por complicar demais em vez de fazer o feijão com o arroz do cinema policial. Mas pra quem não se importa muito com isso, há um outro lado… Todo o trabalho de detetive aqui é apenas um pretexto para explorar essas figuras e esgotar ideias e situações de “peixe fora d’água” desse policial yuppie de LA vagando pelos pântanos da Louisiana, tendo que trocar seu terno limpinho toda vez que se suja nas mais diversas situações.

E nesse sentido, DELTA HEAT é até mais interessante do que um filme policial mais tradicional. Henriksen, em especial, deita e rola com seu personagem, um sujeito fascinante, uma espécie de capitão gancho (que perdeu a sua mão com a bocada de um crocodilo) e que possui traumas por também ter perdido seu parceiro quando era policial. E se a química entre ele e Edwards não chega aos pés de um Mel Gibson e Danny Glover, na maior parte do tempo é eficaz, gera situações divertidas, com um humor que se encaixa estranhamente bem.

O filme também tem seus momentos mais calientes… Betsy Russell, musa dos anos 80 em filmes como PRIVATE SCHOOL, protagoniza algumas ceninhas com um toque especial. Sua personagem é filha do chefão que está supostamente morto, e acaba sendo um elo da investigação de Bishop. Mas o policial acaba tendo outros interesses pela mocinha, se é que me entendem. A sequência que ela o seduz, fazendo uma dança sensual com pouquíssima roupa é um dos destaques. E a cena que ela sai da cama completamente nua e passa pelos detestáveis ​​policiais locais que resolveram invadir o quarto é um dos pontos altos do filme. E ela está maravilhosa!

Sobre o diretor, Michael Fischa é um sujeito que filma bem pra cacete e com parcos recursos. Seu CRACK HOUSE (1989), produzido pela Cannon, é obrigatório. Ele fez também o cult de horror DEATH SPA (1988) e a comédia de horror MINHA MÃE É UM LOBISOMEM (1989). O fato desses filmes e DELTA HEAT não terem conseguido mais sucesso é um tanto lamentável, mas valem para demonstrar o talento do homem, um diretor subestimado, que filmou pouco, mas que merecia ser mais lembrado.

Mas vamos deixar claro por aqui que DELTA HEAT não é um MÁQUINA MORTÍFERA ou 48 HORAS. É apenas um bom filme de ação policial, com boa dose de humor. Um buddy cop movie torto, mas assistível e divertido, uma brincadeira memorável graças, sobretudo, aos dois personagens principais, Edwards e Henriksen, uma relação que por si só faz com que DELTA HEAT mereça sua atenção e que supera o enredo policial bobo e falho para oferecer entretenimento o suficiente para se justificar.

No Brasil chegou a sair em VHS com o título A CAMINHO DO INFERNO.

URBAN MENACE (1999)

URBAN MENACE é um daqueles “filmes treta” do Albert Pyun, que, para quem já acompanha o blog há mais tempo, sabe que é um dos diretores favoritos do recinto. E pra quem conhece mais ainda a figura, sabe também que o sujeito vivia se metendo em encrenca pra fazer seus filmes. Neste aqui, Pyun deveria ir para a Eslováquia e fazer, em apenas 18 dias, uma antologia, filme com várias historinhas, de crime urbano. Em 1999 já não era muito modinha os chamados hood films, mas os anos 90 nos deu uma boa safra desse tipo de crime movie protagonizado por rappers metidos a gangster, mas era isso que o Pyun faria por aqui. E teria no elenco umas figuras como Snoop Dogg, Big Pun, Fat Joe, Ice-T, que também teria participação na trilha sonora, com trechos de um novo álbum que havia lançado na época…

Mas, enfim, sabem como é o Pyun. Em vez fazer o que foi contratado, um único filme, o sujeito resolveu fazer três longas metragens nesses 18 dias. Daí saiu este URBAN MENACE, CORRUPT e THE WRECKING CREW. Tudo reutilizando o mesmo elenco, locações e equipamentos. Ah, e fez os três filmes ao mesmo tempo, com os atores muitas vezes nem sabendo pra qual filme estavam fazendo tal cena em determinados momentos. Imaginem a qualidade dessas produções…

Independente dos resultados, Pyun conseguiu terminar a façanha no prazo. O problema foi na hora de voltar. Nessa entrevista que fizemos com ele há dez anos, Pyun nos conta que várias fitas miniDV com as filmagens foram perdidas pela Air France no transporte de volta para os Estados Unidos. Então, segundo ele, teve que finalizar apenas com a metade do que havia sido filmado de cada um. Na verdade, o que descobri depois de alguns anos, é que o diretor usou imagens de uma versão workprint do filme para substituir as partes que foram perdidas. Tanto que a janela dos filmes é em letterbox, pra esconder o timecode na parte inferior da tela. Mas, isso são detalhes. Embora expliquem porque a imagem do filme é uma bosta.

Não assisti ainda a CORRUPT e THE WRECKING CREW, mas URBAN MENACE eu parei aleatoriamente pra ver essa semana. E não me decepcionei. Esperava uma porcaria e o que vi foi exatamente isso. Uma porcaria. Mas é um filme tão ruim, mas tão ruim, que me peguei fascinado com sua inépcia, com sua imagem tosca, com as atuações e diálogos ridículos… Um exemplar de Pyun da pior espécie e, por isso mesmo, adorei.

O filme é uma mistura de gangsta/hood movie com elementos de horror. Começa com a cara do Ice-T olhando diretamente pra nós, como um narrador/comentarista social que fala para a câmera seu discurso, desferindo palavões e ameaças. É o que URBAN MENACE tem de melhor.

A trama é sobre um pastor (Snoop Dogg) que busca vingança contra o sindicato do crime local (chefiados por Big Pun & Fat Joe) pela morte de sua família e pelo incêndio de sua igreja. Não se sabe ao certo se o pastor morreu também no incêndio ou se é o fantasma (a resposta acaba sendo revelada mais pro final), mas seja o que for, ele se esconde num armazém abandonado e criminosos são enviados ao local para o matar. Na maior parte do tempo, Snoop Dogg age como uma entidade, um espírito que vaga pelos escombros e corredores do local levando a morte. E Pyun usa uns efeitos especiais e de edição da pior qualidade pra enfatizar o tom de ambiguidade nessa persona fantasmagórica de Snoop Dogg.

Mas quem seguimos realmente nessa história são três capangas (liderados por T.J. Storm), que passam o resto do filme andando em círculos pelos corredores do local procurando Snoop Dogg, ou correndo atrás dele quando o avistam (para ser mais específico, o dublê do Snoop Dogg)… E fica nisso, praticamente toda a narrativa se passa nesse armazém, com diálogos bestas, fotografia horrorosa e toda estourada, fora de foco, e os caras tentando pegar o Snoop. Pelo menos a trilha do Ice-T é maneira.

Quando o filme te leva pra outra situação, em outra locação, na base do sindicato do crime, com Big Pun e Fat Joe sentados conversando com seus capangas, a coisa piora ainda mais – ou melhora, dependendo do seu humor – e temos alguns dos piores trabalhos de câmera, edição, enquadramentos e mise en scene que já vi na vida. É de rolar de rir!

No final, todos os bandidos decidem invadir o armazém. Snoop Dogg faz uma chacina, dando tiro em todo mundo. É uma sequência até divertida, demonstra o velho Pyun experimental do cinema de ação de baixo orçamento, com resultado interessante. Tosco. Mas interessante… E, enfim, URBAN MENACE só tem 72 minutos. Contando os créditos. Claro, às vezes dá a impressão que possui 3 horas de duração, com os persoangens zanzando por um tempão pelos cenários e a cara do Snoop Dogg inserida na edição de forma ordinária. Mas tudo bem. Eu adoro essas porcarias, achei tudo engraçadíssimo, então gostei de URBAN MENACE. Só não vou recomandar e dizer que vale a pena assistir, porque tenho minhas dúvidas se até os leitores que gostam de uma tralha não se decepcionariam com isso aqui. Portanto, estejam avisados.

Curiosidades: Um dos bandidos também enviados ao local para matar o Snoop Dog é vivido por Vincent Klyn, o Fender, de CYBORG – O DRAGÃO DO FUTURO, a obra-prima de Pyun. E o roteiro, se é que podemos chamar esse lixo de roteiro, foi escrito por Tim Story, que alguns anos mais tarde dirigiria aqueles filmes do QUARTETO FANTÁSTICO dos anos 2000… Podem acreditar, URBAN MENACE é, pelo menos, melhor que esses aí.

Em breve comento também CORRUPT e THE WRECKING CREW, que provavelmente devem ser tão ruins quanto esse. Mal posso esperar!

KINJITE: DESEJOS PROIBIDOS (1989)

Filme todo errado, fim de carreira, literalmente, pra uma galera envolvida – último filme do diretor J. Lee Thompson, último filme do Bronson pra cinema, uma das últimas produções da Cannon, já toda endividada e sem muito orçamento pra investir… Tudo isso meio que reflete também o tom desesperado de KINJITE: DESEJOS PROIBIDOS (Kinjite: Forbidden Subjects) em querer ser uma espécie de exploitation de extrema urgência, feito pra ganhar bilheteria, abordando temas apelativos, como tráfico humano, de menores, mas que só resulta mesmo num produto do mais baixo nível – racista, sexista, xenófobo para um caralho…

Bronson interpreta o tenente Crowe da polícia de Nova York. Ele tem uma obsessão por um cafetão e traficante de crianças chamado Duke (Juan Fernández), que está sempre à procura de carne fresca, incluindo a vestal Nicole Eggert na cena de abertura, que tinha 17 anos na época, e que recentemente postei sobre um filme com ela por aqui: THE HAUNTING OF MORELLA.

Crowe tem uma filha adolescente com quem é muito protetor (daí o interesse especial em Duke) e quando ela é apalpada no ônibus por um executivo japonês que se mudou para Los Angeles, o sujeito fica furioso, faz um discurso terrivelmente racista bem no meio de uma multidão de asiáticos. Aqui a coisa entra numa situação tão bizarra que os roteiristas mal se esforçam pra resolver… Mas tudo bem. O fato é que Crowe não sabe que o homem que tocou na sua filha teve sua própria criança, muito mais nova, sequestrada por Duke. Sem o seu conhecimento, Crowe agora está ajudando o abusador de sua filha…

O personagem de Bronson em KINJITE é uma espécie de extensão de seu personagem em DESEJO DE MATAR, o vigilante Paul Kersey. Um revoltado contra o sistema e angustiado pelo mundo violento que o rodeia. Ele bate nas pessoas, atira nelas e, pasmem, enfia um vibrador na bunda de um cara para arrancar informações dele… Há uma cena em que Crowe “sequestra” o próprio Duke e o faz comer um Rolex caríssimo. E depois coloca fogo no carro do traficante. O personagem do Bronson deveria procurar um psiquiatra urgente. Mas, como estamos diante de um filme, uma obra de ficção, é preciso dizer que essa cambada mereceu o tratamento do policial. Incluindo a punição de Duke no final do filme e que comento a seguir.

Duke é um vilão da pior espécie. O cara sequestra a menina japonesa, a leva para seu apartamente onde ele e seus capangas (um deles o grande Sy Richardson) fazem fila para “experimentá-la” antes de a entregar no mercado de prostituição infantil. Se existe algo que não dá pra acusar de KINJITE é de não ser subversivo. Eu diria até que poucos cineastas do underground chegariam a tão baixo nível…

Algumas cenas memoráveis: Obviamente que a do Bronson segurando um pênis de borracha seria um destaque. Outra que gosto é quando Crowe e seu parceiro colocam o personagem de Richardson de ponta cabeça na varanda de um prédio, só para assustá-lo e arrancar algumas informações, e o sujeito acaba despencando lá de cima numa piscina. É divertida. Mas fica melhor ainda pelo grau baixíssimo da produção. Richardson tem a pele negra e quando vemos o dublê boiando é um cara branco… Que situação. O clímax de KINJITE também é bacana, uma ceninha de ação, bem elaborada, com Bronson sendo o badass de sempre, empunhando um revólver e despachando meliantes. E, claro, agora sim, quando Duke é preso e está sendo colocado numa cela, os prisioneiros ficam alvoroçados. Um deles é ninguém menos que Danny Trejo, que tem apenas uma fala, mas é bem receptiva. Ele dá as boas-vindas ao recém chegado:

Sobre o executivo japonês, como disse, fica por isso mesmo. O cara recupera a sua filha, mas nunca acerta as contas com Crowe por ter passado a mão na filha do policial…

Enfim, apesar do mau gosto que paira no ar em vários momentos, vocês vão me desculpar, mas KINJITE é simplesmente impagável. Ver Charles Bronson segurando uma manjuba de borracha pra enfiar lá “onde o sol não brilha” de um sujeito é simplesmente algo que nem um Dirty Harry teria coragem. São MUITAS as sequências dessa porcaria que me fazem dar altas risadas e várias cenas que tornam isso aqui marcante, uma diversão das boas. O tipo de filme que acabo curtindo pelos motivos mais bizarros possíveis.

CAÇADA MORTAL, aka CAÇADOR DE MORTE (1978)

Walter Hill disse certa vez que o roteiro de CAÇADA MORTAL (The Driver) foi o mais puro que já escreveu. A história é simples: Ryan O’Neal (em um papel escrito para Steve McQueen) é um motorista especializado em fugas de assaltos. Bruce Dern é o detetive na sua cola.

E é isso.

Alguns detalhes de trama são acrescentados, como a mulher misteriosa interpretada por Isabelle Adjani, que faz um meio de campo entre os dois sujeitos; há perseguições de carros, assaltos, traições… Mas a narativa é de um minimalismo tão absurdo que Hollywood não estava lá muito acostumada num filme de gênero. Não é surpresa, portanto, notar que CAÇADA MORTAL foi bem recebido na Europa, mas na América foi um fracasso financeiro e de crítica.

Mas CAÇADA MORTAL conseguiu se induzir na consciência coletiva e se tornar um modelo para diretores e alguns dos melhores thrillers americanos que vieram posteriormente. Podemos citar produções mais recentes, como DRIVE, de Nicolas Winding Refn, e BABY DRIVER, de Edgar Wright (esse nem gosto tanto, mas é divertido), mas olhando mais pra trás dá pra notar sua influência em diretores como Michael Mann – que chegou a cogitar Walter Hill para dirigir sua obra-prima, FOGO CONTRA FOGO (foi recusado pelo próprio Hill… Ainda bem) – até Quentin Tarantino, que chamou de um dos filmes mais cool de todos os tempos. James Cameron já afirmou algumas vezes que tinha CAÇADA MORTAL em mente quando escreveu O EXTERMINADOR DO FUTURO. Até nos videogames também há quem se apoderou do filme, como o clássico Driver, lançado para o Playstation 1, onde jogamos com um motorista de fuga da máfia em altas perseguições. A relação do jogo com o filme nunca foi assumida, mas é muito óbvia e pode ser facilmente percebida, especialmente quando o jogador dirige o mesmo modelo Chevy vintage visto por aqui.

Enfim, acho que não preciso dizer mais nada sobre a importância de CAÇADA MORTAL, não é mesmo?

Além disso, é um puta filmaço que fala por si só. Um filme sobre um homem que é aquilo que faz. Nos créditos finais Ryan O’Neil aparece sem nome, apenas como The Driver, O Motorista (assim como Dern aparece como The Detective e Adjani como The Player). E dirigir é como o motorista se expressa. O carro é quase uma extensão física e psicológica dele.

Há uma sequência – provavelmente a minha favorita do filme – quando uns ladrões o desafiam, perguntando se ele é realmente tão bom no volante antes de contratá-lo para um golpe. E o motorista não argumenta, não é agressivo, não parte pra briga. Apenas diz a eles para entrarem no carro. E então ele começa as fazer manobras em alta velocidade dentro de um estacionamento, até iniciar a destruição da ostentosa Mercedes, peça por peça, com o veículo ainda em movimento e os donos do carro desesperados no banco de trás. Acho que é algo que define bem esse personagem. O motorista diz apenas 350 palavras no filme inteiro, mas por detrás de um volante, ele fala muito.

Hill, portanto, leva ao extremo essa ideia de uma linha narrativa com enredos minimalistas em filmes que mais declinam do que reproduzem um gênero, sobretudo nesse início de carreira. É como se com Walter Hill os personagens vão do ponto A ao ponto B em uma economia tanto narrativa quanto de meios visuais e psicológico na caracterização dos personagens que se definem apenas na ação. Essa lógica é trabalhada por aqui nos personagens, como já mencionei, mas também tanto numa forma de atemporalidade quanto na criação de uma espécie de realidade alternativa.

Se o diretor posteriormente moldou esse tipo de realidade de forma mais concreta – o universo das gangues de THE WARRIORS, a ambientação retro-futurista de RUAS DE FOGO – com CAÇADA MORTAL ele cria uma terra de fantasia estilizada, emoldurada na sensação dos anos 70, um mundo de pessoas que usam as mesmas roupas, de indivíduos que falam pouco, mas dizem muito com os olhos – a influência do cinema policial francês aqui é óbvia, especialmente Jean-Pierre Melville – uma espécie de film noir misturado com a ilegalidade do faroeste, com fugas e perseguições envolvendo carros em vez de cavalos. Walter Hill, assim como John Carpenter, acredita que todos os seus filmes são essencialmente faroestes.

Ryan O’Neal é uma escolha curiosa para este samurai/cowboy moderno de CAÇADA MORTAL. É um ator mais brando e Hill sabe como usar isso em proveito do filme. É evidente que se McQueen tivesse aceitado o papel ou um Clint Eastwood assumisse o personagem, talvez a recepção local fosse maior na época. Mas a performance sem emoção, bressoniana, de O’Neal ajuda a dar a seu personagem uma aura de frieza e mistério. Para criar contraste, Hill dá a O’Neal um adversário extravagante e expressivo na forma de Bruce Dern, que interpreta o obcecado em capturá-lo. É uma combinação caótica, e o filme explora perfeitamente os estilos de atuação extremamente diversos desses dois grandes atores. Já a francesa Adjani é o mistério em pessoa, uma espécie de femme fatale gélida, quase uma entidade, que vaga por esses polos.

Como não poderia faltar, CAÇADA MORTAL tem sequências de ação de arrepiar os cabelos, uma maestria com trabalho de câmera que traz o espectador para dentro da ação. As cenas de perseguição estão no mesmo nível e talvez até melhores que algumas das sequências mais famosas do tipo, como a de BULLITT e OPERAÇÃO FRANÇA.

Mas o filme é ancorado mesmo pela disputa desses dois homens em lados opostos da lei, o motorista e o detetive, cada um tentando ser mais esperto que o outro. No meio de perseguições de carros e do jogo de gato e rato desses dois, Hill cria o que poderia ser descrito como uma obra de travessura existencial. Em menos de 90 minutos, o filme funciona não apenas como uma exploração em profundidade das coisas que motivam esses indivíduos a fazer o que fazem, mas também funciona como um interessante estudo de sobrevivência, com ideias que transcendem o típico filme de mocinhos vs. bandidos. O viés minimalista é que também faz maravilhas e contribui muito nesse sentido. Até as partituras tensas do mestre da paranóia dos anos 70, Michael Small, dá lugar a uma “trilha sonora” cheia de pneus cantando e latarias amassadas. A irônica conclusão resulta em algo divertido e abstrato (a aparição final de Bruce Dern e uma horda de policiais) e o final sugere o que será um ciclo sem fim para esses sujeitos, numa espécie de purgatorio onde esses personagens habitam e ficam girando em círculo eternamente.

CAÇADA MORTAL é provavelmente a obra-prima de Walter Hill, que é um desses caras fodas que possuem várias obras-primas no currículo. E se você ainda não viu, acredito que vai ser uma boa experiência, vai estar diante de uma bela surpresa.


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NOTAS SOBRE FILMES RECENTES

JUNGLE CRUISER (2021)

Dir: Jaume Collet-Serra

Inchado até o talo e bem irregular. Até gosto do toque feminista, tem algumas ceninhas bacanas de ação, o conceito visual dos exploradores espanhois amaldiçoados é bem feito, criativo, e o Jesse Plemons parece se divertir como vilão alemão. Mas é um filme que me deixa com sono a maior parte do tempo. E não convence de maneira alguma com a química entre The Rock e Emily Blunt, que tá mais pra uma versão forçada da Bela e a Fera. Mas também ninguém estava esperando um filme mais “Collet-Serra” do que um “Disney Movie”, não é mesmo? Não precisava de um diretor autoral pra fazer isso aqui. Podiam chamar um Gary Ross ou Francis Lawrence que dava na mesma. 

Torcendo pro Collet-Serra voltar a fazer filmes com o Liam Neeson.

O ESQUADRÃO SUICIDA (2021)

Dir: James Gunn

Nem sou tão detrator do primeiro ESQUADRÃO SUICIDA (apesar de ser mesmo fraquinho) e acho o David Ayer um diretor bem interessante. Mas ele realmente se fodeu quando se meteu com a Warner/DC. James Gunn parece transitar melhor pelos corredores dos grandes estúdios e leva muito jeito pra trabalhar nesses tipos de projetos, com esses orçamentos volumosos (de um cara que surgiu ali no underground, da TROMA, é algo a ser estudado). E, sobretudo, consegue impor sua visão pessoal. O nível é MUITO superior aqui, o tipo de espetáculo divertido, engraçado, subversivo e violento que se espera desse material e de um filme do James Gunn.

DUPLA EXPLOSIVA 2 – E A PRIMERA-DAMA DO CRIME (2021)

Dir: Patrick Hughes

O australiano Patrick Hughes mantém as coisas num bom ritmo, em constante movimento durante toda a duração, que é mais longa que deveria, quase duas horas pra um filme desse é praticamente auto sabotagem. Mas entrei na onda e deu pra se divertir… Gosto bastante do primeiro filme, que postei aqui há um tempinho, acho até um bocado subestimado. Achei esse aqui ainda melhor, trabalha uns temas interessantes, de forma boba, mas que não prejudica o que interessa. A coisa tem potencial pra ser uma franquia, se não no mesmo nível que um MISSÃO IMPOSSÍVEL, VELOZES E FURIOSOS ou JOHN WICK, pelo menos agradável, com um universo muito próprio e personagens engraçadíssimos (Salma Hayek em especial…). E apesar de ter OS MERCENÁRIOS 3 no currículo, Hughes filma bem ação. Evidente que o tom cartunesco do filme permite certos exageros e humor abobalhado na ação, o que pode não agradar a todos. Mas é inegável o talento do sujeito em filmar perseguições, pancadria e tiroteios com bastante energia. Que venham mais filmes da série.

NEM UM PASSO EM FALSO (2021)

Dir: Steven Soderbergh

Cai numas armadilhas bestas que poderiam ser evitadas: excesso de personagens, reviravoltas e subtramas que deixa a coisa inchada bem mais que deveria, em especial na segunda metade. Mas o filme é tão consistente naquilo que propõe, em tecer uma teia curiosa de crime, roubos, assassinatos, traições, com um humor ácido peculiar e uma atmosfera noir interessante, que acaba tendo sua graça no fim das contas… Óbvio que o elenco acaba sendo um destaque, sobretudo Ray Liotta, um Brendan Fraser incrivelmente obeso e Bill Duke genial como sempre.

VAL (2021)

Dir: Leo Scott e Ting Poo

Obviamente que eu queria ver o Val Kilmer falando sobre as produções de ação e terror vagabundos direct to video dos anos 2000, mas aí já seria pedir demais… De todo modo, é um belo documentário, um retrato interessante e sensível de uma figura fascinante, bizarra e problemática do cinema americano que foi do ápice do estrelato ao fundo do poço e resolveu filmar tudo em vídeo. Uma vida inteira toda registrada. Vale a pena. Produção da Amazon, então tá disponível no streaming deles.

VIGILANTE FORCE (1976)

VIGILANTE FORCE é um desses petardos que só poderia ter saído nos anos 70 ou primeira metade dos anos 80, com a ressaca de tudo que rolou nos EUA durante esse período. Produzido por Gene Corman (irmão do grande Roger Corman), foi, no entanto, o pau pra toda obra da Corman Factory, George Armitage, que esteve na origem do projeto, tendo escrito o roteiro e dirigido. Ok, um “pau pra toda obra” não muito prolífico como diretor se olhamos para a carreira de Armitage de mais de quarenta anos e só sete filmes dirigidos, mas que merece o “apelido”. Sujeito trabalhou como ator, escreveu diversos roteiros, dirigiu e frequentemente era produtor de seus próprios filmes, dando uma bela contribuição ao B Movie americano.

E um bom exemplo de sua filmografia é VIGILANTE FORCE. O cenário é Elk Hills, uma pequena cidade na Califórnia que passa por um período problemático, com um alto índice de criminalidade pelas ruas somado aos fins de semana celebrados com badernas e cadeiras voando nos bares locais. Povoado de trabalhadores de uma petroleira, sabe? Moçada com sede tanto de cerveja quanto de sangue e violência. A cidade tem se tornado um local pouco atrativo para quem almeja um bocado de paz. E Ben Arnold (Jan-Michael Vincent) só gostaria de desfrutar da vida com seus negócios, sua namorada, cuidar da filha… Mas constantemente se depara com tiroteios à céu aberto. Homens que não hesitam em sacar suas armas para assaltar e atirar nos policiais locais que intervêm. Em suma, a lei e a ordem foi banalizada e a força policial não tem a mínima capacidade para encarar a bandidagem.

A única solução parece ser encontrar reforço. E Ben joga ao grupo de conselheiros da cidade (formada pelo prefeito, o xerife, o dono do banco, etc) uma ideia que pode ser a solução ideal: pedir ajuda ao seu irmão, Aaron Arnold (Kris Kristofferson), que voltou recentemente do Vietnã e tem trabalhado como segurança numa cidadezinha a alguns quilômetros de distância. Aparentemente, a coisa tende a funcionar. Aaron é um cara durão, badass, que saberia lidar com a situação que a cidade se encontra. Além disso, ele contrata seus velhos companheiros veteranos do Vietnã e não demora muito esse bando está usando uniforme e agindo pelas ruas da cidade. E em um local como este, onde andar por aí com um rifle parece tão comum quanto levar seus filhos para passear, esses “mercenários” se passando por homens da lei acabam dando conta do recado.

Até que a vaca vai pro brejo…

Aaron e seus comparsas cruzam certos limites e começam a usar seus uniformes para assassinar desafetos, ganhar dinheiro de forma ilícita e se tornar os reis do crime local. O que provoca um conflito entre irmãos difícil de resolver… E um embate de Kris Kristofferson vs Jan-Michael Vincent é só o que precisamos pra ser feliz num filme B de ação setentista.

George Armitage não parece muito determinado em acertar o tom do filme, mas há algo tão sincero nessa tentativa de ir além de um simples filme de ação que, mesmo mantendo uma cara de B Movie, cinema grindhouse, com momentos dignos de um exploitation americano – como a sequência da briga de galo, por exemplo, e tudo que se desenrola ali – VIGILANTE FORCE consegue também trabalhar alguns temas bem interessantes. É um drama policial de ação com tudo o que temos direito, desde tiroteios, brigas, perseguições e explosões – o final lembra as sandices exageradas de um DESEJO DE MATAR III, que é algo maravilhoso, com excepcional trabalho de dublês – mas ao mesmo tempo trata-se de um conto amargo sobre poder, que lança um olhar sobre uma era pós-Watergate e Guerra do Vietnã, da reabilitação de veteranos que adquirem, no meio de uma guerra, outros valores sob o jugo da bandeira americana. Uma América cujos valores são tão deturpados que chega a ser difícil confiar em alguém. Até mesmo num irmão.

E nesse desencontro de tons, VIGILANTE FORCE chega num equilibrio esquisito, mas bem bacana, entre ser esse crime movie exploitation e uma obra de teor social. O resultado é estranhíssimo, com um ritmo bizarro, mas cheio de boas sacadas e reflexões em meio à situações de exploração. Além de contar com as belas atuações de Kristofferson – que tá assustador – e Jan-Michael Vincent, que deixa o filme ainda mais divertido. Destaque também para as personagens femininas de Victoria Principal e Bernadette Peters. E não deixem de notar a pequena participação do grande Dick Miller como pianista de um bar.

CRIME SEM SAÍDA (2019)

Eu já tava bem interessado em ver CRIME SEM SAÍDA (21 Bridges), mas acabei deixando passar. Com essa morte do Chadwick Boseman que pegou todo mundo de surpresa, foi o primeiro filme que veio à mente para homenageá-lo. Que me descupem os fãs de PANTERA NEGRA e outros filmes da Marvel, mas às vezes tudo o que preciso é de um thriller policial classudo que parece saído dos anos 90… E CRIME SEM SAÍDA dá conta do recado.

Boseman é o detetive de homicídios da NYPD Andre Davis, desses incorruptíveis, que diz que ser policial está no seu DNA. Mas que é pintado como “gatilho solto” pela rapaziada da corregedoria por conta do alto número de bandidos que eliminou no cumprimento do dever. Todas as ocorrências foram consideradas justificadas, mas há sempre um foco constante sobre ele por conta disso e também por um histórico familiar muito forte: era moleque ainda quando seu pai, um oficial respeitado e altamente condecorado, foi morto em ação. Seus superiores acham que esse trauma talvez seja a resposta para o seu alto número de meliantes despachados.

Mesmo assim, Davis é chamado para investigar um tiroteio no Brooklyn que deixou oito policiais mortos após o roubo de um enorme estoque de cocaína no porão de uma vinícola. Os dois autores da façanha são veteranos de guerra que agora trabalham como mercenários: Ray Jackson (Taylor Kitsch) e seu relutante cúmplice Michael Trujillo (Stephan James). Jackson se revela um matador sangue frio e foi quem realmente matou todos os policiais, enquanto Michael tentava sem sucesso conter a situação. Agora eles são forçados a descarregar toda a coca que puderem pegar, lavar o dinheiro e sair da cidade.

O problema é que Davis já mandou trancar Manhattan, interditou todas as 21 pontes (que é o título original da bagaça) que levam à ilha e os agentes do FBI dão a ele até 5h30 da manhã para encontrar os assassinos antes que eles assumam o caso. Por ordem do capitão McKenna do 85º distrito do Brooklyn (J.K. Simmons), Davis terá a detetive de narcóticos Frankie Burns (Sienna Miller) como parceira, e eles partem pra descobrir onde estão Jackson e Trujillo.

No entanto, quanto mais Davis se aprofunda nos detalhes, mais as coisas parecem cheirar mal. Várias questões envolvendo a participação da polícia no caso deixam o detetive com a pulga atrás da orelha…

Já deu pra perceber que estamos em terreno conhecido por aqui. Quem já viu meia dúzia de filmes de policiais corruptos consegue matar algumas questões facilmente. CRIME SEM SAÍDA não faz muito suspense sobre quem são policiais corruptos e alguns parecem ter isso estampado na testa. Mas o roteiro de Adam Mervis e Matthew Michael Carnahan (THE KINGDOM) não tá muito interessado em prezar por originalidade e alguns diálogos e situações dão aquela sensação de “putz, já vi isso em outro filme”. O que realmente importa por aqui é a tensão de como as coisas se desenrolam, numa única noite, num ritmo que mantém o espectador ligado do início ao fim.

Ajuda muito CRIME SEM SAÍDA ter um protagonista tão sólido em Chadwick Boseman, o cara manda muito bem. Realmente perdemos um herdeiro de um Denzel Washington… O elenco de apoio também é muito bom e vale a destacar a pequena, mas simpática, participação Keith David (ELES VIVEM) como um chefe de polícia.

A direção é do veterano da TV Brian Kirk (BOARDWALK IMPIRE, GAME OF THRONES), que faz um bom trabalho em manter o ritmo e a tensão das coisas em ponto de bala. Sabe também onde colocar a câmera para filmar tiroteios e perseguições bem feitas. A sequência do tiroteio no assalto do início, que resulta nos oito policiais mortos, por exemplo, é ótima e muito bem conduzida, mostra que o sujeito não tá pra brincadeira. Belo trabalho também do diretor de segunda unidade, o grande coordenador de dublês Spiro Razatos (VELOZES & FURIOSOS 8 e vários filmes da Marvel, onde deve ter topado com os Irmãos Russos, que são produtores deste aqui).

CRIME SEM SAÍDA não tem nenhuma pretensão além de entreter como um exemplar de thriller policial bastante competente. Como eu disse, não há nada de muito original, mas não deixa de ter bons momentos de tensão e ação e boas atuações. E ainda não vai ser a despedida de Chadwick Boseman das telas, aparentemente deixou um trabalho completo, que deve estrear ainda este ano. O rapaz tava indo bem…

OPERAÇÃO FRANÇA II (1975)

Recentemente revi e postei sobre OPERAÇÃO FRANÇA (1971), de William Friedkin, e aproveitei pra revisitar também a sua continuação, dirigida por John Frankenheimer, lançada quatro anos depois. Do primeiro, como disse naquele post, ressalto se tratar de uma obra-prima. OPERAÇÃO FRANÇA II (The French Connection II), apesar de muito criticado quando do seu lançamento e até hoje não ter a mesma notoriedade, também é muito bom, com aquela atmosfera sensacional do cinema policial setentista e que tem muito da essência do próprio Frankenheimer na condução, cujo estilo é bem diferente do de Friedkin, mas do qual sou grande admirador.

O preconceito com OPERAÇÃO FRANÇA II talvez tenha a ver com a questão inevitável de que o filme “não precisava existir“, para início de conversa. A conclusão totalmente aberta do anterior é uma das coisa que mais me fascina. E provavelmente “continuar” essa história é preencher uma lacuna que às vezes nem precisava ser preenchida. Mas, bom, sou da opinião de que, se estão mesmo dispostos a filmar alguma coisa, que façam algo decente, da melhor maneira possível… Mesmo que esse algo seja desnecessário.

E é exatamente o que Frankenheimer faz aqui. Então valeu a pena rever OPERAÇÃO FRANÇA II, redescobrir seus encantos e relembrar aqui no blog sua existência, porque pode haver pessoas por aí que nem sabem que existe essa sequência do clássico de Friedkin. E podem até se surpreender com o quão genuinamente eficaz é este trabalho do mestre Frankenheimer.

A trama se passa algum tempo depois dos eventos de OPERAÇÃO FRANÇA, Popeye Doyle, novamente interpretado por Gene Hackman, chega à Marselha tentando rastrear o traficante de drogas Charnier (Fernando Rey), que escapuliu das mãos do detetive no final do primeiro filme. O que Doyle não sabe é que a polícia de Nova York e de Marselha estão atuando juntas, usando-o como isca, na tentativa de trazer Charnier à público para capturá-lo. O policial local Barthélémy (Bernard Fresson) tenta manter Doyle constantemente sob vigilância, mas a coisa não corre como planejado quando Charnier, consciente de que seu inimigo está no local, consegue sequestrá-lo.

Quando Doyle se recusa a responder qualquer uma de suas perguntas, Charnier inicia um processo para viciá-lo em heroína. O detetive estrangeiro é mantido em cativeiro enquanto a droga é injetada nas suas veias repetidamente por um looooongo período… Quando Charnier finalmente percebe que Doyle não tem utilidade alguma, ele é jogado na frente da delegacia onde, já completamente viciado, passa agora por um outro loooongo processo, uma agonizante desintoxicação…

Uma das coisas que mais gosto em OPERAÇÃO FRANÇA II é como o filme faz pouca tentativa de superar, ou até mesmo imitar, o filme original. É quase como se estivéssemos diante de um filme policial setentista completamente independente, com um cenário totalmente oposto à Nova York do filme de 71, e que, por acaso, Hackman interpreta um personagem que já havia feito antes… O filme ensaia até mesmo um estudo sobre o choque existente entre duas culturas que é bem interessante. O fato de não oferecer, por exemplo, sua própria perseguição de carros (na verdade o filme tem pouquíssimas sequências de ação) não é apenas corajoso, mas demonstra o domínio narrativo de Frankenheimer em segurar a tensão antes que ela se dissipe, especialmente no miolo do filme, no longo trecho que consiste no vício forçado de Doyle e a sua desintoxicação subsequente.

E meio aí que mora o perigo de OPERAÇÃO FRANÇA II. Esse miolo talvez seja o momento mais frágil do filme. Porque se por um lado funciona como um angustiante ato cênico conduzido com maestria pelo diretor e com um desempenho fantástico de Hackman, por outro a coisa realmente demora MUITO a se definir. Fica no limite entre um processo de tensão extremamente bem realizado e uma situação verdadeiramente chata e enfadonha.

Pessoalmente, curto bastante esse miolo, mesmo reconhecendo que passe um pouco do ponto… Mas o mais importante é que essas cenas funcionam como palco para uma performance espetacular de Hackman, algo que nem no primeiro filme – no qual ele havia recebido o Oscar de melhor ator – o sujeito teve oportunidades para explorar.

Passado o tal miolo, o filme retoma às investigações de Doyle pelas ruas de Marselha, mas agora com um tempero de vingança a mais para dar uma apimentada no sabor. E a coisa segue num ritmo mais frenético até o fim – o que significa que temos até umas sequências de ação, como Doyle retornando ao seu cativeiro e tocando o terror no local. Ou o tiroteio num porto que é um espetáculo. E que Frankenheimer era fera em realizar.

É preciso destacar também o gran finale que, pra mim, já se tornou clássico em OPERAÇÃO FRANÇA II. Popeye Doyle numa perseguição à pé seguindo Charnier pelas ruas de Marselha é uma das coisas mais memoráveis ​​do filme. O sujeito com dor, exausto, retirando forças sabe-se lá de onde para continuar se movendo, provavelmente sua própria obsessão e determinação em terminar as coisas de uma vez por todas, numa das atuações mais físicas de Hackman. Será que dessa vez ele consegue pegar Charnier? O filme segura até os últimos instantes para dar a resposta…

No elenco, não preciso falar mais nada de Hackman, né? O sujeito arregaça como sempre. Talvez uma grande desvantagem de OPERAÇÃO FRANÇA II seja a falta de Roy Scheider, que não retorna em seu papel como Buddy Russo, perceiro de Doyle no filme anterior (preferiu rabalhar em TUBARÃO talvez?). Mas considerando a premissa, acho que faz mais sentido ter Doyle sozinho nessa aventura.

Fernando Rey oferece sua elegância habitual de maneira excelente como Charnier – a cena no restaurante quando ele percebe a presença de Doyle na cidade demonstra um bocado do seu talento. Bernard Fresson também está muito bem, principalmente nas cenas em que contracena com Hackman no processo de desintoxicação de Doyle. Duelo de atuação de gente grande. E temos uma pequena participação de Ed Lauter.

OPERAÇÃO FRANÇA II pode ter suas falhas e não ser do mesmo nível do filme de Friedkin, mas ainda assim é um baita filme policial com Frankenheimer usando sua câmera para explorar Marselha num registro quase documental, contar uma história tensa e entregar algumas excelentes cenas de ação. Além de servir de vitrine para o belíssimo desempenho de Hackman encarnando Popeye Doyle pela última vez.

O personagem quase retornou no início dos anos 80 com um terceiro filme, no qual Doyle enfrentaria um terrorista europeu em Nova York. Hackman acabou pulando fora, mas o projeto continuou em frente e se transformou em outra coisa: FALCÕES DA NOITE, com Sylvester Stallone.

Popeye Doyle só voltou a ser visto em 1986, num filme produzido para a TV chamado POPEYE DOYLE, mas desta vez sendo interpretado pelo grande Ed O’Neill (o Al Bundy de UM AMOR DE FAMÍLIA). Na verdade, era um piloto para uma série de TV que acabou não acontecendo. Cheguei a ver esse filme passando na televisão em algum momento da vida, mas não lembro de nada. Não deve ser grandes coisas, mas só revendo mesmo pra descobrir…

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INFERNO VERMELHO (1988)

Não tem muito como errar com a boa e velha fórmula do “filme de parceiros policiais“. Ou como ficou mais conhecido no seu próprio idioma original, os buddy cop movies. Era pegar dois sujeitos de personalidades, classes, culturas opostas, ou seja lá o que for, e colocá-los juntos para resolver crimes enquanto batem boca e defendem visões divergentes… É claro que colocar a Whoopi Goldberg fazendo parceria com um dinossauro de látex não é lá uma boa ideia… O dinossauro merecia um parceiro melhor. Mas os exemplos positivos de buddy cop movies temos aos montes. É como pizza, até quando é ruim é bom.

Um diretor que é sinônimo de buddy cop movies é Walter Hill, um dos responsáveis por definir as regras do sub-gênero ainda lá atrás no início de carreira, como roteirista, em HICKEY & BOGGS (72), dirigido pelo Robert Culp, ou no piloto DOG AND CAT (77), antes mesmo de realizar seu próprio exemplar nos anos 80, o clássico 48 HORAS (1982). E tão familiar com o tema, Hill sempre encontra um jeitinho de dar uma boa variada na fórmula.

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Em INFERNO VERMELHO (Red Heat) essa variação vem num trabalho de “choque cultural”. Tá certo que o resultado acaba sendo tão ingenuo e cartunesco quanto o de ROCKY 4, mas reflete a visão estereotipada coletiva da Rússia pelos americanos do período. Além de funcionar bem como pano de fundo de um filme de ação policial que se propõe a ser uma sátira de diferenças de costumes. Mas o verdadeiro desafio de Hill não era tão simples e poderia colocar todo o projeto a perder. Consistia em trocar as peças um pouco de lugar e convencer o público americano dos anos 80 a aceitar um soviético comunista como herói da história.

Uma grande sacada para resolver essa questão pode ter sido usada já na escolha do ator que faria esse herói, já que naquele período qualquer produção que Arnold Schwarzenegger se envolvesse seria quase automaticamente levada à aceitação pública. O cara era um astro, o “tough guy” do momento ao lado de Sylvester Stallone, e não seria o fato de encarnar um russo que mancharia sua imagem.

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Aliás, a gênese de INFERNO VERMELHO nasceu do desejo de Hill em dirigir Schwarzenegger, o que trazia ao mesmo tempo algumas questões que incomodavam o diretor, como o sotaque do austríaco, por exemplo, que não encaixava em nenhum personagem previamente pensado. Então, Hill veio com a ideia do sujeito ser soviético e a partir disso, com o ator em mente, é que ele, Harry Kleiner e Troy Kennedy-Martin escreveram o roteiro.

Schwarza se encaixou perfeitamente e Hill soube aproveitar a sua iconografia de modo fundamental. Basta reparar na entrada do ator em cena, na sequência inicial na sauna russa, com a câmera passeando pelo corpo de Schwarza imponente como se estivesse estabelecendo um componente dramático-visual relacionado ao físico. Schwarza desempenha seus papéis com presença física em qualquer filme do período, na maneira como seu bíceps aparece na tela, como os músculos do pescoço se comportam no enquadramento, como as veias sobressaltam na pele somando valor estético, é o que torna filmes como INFERNO VERMELHO, CONAN – O BÁRBARO e PREDADOR tão físicos.

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A trama de INFERNO VERMELHO a grande maioria dos fãs do gênero já conhece, mas vamos lá: Schwarza é o capitão Ivan Danko, um policial de Moscou altamente badass que vai parar em Chicago na cola de um perigoso criminoso russo (Ed O’Ross) que matou seu parceiro. Na América, após o estranhamento inicial, ele acaba ganhando a camaradagem, depois de muita resistência, de um controverso e espertinho policial de Chicago, vivido por James Belushi, que lhe ajuda a seguir os rastros do bandido.

O que se desenrola a partir dessa premissa não é exatamente importante, serve apenas de base para algumas questões que interessam a Hill e, obviamente, ao público ávido por este tipo de produto, como a ação física, a sátira escrachada e o relacionamento entre as duas figuras que vamos acompanhar nessa aventura.

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Uma das razões pela qual INFERNO VERMELHO funciona lindamente pra mim, e que eu já ressaltei, é que se assume logo de cara como uma sátira de “choque cultural” cheia de contornos cômicos que envolvem a jornada desse russo na América. É praticamente uma comédia de costumes e é difícil segurar o riso das situações que Danko, o policial russo comunista, passa na meca do capitalismo. A própria maneira como Hill trabalha a imagem para enfatizar certas coisas é muito forte aqui, como a forma que filma Moscou – clean, sóbria e contemplativa – se contrapondo a Chicago, o caos, a poluição sonora e visual, local sujo repleto de bandidos e putas. Danko liga a TV no quarto de hotel em que está instalado e rola um pornozão de boa. A reação dele é hilária: “Capitalistas“.

Em outras ocasiões já acho que o humor nem era intencional, mas não dá pra não rir com Danko, depois de encontrar um pacote de droga na perna de madeira de um sujeito, soltando um “cocainum!“. A química entre Schwarzenegger e Belushi também é um ponto forte nesse lado cômico do filme. Belushi nunca vai chegar aos pés de seu irmão, John Belushi, um ícone da comédia americana, mas até que ao seu modo conseguiu sair da sombra do irmão. Em INFERNO VERMELHO, o sujeito consegue pagar de badass ao mesmo tempo em que arranca boas risadas do público.

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Grande parte do diálogo entre Belushi e Schwarza consiste no primeiro soltando algo do tipo: “Do I look like a fucking cab to you?“, seguido por um “yes” monossilábico de Arnie… E basta para me deixar com um sorriso na cara.

Já a sequência que os dois discutem sobre o fato de Danko ter um periquito de estimação é simplesmente de rachar o bico… Além de Schwarza e Belushi, o elenco merece atenção com vários nomes interessantes que surgem na tela. Ed O’Ross encarna com desenvoltura o papel do vilão russo, temos Peter Boyle como chefe de polícia, Laurence Fishburne, Gina Gershon e uma impagável participação de Brion James.

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Outro principal motivo para qualquer fã de cinema de ação ter a obrigatoriedade de conferir INFERNO VERMELHO é justamente pelas sequências de ação. Hill foi um dos grandes nesse departamento, herdeiro direto de Sam Peckinpah, não economizava em virtuosismo ao filmar tiroteios e perseguições, mesmo que as sequências não sejam nada extravagantes.

Seus tiroteios são crus, filmados com classe, mas que rendem uma boa dose de brutalidade. Os dez primeiros minutos de INFERNO VERMELHO são de arregaçar! Temos Schwarza trocando socos com russos bombados numa sauna, que prossegue num campo aberto coberto de neve e, logo em seguida, um tiroteio classudo num bar que culmina na morte do parceiro do protagonista.

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Outro destaque é o tiroteio na espelunca em que Danko está hospedado. A edição simples, o trabalho com o movimento dos corpos e espaços, a violência dos tiros – causa e efeito bem definidos, filmados com clareza – e até uma prostituta peladona enchendo um bandido de chumbo, proporcionam uma boa dose de truculência.

A exceção da ausência de “espetáculo” na ação de Hill fica na sequência final, em que bandido e mocinho usam um ônibus cada um numa perseguição frenética em meio ao trânsito da cidade, dando um toque do exagero oitentista à obra, mas sem perder a elegância.

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INFERNO VERMELHO é daqueles filmes que eu posso rever e rever quantas vezes forem necessário e ainda vou estar longe de enjoar. Até a sua reflexão ingênua da dialética comunismo x capitalismo funciona bem numa trama que não tenta fazer nada de diferente em termos de estrutura dos buddy cop movies, mas tem a personalidade de seu diretor e entrega exatamente o que promete: ação de primeira qualidade, humor zoeiro e ainda cria um dos personagens russos mais casca-grossa do cinema americano.

Não é o melhor filme que Hill dirigiu, nem o melhor veículo que Arnold Schwarzengger estrelou, mas sem dúvida alguma é um dos produtos mais divertidos que ambos fizeram.

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Texto originalmente escrito para o Action News em maio de 2018.

OPERAÇÃO FRANÇA (1971)

Vamos começar pelo básico do básico, aquilo que todo mundo já deve estar careca de sabe sobre OPERAÇÃO FRANÇA (The French Connection), que é um dos grandes clássicos policiais da década de 70, que é um dos melhores filmes de William Friedkin, que tinha apenas 32 anos na época e se tornou o mais jovem a ganhar o Oscar de direção (o filme também abocanhou melhor roteiro adaptado, ator para Gene Hackman, edição e melhor filme). E que o roteiro foi baseado no best-seller de Robin Moore sobre as desventuras reais dos detetives do esquadrão especial de narcóticos do Harlem, Eddie Egan e Sonny Grosso.

Na trama, acompanhamos Gene Hackman como “Popeye” Doyle e seu parceiro, Buddy Russo, vivido pelo grande Roy Scheider, dois detetives da cidade de Nova York que acreditam ter tropeçado sem querer em uma operação potencialmente descomunal de contrabando de drogas vindo direto da França para Nova York.

E aí começa o trabalho funcional dos dois detetives em desbaratar a atividade dos bandidos: longas e frias noites de tocaia vigiando pessoas suspeitas, seguindo seus passos, mesmo quando fazem um pequeno passeio pelas ruas de NY, nada muito emocionante… Mas é a essência de OPERAÇÃO FRANÇA, essa triste e monótona vida cotidiana dos policiais, a anos-luz de distância dos heróis do cinema de ação de Hollywood. Os dias desses policiais são longos, e suas noites não costumam ser outra coisa senão os assentos imundos de seus velhos e desconfortáveis ​​carros… Não devia ser muito divertido ser policial em Nova York nos anos 70.

Mas são figuras fascinantes, não apenas porque Hackman e Scheider habitam completamente seus personagens, mas porque Friedkin faz um trabalho maravilhoso em criar uma atmosfera de realismo absurdo. Tanto Eddie Egan quanto Sonny Grosso, os dois homems que vivenciaram essa história na realidade, têm pequenos papéis no filme e atuaram como consultores técnicos em OPERAÇÃO FRANÇA, o que pode ser a melhor indicação do sentimento autêntico que Friedkin tentou evocar na tela, com uma forte estilização documental. Praticamente vérité, bicho!

As ruas de Nova York nunca estiveram tão vivas, fruto de uma completa imersão de realidade dos principais envolvidos. Friedkin passou dois meses com os dois detetives estudando suas personalidades e sobre o caso em questão. Hackman e Scheider passaram semanas em prisões e operações secretas, também com Grosso e Egan. E o estilo de câmera documental do filme, belíssimamente realizado pelo diretor de fotografia Owen Roeizman, promove esse sentimento de que “estamos dentro do filme“, o que realmente aumenta a tensão. Mesmo em sequências como o duelo silencioso entre Doyle e o traficante francês Alain Charnier (Fernando Rey) pelas ruas de NY e que culmina num entra e sai dentro de um vagão de metrô, uma sequência que não seria nada, torna-se uma aula de tensão nas mãos de Friedkin.

Quando os traficantes percebem que Doyle pode realmente atrapalhar as operações dos contrabandistas, eles tentam matá-lo. Sem sucesso, Doyle persegue o sujeito que falhou, numa das perseguições de carro das mais insanas da história do cinema. Que me desculpem quem desconfia de hipérboles do tipo “o maior/melhor da história do cinema“, mas no caso de OPERAÇÃO FRANÇA eu apenas trago fatos em relação e esta sequência específica.

Aqui temos Gene Hackman em alta velocidade perseguindo um vagão de metrô nas ruas de Nova York, filmada em condições mínimas de segurança (Friedkin queria aproveitar os caprichos do tráfego para reforçar o aspecto realista), e que poderia ter terminado em tragédia. Hoje ignora-se a irresponsabilidade e saudamos a incrível tensão insuperável que essa sequência provoca. Vivemos esses momentos como se estivéssemos no banco de passageiro de Hackman, com o desejo de pressionar o pedal do freio e o reflexo para se segurar no “puta que pariu“… Uma perseguição que realmente consegue comunicar tão bem a sensação de velocidade e perigo. Algo que Friedkin se tornou especialista e repetiu a dose com a mesma maestria em filmes como VIVER E MORRER EM LA e JADE.

Essa sequência também é marcada pelo sadismo e crueldade do bandido – encarnado pelo francês Marcel Bozzuffi – que tenta escapar de Doyle e acaba encurralado, mas não sem antes deixar algumas vítimas pelo caminho. Cansado dessa longa perseguição, Doyle mal consegue se manter em pé, mas retira força não sei de onde para apontar o revolver, mirar e acertar o sujeito, numa das cenas mais memoráveis do filme (e que foi a escolha para ilustrar o post lá em cima, obviamente).

Enfim, toda essa perseguição é realmente foda! Mas esses momentos de bravura são parênteses em um filme que não faz questão nenhuma de espetacularizar a ação, fica evidente que Friedkin não tenta fazer de OPERAÇÃO FRANÇA um filme divertido. Bem diferente dessa perseguição frenética temos, por exemplo, o final, a caçada de Doyle pra cima de Charnier no hangar abandonado que fecha o filme, filmado de forma lenta e anti-climática, cujo cenário e trabalho de câmera remete mais a um filme do Tarkovsky, e termina com o tiro offscreen, mas que ressoa muito depois dos créditos finais, símbolo da cruzada entre a determinação do herói e uma espécie de loucura obsessiva de Doyle… O próprio contrabando de drogas foi desmantelado graças a um grande golpe de sorte e muita paciência, e é exatamente assim que Friedkin narra a história, usando pequenos detalhes e muitas cenas sem diálogos, nunca se inclinando para explicações fáceis e exposições amigáveis ​​ao público.

E assim fica à cargo do espectador se decidir sobre os métodos empregados pela polícia, especialmente “Popeye” Doyle, que carrega uma integridade policial tão louvável quanto repugnante pelo seu racismo e xenofobia. E Gene Hackman torna essa performance tão real e direta que todo o filme é legitimado por suas ações. O sujeito realmente está explosivo e sem dúvida é um desses desempenhos dignos de antologia no cinema americano. Já Roy Scheider é um companheiro perfeito, um bom contraponto à Hackman, e as cenas de vigilância que ele compartilha com seu parceiro são maravilhas do cinema, com olhares e pequenos gestos entre eles, transmitindo mundos de significado.

Fernando Rey como Charnier é de uma frieza e elegância que bota Doyle nos nervos, como na cena do “tchauzinho” que recebe do traficante depois de ser enganado no metrô. Mas é sempre curioso lembrar que sua contratação para o filme foi polêmica. Friedkin disse ao diretor de casting que, para o personagem de Charnier, ele queria um ator que lembrava estar em A BELA DA TARDE, de Luis Buñuel. Mas ele se referia a Francisco Rabal. Quando chegou no aeroporto, Friedkin deu de cara com Fernando Rey, que nem francês era… Até cogitaram a possibilidade de demiti-lo, mas depois descobriram que Rabal nem falava inglês e decidiram manter Rey com o papel. Uma boa escolha. Rey está perfeito. E Friedkin teve sua oportunidade de trabalhar com Rabal alguns anos mais tarde em COMBOIO DO MEDO.

Outro ator que gosto bastante é Tony Lo Bianco, que não tem lá uma participação muito expressiva por aqui. Mas dois anos depois ganhou mais destaque em THE SEVEN-UPS, outro filmaço policial dos anos 70, dirigido pelo produtor de OPERAÇÃO FRANÇA, Phillip D’Antony, com Roy Scheider encabeçando o elenco e com mais uma grande sequência de perseguição de carros de tirar o fôlego. Mas se quiserem algo mais consistente de Lo Bianco, recomendo o clássico de Larry Cohen FOI DEUS QUE MANDOU, que comentei aqui no blog não faz muito tempo…

Enfim, bom rever de tempos em tempos OPERAÇÃO FRANÇA e perceber como continua uma belezinha. Friedkin realmente conseguiu algo por aqui. E estabeleceu um novo modelo para qualquer filme de ação policial que surgiu a partir de então. Não só nos EUA mas também na Europa, com os poliziotteschi italianos, que são assumidamente influenciados por obras como o filme de Friedkin (mas também DIRTY HARRY, de Don Siegel, e DESEJO DE MATAR, de Michael Winner, entre outras coisas). Quatro anos depois, John Frankenheimer assinou a sequência (sem Roy Scheider) não tão bem-sucedida, mas bem longe de ser ruim.

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DESEJO DE MATAR (1974)

É preciso ter um certo cuidado ao falar de DESEJO DE MATAR hoje em dia. A clássica história do sujeito que perde a família num violento ataque criminoso e resolve agir por conta própria, com uma arma em punho, exterminando meliantes na calada da noite, pode gerar ideias imbecis na cabeça dos proto fascistas que se transvestem de bons cidadãos. Baseado num livro de Brian Garfield, o que temos aqui é um dos conceitos mais controversos colocados em película na década de 1970, lançou o subgênero “Vigilant Movie” e capturou uma certa psique coletiva a procura de respostas fáceis para escapar do trauma infligido pelo crime desenfreado do período.

E como esse problema social perdura até hoje, ao longo dos anos vários exemplares, rip-offs, spin-offs e inspirações de DESEJO DE MATAR foram surgindo até esgotar suas possibilidades. Tivemos até recentemente um remake oficial, dirigido por Eli Roth (O ALBERGUE) e estrelado por Bruce Willis, que quase ninguém gostou, embora eu ache um filme bem ok. No entanto, é sempre bom revisitar a fonte: esta obra-prima casca-grossa e classuda de Michael Winner que transformou Charles Bronson num ícone e gerou nada menos que quatro sequências.

Bronson, aos 53 anos à época, imortalizou a figura de Paul Kersey, o símbolo máximo do cidadão comum que resolve fazer justiça com as próprias mãos, realizando aqui um de seus trabalhos mais fortes, com seu rosto de pedra impassivo, mas que esconde um indivíduo que chegou no limite entre o seu tormento pessoal, que o despe dos códigos de ética, e a psicopatia que faz agir com violência pra cima de criminosos. Kersey é um arquiteto que trabalha para uma grande empresa em Nova York e numa tarde qualquer, sua esposa e filha são atacadas por uma gangue (que tem como um dos membros um jovem Jeff Goldblum). Sua esposa, Joanna (Hope Lange), é morta e sua filha, Carol, é brutalmente estuprada e nunca se recupera psicologicamente do ataque.

A empresa de Kersey decide que seria uma boa ideia se ele saísse de Nova York por um tempo, e acaba enviado à Tucson para verificar um projeto que estão pensando em financiar. No local, Kersey conhece Ames Jainchill (Stuart Margolin), um empreendedor imobiliário excêntrico, e surge uma amizade entre eles enquanto elaboram os detalhes do desenvolvimento proposto. Ames é um entusiasta de armas e convida o protagonista para o clube de tiro local. Kersey confessa que serviu o país na Guerra da Coréia, reforçando seu surpreendente talento com uma pistola. Quando é hora de voltar a Nova York, Ames dá a Kersey um presente de despedida – um revólver calibre .32 com cabo de pérola.

Ainda traumatizado e um pouco nervoso em andar pelas ruas de Nova York, Kersey carrega o revólver consigo. E quando é confrontado por um assaltante armado, ele acaba usando o berro em sua em defesa. E a beleza de DESEJO DE MATAR é que nunca há um alvo específico na mira de Kersey, já que não demora muito para ficar óbvio que existe pouca chance dos criminosos que trouxeram desgraça a Kersey serem levados à justiça. Há até uma certa ambiguidade que não deixa claro, a princípio, se Kersey simplesmente decidiu dar suas voltas noturnas com um trabuco no bolso ou se ele realmente estava esperando encontrar assaltantes para mandar para a vala. Este ponto é deixado deliberadamente vago, presume-se que o próprio Kersey não poderia responder caso fosse perguntado…

Há uma cena mais cedo, antes de ir à Tucson, em que Kersey é abordado por um assaltante, e sua reação, meio que no desespero, é acertar uma meia cheia de moedas na cara do sujeito, que foge correndo. Mas nada que indicasse que se tornaria um vigilante psicopata. No entanto, depois de matar o primeiro meliante, Paul Kersey dá início a uma temporada de caça à bandidagem de um modo geral. Ele nunca vai atrás de vingança contra os assassinos da sua mulher. Sua vingança é mais ideológica.

Quando Kersey começa a reduzir a população de meliantes, a polícia (representada na figura de Vincent Gardenia) e a prefeitura estão em uma espécie de dilema. Eles não querem um vigilante vagando pelas ruas, mas também não querem prender alguém que está contribuindo com a diminuição da criminalidade – e sabem que o misterioso vigilante está se tornando um herói popular e, se preso fosse, se tornaria um mártir. Mas ao julgar DESEJO DE MATAR é importante colocá-lo em seu contexto histórico. O filme é um produto de sua época. Em 1974, o crime nos EUA realmente parecia estar fora de controle e as pessoas comuns tinham sérias dúvidas quanto à capacidade e disposição da polícia e dos tribunais para protegê-los de crimes violentos. Essa situação havia surgido em um período relativamente curto, não muito mais que uma década, e parecia estar se acelerando. Nova York, em 1974, era um lugar muito mais violento do que é hoje.

O filme tenta ser fiel a essa realidade. Logo no início, após chegar de suas férias numa praia paradisíaca, um colega de Kersey o atualiza dos números absurdos da criminalidade em NY no período em que esteve fora. E é de assustar até quem mora no Rio de Janeiro hoje em dia… Em outro momento, no hospital em que sua mulher e filha foram atendidas, Kersey observa um sujeito com a cabeça toda ensaguentada e comenta que ninguém vai atendê-lo…

Neste quadro específico, o filme acaba sendo de alguma maneira simpático às atividades de vigilante de Kersey, o coloca como uma espécie de “herói”, mais como uma personificação da análise social, aberto às reflexões de todo um contexto, e menos um action hero justiceiro que muitos pintam por aí.  Portanto, a coisa não é tão simplista como algumas das análises mais histéricas que surgiram na época.

Previsivelmente, grande parte da crítica odiou o filme aos gritos de reacionário e de incentivar a violência. Já o público amou, mesmo não captando a profundidade da sua análise, até porque como filme de crime, DESEJO DE MATAR é uma obra impecável. Foi um grande sucesso de bilheteria, enfurecendo ainda mais os indivíduos que só enxergam as coisas de modo literal e após o seu lançamento era até difícil encontrar um crítico dizendo uma única palavra positiva sobre o diretor Michael Winner.

Na verdade, Winner sempre fora muito bom em dirigir filmes de ação com uma dose a mais de brutalidade. Só com o Bronson chegou a realizar seis filmes em parceria e a maioria retratando o que há de mais violento no ser humano.

A sequência em que a gangue invade o apartamento de Kersey, por exemplo, é brutal, uma aula de subversão, de como criar imagens chocantes, um trabalho incrível que contrasta um primor de encenação com selvageria desenfreada. Até acho que é perfeitamente legítimo não gostar de filmes violentos, cada um tem sua sensibilidade, mas é preciso admitir que Winner é um baita diretor neste quesito, sabe construir tensão e filmar sequências que exigem estômago do espectador com muita classe, e DESEJO DE MATAR é um de seus melhores trabalhos nesse sentido.

Uma pena, portanto, que seu talento tenha sido apagado pelo teor reacionário que os críticos vêem na obra. Tá certo que Kersey mata seus adversários sem qualquer remorso, estando eles armados ou não, pela frente, pelas costas, etc… Na segunda noite em “ação”, por exemplo, Kersey adentra um beco em que um velhote está sendo espancado por três mal encarados. Eles avistam Kersey, começam a rodeá-lo, nenhum deles com arma de fogo, mas Kersey não quer nem saber, começa a disparar contra os meliantes sem pensar duas vezes, inclusive pelas costas, quando um tenta escapar e já não apresenta perigo algum. Mas faz parte do reflexo lógico de análise de Winner, de desafiar o espectador, é algo que com um olhar mais cuidadoso revelaria um filme bem mais complexo.

Quanto a Bronson, DESEJO DE MATAR certamente o estereotipou, mas trouxe-lhe o estrelato nos EUA após uma longa espera (ele já tinha um público entusiasmado na Europa). Como é habitual, Bronson tem poucas falas por aqui, o que faz parte da persona do ator, mas funciona bem em seu personagem. Se Paul Kersey fosse um homem que pudesse articular seus sentimentos verbalmente com facilidade, ele provavelmente não teria se tornado um vigilante. Embora seja bom salientar que ser uma pessoa articulada não ajuda muito quando você é confrontado por um bandido empunhando uma faca na sua direção…

DESEJO DE MATAR não é bem um filme de ação no sentido “empolgante” do gênero. As cenas de assassinato são rápidas, simples e cruas, sem nada de espetacular. Mas servem ao propósito de provocar. Uma das sequências mais marcantes, para citar mais um exemplo, é a do vagão de metrô, em que Kersey engana o meliante atirando por trás do jornal. Em seguida, atira em outro bandido e logo depois atira de novo, com os malandros já estendidos no chão, para garantir que ambos não voltem a respirar. Tudo isso para enfatizar a psicopatia do “herói”. São várias sequências assim, que fazem a rotina noturna de vigilantismo de Kersey e constrói um dos personagens mais fascinantes do cinema de gênero dos anos setenta.

Por trás de um crime movie classudo, com excelente performance de Bronson, bela trilha sonora de Herbie Hancock, DESEJO DE MATAR é um filme perturbador e confrontante. Te coloca numa posição incômoda como espectador e aborda o assunto da violência de uma maneira muito direta. E por mais que possua esse revestimento de filme de gênero, é sempre bom lembrar aos desatentos a densidade da coisa, que se trata de uma obra de ficção e os atos de seu protagonista não são um discurso fechado à favor da “justiça com as próprias mãos“. O filme é uma hipótese, levanta questões, é uma reflexão dramática de um tema cabeludo.

Seria uma estupidez achar que se trata de uma bandeira levantada convocando a população a pegar em armas para se defender. Obviamente não compactuo com a ideia de “bandido bom é bandido morto“. Não é porque sou fãs de DESEJO DE MATAR e filmes de ação da era Reagan que quero que existam policiais como Cobra e Dirty Harry ou vigilantes como Paul Kersey na vida real. Deixemos essas figuras atuarem apenas na ficção…

Texto originalmente escrito para o Action News em Agosto de 2018.

10 MINUTOS PARA MORRER (1983)

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10 MINUTOS PARA MORRER é o filme que o Charles Bronson sai à caça de um assassino peladão. O filme que meu pai dizia que “terminava com o Bronson dando um tiro na testa de um bandido“…

Bronson interpreta Leo Kessler, um detetive veterano, mais de 20 anos de carreira na força policial, mas cansado de ver o sistema de justiça trabalhar contra ele. Agora, em busca de um perigoso assassino, Kessler e seu jovem pareceiro, o novato Paul McCann (Andrew Stevens), começam a se aproximar de Warren Stacy (Gene Davis), o principal suspeito por violentas mortes. O problema é que seus elaborados álibis e métodos quase impecáveis de cometer tais crimes sem deixar rastros impedem que os policiais encerrem o caso com provas definitivas de que ele seja o assassino. Sobra a intuição e a experiência do velho Kessler, que tem absoluta convicção que Stacy é o homem por trás das mortes.

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10 MINUTOS PARA MORRER não é um daqueles filmes em que temos que adivinhar quem é o assassino. Sabemos quem é o maluco desde o início e que Kessler está certo no seu “palpite”. Enquanto isso, o assassino desfruta de sua liberdade, deixando mais corpos espalhados e perseguindo a filha do protagonista, instaurando um perigoso jogo de gato e rato. Kessler, que em determinado momento acaba sendo demitido da polícia por suas ações ilegais na tentativa de incriminar Stacy, agora é um agente livre que decide permanecer na cola do assassino 24 horas por dia. O filme termina de forma pesada, quando Stacy pratica uma carnificina no dormitório cheio de enfermeiras onde mora a filha de Kessler. E quando o ex-policial encurrala o assassino, Stacy faz um monólogo explicando seus atos como uma “doença”, como uma insanidade: “A sociedade terá que lidar comigo para sempre!“. Mas Kessler resolve tomar medidas para garantir que isso nunca aconteça.

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Dirigido com a classe e segurança de J. Lee Thompson, que colaborou em quase todos os filmes do Bronson nesse período, e produzido pela Cannon, 10 MINUTOS PARA MORRER se destaca como um dos melhores filmes do velho Bronson nos anos 80. Um eficaz thriller policial, com atmosfera suja, desprezível, cheio de nudez e violência. Pode ser um pouco chocante, visto hoje, devido ao viés conservador, uma reflexão sobre a pena de morte numa parábola sobre um policial cuja a experiência na aplicação da lei se mostra, repetidamente, que o sistema não funciona. E quando o sistema não funciona, só lhe resta meter uma bala na cabeça de bandido…  Bolsominions vão ejacular com esse filme, obviamente, pois não tem capacidade mental de perceber o contracenso, o paradoxo de sua ideologia. Mas com a perda de seu idealismo, o homem da lei de Kessler simplesmente se cansa dessa merda toda. Seu único objetivo era impedir que mais mulheres fossem assassinadas e quando a justiça falha, o resultado é mais mortes violentas…

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É aquela coisa, como ser humano eu detesto reacionários e fascistas. Como cinéfilo, eu admiro o cinema radical que levanta esse tipo de reflexão. Trata-se de repelir a hipocrisia. E 10 MINUTOS PARA MORRER, mesmo que não tivesse essa consciência reflexiva, consegue isso. Ideologias à parte, sobra ainda um filmaço de “polícia à caça de um maníaco assassino”. E temos ainda uma cena fantástica, na qual Bronson questiona o suspeito sobre um determinado acessório de masturbação, segurando o objeto em mãos, que é simplesmente genial, deveria estar entre os grandes momentos da carreira do homem!

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Vale destacar Gene Davis como o assassino sádico e calculista Warren Stacy, um dos mais pervertidos e violentos assassinos a serem retratados na tela no início dos anos 80, junto com Joe Spinell, em MANIAC, de William Lustig (sem a mesma profundidade psicológica, no entanto). Obviamente a característica mais marcante é o fato do sujeito estar sempre peladão na hora de cometer seus crimes. Ele tira toda sua roupa antes de matar, mesmo que precise andar um pouco até chegar à vítima. O que seria especialmente horrível ver um homem nu vindo em sua direção balançando o pau e uma faca… E enquanto a maioria dos personagens acha Stacy assustador, um creepy, sua boa aparência e educação o ajuda a se misturar na sociedade e a adicionar um certo nível de suspense ao seu comportamento, o que é agravado pelas grandes mudanças de estado mental do personagem ao longo do filme.

Enfim, para um thriller policial do início dos anos 80, 10 MINUTOS PARA MORRER oferece tudo o que você esperara de uma produção da Cannon estrelada pelo Bronson. Para os fãs do homem, é imperdível.

O NÃO-RETORNO DO DIA DA FÚRIA

Os últimos textos publicados no projeto DIA DA FÚRIA (um site coletivo criado em 2009 que eu editava) foi em 2018, com o especial Walter Hill. Ficou incompleto e, enfim, pouca gente se importou de fato em manter as publicações. Um tempo depois, conversando com um ou dois membros, resolvemos fazer uma última tentativa e escolhemos o diretor Mike Hodges para ser o homenageado. Só iríamos publicar alguma coisa depois que todos os textos estivessem prontos. Daí não teria a chance de mais um projeto ficar incompleto no site… A coisa não foi pra frente mais uma vez e acabou sendo o último suspiro do DIA DA FÚRIA, que realmente não tem a mínima possibilidade de retorno.

No entanto, essa última tentativa gerou dois textos inéditos, um do Marcelo Valletta e outro meu. Como o DIA DA FÚRIA não vai ver mais a luz do dia, publico aqui no blog mesmo. Primeiro, o texto do Marcelo e em breve coloco o meu por aqui também.

CARTER, O VINGADOR (Get Carter, 1971)

por Marcelo Valletta

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Após alguns anos trabalhando na TV, Mike Hodges estreou no cinema com CARTER, O VINGADOR, graças a um convite do produtor Michael Klinger. Dispostos a revitalizar o filme de criminosos ingleses, gênero que nas décadas anteriores teve exemplares excelentes, como THEY MADE ME A FUGITIVE (dirigido pelo influente brasileiro Alberto Cavalcanti) e BRIGHTON ROCK, Klinger, Hodges e o coprodutor e estrela Michael Caine aproveitaram o relaxamento da censura, uma das consequências dos Swinging Sixties, para entregar uma obra especialmente brutal.

Essa brutalidade vem de sua maior qualidade: o naturalismo, em especial pelas escolhas de não glamourizar o crime nem espetacularizar a violência. Para interpretar o protagonista do romance “Jack’s Return Home“, recém-lançado por Ted Lewis, Caine, filho de faxineiros que abandonou a escola aos 15 anos, diz ter se baseado em bandidos que conheceu na juventude. Além disso, Hodges e sua equipe pesquisaram a atividade criminal em Newcastle upon Tyne, onde a história se passa.

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Isso resultou em um personagem principal obstinado, taciturno e amoral, sem características redentoras nem apelação para momentâneos alívios cômicos. Em busca dos assassinos de seu irmão, Jack Carter não demonstra nenhum tipo de remorso, mesmo quando seus eventuais aliados se machucam. Diante dos diretamente envolvidos com o crime, deixa escapar uma raiva contida, nos momentos mais intensos. É uma das interpretações mais marcantes de Caine.

O ritmo da obra, cujo enredo se passa em apenas um fim de semana, também causa bastante impacto. São poucas sequências, nas quais os muitos personagens são apresentados a conta-gotas. Os acertos de contas que formam o clímax começam a menos de meia hora do final, quando se inicia uma cadeia de assassinatos, sem grande sofisticação. Não à toa, o primeiro deles é o mais chocante: Carter esfaqueia duas vezes um informante, aos gritos de “Eu sei que você não matou meu irmão!“.

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CARTER, O VINGADOR também acerta ao deixar de lado alguns clichês do cinema noir, como a voz over que desnuda os pensamentos do protagonista e o uso de flaskbacks (estes existem no livro e mostram as relações de Carter com o irmão e outros personagens).

Outro ponto de destaque é o modo como o filme retrata o sexo. Além de exibir nudez ou seminudez de algumas das atrizes principais, a primeira cena mostra uma curiosa reunião em uma residência luxuosa, na qual Carter, seus chefes e outros convidados assistem a uma sessão de slides pornográficos. Prostituição e aliciamento de menores de idade para atuar em filmes caseiros também são abordados, o que ajuda a explicar a inicial classificação X (apenas para adultos), depois rebaixada para R. Mas, apesar de duas das personagens que Carter encontra em Newcastle passarem pela sua cama (a segunda sequência desse tipo faz uso de montagem paralela, alternando entre o casal no carro e na cama), a cena mais erótica, cortada pela censura em vários países, é um telefonema sensual que o protagonista faz à sua amante (interpretada pela linda Britt Ekland, o principal nome feminino nos créditos, apesar de aparecer muito pouco), diante de sua inquilina.

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Entre outros destaques do elenco estão Geraldine Moffat, ótima como a interessante Glenda, que tem um destino irônico, e Dorothy White como a prostituta Margaret. Dos homens, chama especial atenção o celebrado dramaturgo John Osborne, autor de “Look Back in Anger“, que interpreta o chefe dos bandidos de Newcastle como um homem de fala suave, mas implacável nas suas decisões – no livro, o personagem é bem mais grosseiro.

A marcante sequência final, numa praia com céu encoberto onde carvão é naturalmente depositado, carrega bastante na ironia ao mostrar o destino dos principais antagonistas. Um projeto mais comercial concluiria de forma distinta.

CARTER, O VINGADOR foi recebido pela crítica com ambivalência: em geral a qualidade da produção, da direção e das atuações foi elogiada, mas o conteúdo revirou os estômagos mais sensíveis. O sucesso de público também foi moderado, numa época em que o campeão de audiência era o drama LOVE STORY. Ainda assim, foi suficiente para que as edições futuras do romance de Lewis fossem rebatizadas como o filme e que os dois livros seguintes, com histórias ocorridas em períodos anteriores, trouxessem o nome do protagonista nos títulos.

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A MGM, que estava em crise, fechando suas subsidiárias na Europa, resolveu refazer o filme para as plateias ianques, em vez de divulgar o original britânico. Curiosamente, o remake de George Armitage se tornou um blaxpoitation, estrelado pelo jogador de futebol americano Bernie Casey e a futura musa Pam Grier (cuja personagem tem o curioso nome de Gozelda).

No fim das contas, o original de Hodges não alcançou a qualidade de POINT BLANK, com o qual costuma ser comparado, mas ainda assim é o que meu tio que me levava para alugar VHS na infância chamava de “filmão“. Esta porrada cinematográfica ficou esquecida por quase três décadas, até ganhar status de clássico ao ser citada como influência por diretores como Quentin Tarantino e Guy Ritchie – o que acabou desaguando no segundo remake, estrelado por Sylvester Stallone. Mas isso é uma outra história.

[CAGESPLOITATION] 211 (2018)

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211 começa com uma longa sequência no Afeganistão, mostrando um fraudador emboscado por um grupo de mercenários que exige um pagamento de alguns milhões de dólares. Daí inicia um monte de lenga-lenga envolvendo uma investigação da Interpol para pegar os mercenários… E há ainda uma subtrama já nos EUA com o policial vivido por Nicolas Cage, sua filha grávida e o seu genro, também policial, se preparando para a paternidade.

Demora uns bons vinte minutos antes que tudo isso se conecte e a história oficial de 211 comece a tomar forma: Um adolescente entra em uma briga na escola e, como punição, é enviado para fazer uma ronda junto com uma dupla policial, Cage e seu parceiro, que é justamente seu genro. Andam de um lado para o outro dentro da viatura até que os mercenários tentam assaltar um banco onde o fraudador do início do filme escondeu a grana. E os primeiros a chegarem ao local é jutamente o trio.

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Um monte de personagens e subtramas vão surgindo e se amontoando a partir daí e nada de Nicolas Cage realmente demonstrar seus talentos… Na verdade, leva un dez minutos para ele aparecer na tela pela primeira vez e quando diz sua primeira linha de diálogo, o filme já está bem adiantado. Quando finalmente rola o assalto e pega Cage, seu genro e o garoto no fogo cruzado, a coisa melhora um bocado, a ação é intensa e temos muito Cage trocando tiros com os mercenários. Mas o filme nunca consegue ajustar o foco e 211 acaba parecendo mais um piloto para uma série de TV abarrotado de personagens cujo interesse por parte do público é zero. Talvez se tivéssesmo um enredo mais centrado em Cage, o resultado fosse melhor…

Para quem estiver só interessado num filmeco de ação de baixo orçamento sem grandes pretensões, 211 até que diverte, tem bastante tiro e explosões filmadas com uma competência que me surpreendeu. Sequências como a da explosão da cafeteria e vários momentos das trocas de tiro entre a policia e os mercenários dão a impressão de uma produção bem mais abastada. A direção é de um tal York Shackleton… nunca ouvi falar. Já os admiradores de um Cagesploitation podem acabar saindo da sessão desapontados. Só para não perder viagem, há um breve momento que o sujeito entra no modo Crazy Cage, soltando uns berros surtados, que vai fazer qualquer fã do homem abrir um sorriso. Não é muito, mas já é alguma coisa…

NARC (2002)

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Para quem descobriu o diretor Joe Carnahan lá em 2002 com essa porrada chamada NARC, é até bizarro notar as escolhas que o sujeito fez ao longo da carreira. Não acho ruim os seus trabalhos seguintes (pelo menos os que cheguei a assistir – inclusive adoro THE GREY, com Liam Neeson) mas NARC me fez pensar na época que Carnahan seria um diretor ao estilo do que um David Ayer e James Gray foram por um tempo e Craig S. Zahler vem sendo hoje. Ou seja, um realizador de obras mais sombrias e pesadas do universo policial, adaptando autores como James Ellroy… Carnahan acabou deixando uma espécie de lacuna. E NARC se tornou, ao longo dos anos, um pequeno cult movie para os amantes de um bom e velho filme policial.

NARC segue a tradição dos grandes filmes de tiras corruptos e investigadores infiltrados dos anos 80 e 90, com a mesma crueza e o realismo duro de filmes como e COP, de James B. Harris, O PRÍNCIPE DA CIDADE, de Sidney Lumet, VÍCIO FRENÉTICO, do Ferrara, DONNIE BRASCO, de Mike Newell, COPLAND, de James Mangold, JUSTIÇA CEGA, de Mike Figgs… Em resumo, Carnahan nos oferece um mergulho na vida cotidiana de policiais incapazes de lidar com uma vida “normal”, que vivem apenas para o seu trabalho, e acabam afetados de todas as formas possíveis pela imersão em universos dos quais não fazem parte.

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Quando o filme começa, Nick Tellis, o policial interpretado (com intensidade inesperada) por Jason Patric, tenta se reconstruir com sua esposa e filho, alguns meses após uma investigação que deu errado e durante o qual ele acabou causando a morte de um inocente. Portanto, nada o levaria a aceitar a nova missão que lhe é oferecida: investigar o assassinato de um policial acompanhado do ex-parceiro da vítima. Nada o obriga a sair de volta às ruas, à violência das ruas… Mas ele tem isso encravado na alma: ser policial é mais que um trabalho, é a sua vida.

Aos poucos Nick vai voltando às atividades e quando se dá conta, já está completamente absorvido pela investigação. Obviamente, a descida ao inferno é total. Mais profunda do que podemos imaginar, especialmente depois da sequência devastadora dos primeiros minutos de filme. Aliás, que puta começo! A sequência de abertura de NARC é antológica, tensa pra cacete. O espectador é simplesmente arremessado na situação em que Nick, ainda sob disfarce, persegue um criminoso a pé, sem nenhum contexto, com uma câmera chacoalhando freneticamente que faria os caras do Dogma 95 se morderem de inveja, mas que se justifica de tão bem utilizada. E a coisa toda termina de um jeito trágico e violento. Uma violência que prenuncia o resto do filme.

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O outro policial de NARC é Henry Oak, encarnado por um Ray Liotta assombroso. Oak é um sujeito dedicado da velha escola que usa força bruta pra cima dos criminosos e acredita que o departamento de policia deseja enterrar as investigações sobre o seu parceiro assassinado e por isso precisa agir por fora do livro de regras para solucionar o caso. De vez em quando Liotta encontra papeis dignos de seu imenso talento, como é o exemplo de NARC. Com o rosto todo esculpido, os olhos alucinados e uma raiva incandescente, Liotta devora o filme evocando, com a mesma determinação inabalável, uma espécie de Popeye Doyle de OPERAÇÃO FRANÇA.

O próprio Friedkin elogiou pra caramba NARC, chegando a dizer que era melhor do que seu próprio filme. Uma modéstia, claro, não chega a tanto, mas o filme de Carnahan não tem nada do que se vergonhar da comparação.

DRAGGED ACROSS CONCRETE (2018)

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Assisti recentemente a DRAGGED ACROSS CONCRETE e não só confirma a belezura de filme que eu esperava (afinal, fora anunciado como um policial casca-grossa estrelado pelo Mel Gibson de bigode), um dos melhores do ano até o momento, como também coloca em definitivo o seu diretor, S. Craig Zahler, se é que havia alguma dúvida, entre os melhores da atualidade nesse ofício de fazer filmes.

Então temos Mel Gibson – de bigode – e Vince Vaughn (repetindo a parceria com o diretor) como uma dupla de detetives cujos ideais nem sempre vão de acordo com os burocráticos métodos da força policial. São do tipo que atiram primeiro e fazem perguntas depois. O tipo de policial asqueroso que só é bom no cinema. Na vida real, desprezo qualquer tipo de fascismo, obviamente. Como cinéfilo, no entanto, aceito qualquer ideologia radical que seja colocada na tela, até porque acima do discurso sempre tem o cinema, a linguagem e a ética de olhar o mundo sem falsidade. Zahler tem esse olhar e usa bem esse contexto como como trampolim narrativo, para a habitual jornada ao inferno que seus personagens traçam (como em BONE TOMAHAWK e BRAWL IN CELL BLOCK 99). E porque esse tipo de personagem – policiais reacionários – é foda pra caralho (no cinema).

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Ainda na trama, a dupla acaba se ferrando quando é flagrada por uma gravação de celular usando de força bruta pra cima de um suspeito durante uma batida policial. A mídia está pronta para cair matando em cima e o capitão da esquadra, interpretado pelo grande Don Johnson, dá à dupla uma suspensão não remunerada de seis semanas. Isso não ajuda muito os dois policiais, que precisam de seus contracheques para enfrentar os problemas financeiros do cotidiano, já que a vida é dura, policial ganha mal pra cacete, e trabalhar honestamente não “dignifica a alma”, como muitos dizem… Preocupações latentes no cinema de Zahler: amargas questões sociais e o tênue limite entre a justiça e a arbitrariedade.

Em determinado momento começa a tal “descida ao inferno”. O desespero começa a beliscar os calcanhares e os dois detetives decidem emboscar um grupo de ladrões de banco que acabou de fazer um puta assalto. O filme vira uma trama de gato e rato, com planejamentos, perseguições, tiroteios, assassinatos à sangue frio… Tudo o que precisamos num filme policial badass temos aqui. Mas bem ao estilo Zahler, o que significa acompanhar esses personagens ao submundo mais escabroso possível, onde os habitantes cruéis e sádicos não valem o peido de uma égua ​​e ainda assim é impossível tirar os olhos da tela.

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E Zahler me parece muito apaixonado por contar exatamente a história que quer contar, insistindo em cada detalhe de todas situações, personagens e possibilidades, e até cheguei a me perguntar se precisava daquilo tudo (o filme tem mais de 2h30m), que uma edição mais disciplinada poderia ter feito alguns favores… Mas ao final eu já estava tão imerso e envolvido no papo do Zahler, no ritmo lento, na tensão crescente cirurgicamente construída, no universo daqueles personagens, que sequências como a da participação de Jennifer Carpenter, por exemplo, que é totalmente descartável, nem me incomodaram. E o que poderia ser excesso nas mãos de uns, Zahler transforma em enriquecimento narrativo.

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E tudo é filmado com precisão, longos planos, com uma câmera rígida, um mínimo de edição, fundamental para sentir o peso das imagens, da atmosfera e da dor. Desde seu primeiro filme, Zahler trabalha com o mesmo diretor de fotografia, Benji Bakshi, o que deve ajudar a criar uma certa uniformidade autoral e visual na obra do diretor. A violência, outro elemento constante no cinema de Zahler, ainda que em menor escala por aqui, permanece brutal e fascinante como nos seus filmes anteriores. E assim S. Craig Zahler tem se estabelecido como uma das vozes mais distintivas do moderno cinema de ação/policial americano. E do horror, talvez?

Mel Gibson está do jeito que sempre gostamos. Em estado de graça, no papel de um policial cansado e fodido, uma espécie de Martin Riggs envelhecido, em descompasso com o mundo, anacrônico, enfim, um personagem que se encaixa como uma luva ao ator, que oferece uma de suas melhores performances desde os anos 90. Vê-lo descarregando chumbo em desafetos e recarregando seu revolver com uma agilidade impressionante é um dos grandes momentos do cinema em 2019. E, obviamente, tem o bigode mais badass do ano.

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Vaughn sempre a tentar se dissociar das comédias que fez ao longo da carreira, mas não tenho problema algum com ele fazendo papéis puramente dramáticos. Óbvio que de vez em quando dá a sensação de que fará uma piada a qualquer momento, mesmo em situações pesadas ou tensas. Mas seu desempenho aqui é sólido. Já tinha demonstrado que podia fazer sujeitos sérios e trágicos em BRAWL ON CELL BLOCK 99. Mas o filme não é apenas Gibson e Vaugh. É também Tory Kittles, que rouba o filme para si em vários momentos, vive um dos assaltantes de banco e possui o seu próprio arco dramático. No elenco ainda se destacam Michael Jai White (numa participação bem maior que eu esperava) e uma pontinha sempre bem-vinda de Udo Kier.

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Infelizmente, é mais um trabalho poderoso do Zahler que não teremos o prazer de ver nos cinemas. Portanto, assista da maneira que conseguir. Vale a pena.

CÃES DE ALUGUEL (1992)

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Revisão de CÃES DE ALUGUEL. E não é que continua uma belezura? É claro que vendo com os olhos de hoje, com mais bagagem e menos vislumbre que na época de adolescente, quando descobri o filme, percebe-se a mão pesada do Tarantino em alguns momentos. Já entrei em alguns debates com verdadeiros fãs do filme sobre isso, amigos que consideram CÃES DE ALUGUEL a obra-prima do diretor. Respeito de forma absoluta. No entanto, pessoalmente, acho que possui alguns problemas de decupagem, com certos trechos cansativos e muito teatrais (especialmente a que constrói o personagem do Tim Roth)… Mas esse tipo de questão é normal para um estreante, que se arriscou num trabalho autoral, com sua assinatura, como é o caso de Tarantino. E é um cinema feito com tanta paixão e honestidade que esses probleminhas nem incomodam e é difícil não ficar absorvido por aquele universo tão peculiar.

A cena de abertura é uma das minhas favoritas, com uma câmera que gira em torno da gangue de assaltantes vestidos de ternos pretos, discutindo uma tese genial a respeito do verdadeiro significado da letra de “Like a Virgin“, da Madonna. Daí pra frente Tarantino nos coloca em um mundo que é ao mesmo tempo familiar e diferente. E acho que é esse o charme dos seus primeiros filmes. Ele compreende tão bem o tipo específico de cinema de crime e ação, que acaba encontrando novas maneiras de abordar o gênero, tornando-os renovados, cheios de frescor. Em CÃES DE ALUGUEL é o filme de gangster e de assalto, cujo roubo de uma joalheria nunca é mostrado, apenas suas consequências. Tudo embalado numa interessante estrutura não-linear que ajuda a ter uma ideia de quem são esses indivíduos e como entraram na jogada.

O elenco e os vários duelos entre os atores acabam sendo o grande destaque de CÃES DE ALUGUEL, até porque já aqui neste primeiro trabalho Tarantino demonstra que seu forte é a criação de diálogos fantásticos. Temos Harvey Keitel (que também foi produtor do filme) e Tim Roth matando a pau; Lawrence Tierney e Chris Penn (irmão do Sean) também estão ótimos. Mas quem realmente se sobressai nessa turma toda é Steve Buscemi como o arisco Mr. Pink e, acima de todos, Michael Madsen, como Mr. Blue, que protagoniza a sequências mais violenta do filme, a que seu personagem corta a orelha de um policial ao som de Stuck in the Middle With You, do Stealers Wheel. Essa combinação de violência irônica e humor negro é essencial para entender uma das facetas do estilo de Tarantino. Mas também o universo de referências e reverência ao cinema pelo qual Tarantino é apaixonado, o uso da trilha sonora, a abordagem moderna e desconstruída de certos gênero… E tudo já está aqui, em CÃES DE ALUGUEL, um dos filmes mais importantes dos anos 90 e que só foi eclipsado porque o próprio Tarantino lançou dois anos depois PULP FICTION, querendo ou não, um dos filmes mais cultuados e influentes dos últimos trinta anos.

EU QUERO VIVER! (1958); CLASSICLINE

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Para além de seus pomposos vencedores de Oscar, AMOR, SUBLIME AMOR e A NOVIÇA REBELDE, muita gente esquece que o diretor Robert Wise transitava por diversos gêneros com facilidade, sempre deixando grandes obras como resultado. Da ficção científica, com O DIA EM QUE A TERRA PAROU e O ENIGMA DE ANDRÔMEDA, ao horror, com o THE HAUNTING e THE BODY SNATCHER, passando por filmes de ação, noir, western, guerra… Enfim, gêneros não eram problema algum para Wise. Daí temos EU QUERO VIVER!, que é um desses dramalhões pesados à beça, trata de temas espinhosos para a época em situações emocionalmente fortes, e Wise mais uma vez tira de letra.

EU QUERO VIVER! (visto em DVD lançado pela Classicline) recria o drama real de Barbara Graham, a primeira mulher enviada para a câmara de gás em San Quentin, na Califórnia, no início dos anos 50, e dá à atriz Susan Hayward o maior papel de sua carreira. Embora o filme tenha sido feito sob as restrições dos velhos códigos de produção, Wise deixa bem claro o tipo de vida que Graham tinha antes de sua prisão, acusada pelo assassinato de uma idosa, um crime pelo qual, ao que tudo indica, era inocente (na história real, parece que ela era realmente culpada). Prostituta e criminosa em vários sentidos durante grande parte da vida, Graham tenta levar uma vida “correta”. Casa-se, tem filho, mas o casamento se desintegra, e acaba tendo que voltar à velha vida, aos velhos parceiros de crime, para poder botar comida em casa. É detida, junto com seus parceiros, que atribuem o assassinato da velha à ela. Depois de um longo julgamento e um período no corredor da morte, Graham adentra a câmara de gás e é executada.

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É o tipo de filme que poderia degringolar e facilmente apelar para um sentimentalismo besta e óbvio, mas que acaba surpreendendo pela mão firme de Wise e, obviamente, a atuação ousada de Susan Hayward.

Apesar dessa figura moralmente questionável pelos ditos “bons costumes” tradicionais (argh), Hayward constrói uma figura tão fascinante, espirituosa e perspicaz que é difícil não se deixar levar pelo carisma da moça. O filme é todo Hayward, num desempenho intenso sem uma nota falsa. As cenas finais, que levam à execução de Graham, chegam a ser exaustivas de tão fortes em sua intensidade emocional, da agonia ao desespero, até que Graham finalmente perde a longa batalha para se livrar da execução, deixando a implacável e sórdida realidade de sua história uma lembrança indelével na mente do espectador.

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Wise dirige tudo isso com uma mistura de realismo dramático (as cenas finais no corredor da morte são extremamente detalhistas, quase didáticas) e o artifício do film noir, com um magnífico trabalho de claro e escuro, e composições tortas, e embala tudo isso na trilha jazzística de Johnny Mandel, que evoca uma certa energia. Dizem que Wise estava bastante interessado em seguir fielmente os fatos (apesar de algumas mudanças, como tornar a protagonista claramente inocente), e o time de roteiristas baseou o script em artigos escritos pelo jornalista vencedor do prêmio Pulitzer, Ed Montgomery, para o San Francisco Examiner, que acompanhou o caso de perto na época, e também em cartas que a própria Graham real escrevia em seus últimos meses de vida, na prisão. Wise chegou a visitar a verdadeira câmara de gás de San Quentin e até testemunhou uma execução real.

EU QUERO VIVER! não perde tempo fazendo julgamentos vulgares. É filme inteligente, adulto e inflexível, traz uma boa análise sobre a questão da pena de morte e do papel da imprensa no jornalismo criminal ao mesmo tempo em que constrói um drama fascinante com uma personagem muito forte. Hayward acabou ganhou o Oscar de Melhor Atriz naquele ano, sua primeira vitória depois de quatro indicações anteriores, e o filme recebeu outras cinco indicações.

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A edição em DVD da Classicline faz um bom trabalho com o visual, preservando bem a fotografia em preto e branco de forma nítida e forte, com bons contrastes. O DVD pode ser adquirido nas melhores lojas físicas do ramo ou na loja virtual da própria distribuidora.

MAN IN THE SHADOW (1957)

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O diretor Jack Arnold está mais associado às suas contribuições no cinema fantástico, com os clássicos O INCRÍVEL HOMEM QUE ENCOLHEU (57), O MONSTRO DA LAGOA NEGRA (54), A AMEAÇA QUE VEIO DO ESPAÇO (53), entre outras coisas. No fim da carreira, já nos anos 70, não teve receio de se assumir como diretor de filmes de exploração. Seu melhor trabalho, no entanto, dentre os que assisti até o momento, é o pouco lembrado MAN IN THE SHADOW, um faroeste moderno marxista sobre um xerife de cidade pequena que resolve bater de frente com um poderoso rancheiro, desses que tem a população nas mãos e se acha acima da lei.

Em seus 80 minutos de duração, MAN IN THE SHADOW é de uma secura e simplicidade impressionante. A trama pode ser facilmente resumida na investigação policial do tal xerife (Jeff Chandler) a partir de um suposto assassinato ocorrido nas mediações do território do rancheiro vivido por um imponente Orson Welles. E é no confronto, no choque entre essas duas figuras que explode um filme bem mais forte que aparenta ser. Na construção e desconstrução desses personagens, o que eles representam em relação às classes; é, também, na direção econômica de Arnold, na fluidez narrativa, na quebra dos moldes do gênero policial, na anti-ação; é, especialmente, na atuação soberba de Welles, genial nos poucos momentos que surge em cena, criando um retrato assustador do inescrupuloso, fascista e medieval que ocupa o topo da pirâmide na cadeia alimentar. Foi seu envolvimento com MAN IN THE SHADOW, aliás, que Welles convenceu o produtor Albert Zugsmith a financiar um de seus projetos pessoais, um tal filme chamado A MARCA DA MALDADE…

MAN IN THE SHADOW dá uma bela double feature com BAD DAY AT BLACK ROCK (55), de John Sturges.

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