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O IRLANDÊS (The Irishman, 2019)
Sei que muita gente torce o nariz pelo velho Scorsese pós-2000, com essa ideia de que ele não é mais o mesmo, que seu talento diminuiu, seus filmes pioraram, blá, blá, blá… Pra mim sempre foi um deleite todas as vezes em que parei para assistir a um novo filme do homem nas últimas duas décadas. Mas realmente há muito tempo que um filme dele não alcançava de modo tão expressivo as suas ambições como o faz O IRLANDÊS. É o ápice, um desses monumentos que vez ou outra nos aparece, cada vez mais raro, e que traz uma sensação de PURO CINEMA (apesar da ironia de ter sido produzido pela Netflix). Um filme para mostrar ao mundo um autor que ainda está pulsando, que ainda pode nos maravilhar.
E uma das principais maravilhas do filme vem na forma do testemunho representado por vários dos melhores atores da história. Robert De Niro, Al Pacino, Harvey Keitel, Joe Pesci, que foi literalmente retirado da aposentadoria voluntária para dar vida a um dos grandes papéis de sua carreira. E é fascinante perceber como o tempo passou pra esses sujeitos, agora com as caras enrugadas, velhos, frágeis, que no fim das contas é o próprio assunto d’O IRLANDÊS. O tempo que passa, as coisas pelas quais rememoramos da vida, envelhecer… Um épico que reflete as diferentes passagens da vida e o destino inevitável que nos espera. Para alguns, no entanto, por sorte ou azar, há tempo suficiente para refletir sobre o passado e as escolhas realizadas.
Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do título, é um desses exemplos. É o único que restou. Velho, doente, numa casa de repouso, ninguém acreditaria que fora um dia um dos maiores assassinos que trabalhou para a máfia italiana. Mas ele conta sua história, a partir da década de 1950 e vai se estendendo por mais de 40 anos. Um veterano de guerra que virou motorista de caminhão, se envolve com Russell Bufalino (Pesci) e sua família criminosa na Pensilvânia, sobe na vida para se tornar um homem de respeito, mesmo ao custo de perder o amor de sua esposa e filhas. Eventualmente, ele vai trabalhar para Jimmy Hoffa (Al Pacino), o lendário presidente do sindicato dos caminhoneiros, que na época era um dos homens mais poderosos da América. E cujo desaparecimento permanece um completo mistério, embora o filme tente trazer alguma luz para o assunto baseando-se nos relatos do próprio Sheeran (publicado no magnífico livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt), mas que não são efetivamente comprovados e talvez nunca saibamos a verdade dos fatos.
Superficialmente, temos então Scorsese voltando ao chamado “filme de máfia” pelo qual é bastante celebrado por obras como OS BONS COMPANHEIROS e CASSINO. E O IRLANDÊS é mais um olhar definitivo e abrangente sobre esse estilo de vida marcado por crimes, violência, mas também a busca por dinheiro fácil e consagração. No caso de Sheeran é uma vida melancólica. Uma vida definida pela passividade e pela constante subserviência aos seus superiores e à falha como pai, como “chefe de família”. Um vazio personificado melhor pelo papel quase simbólico da filha, que envolve pouco mais que uma participação especial de Anna Paquin, mas que não deixa de ser uma performance crucial para o estudo sobre o personagem.
Há uma infinidade de coisas para analisar e refletir em O IRLÂNDES… Os aspectos históricos por exemplo são curiosos, como a política da época e a corrupção criminal se confundem, ou caminham juntas (invasão da Baía dos Porcos em Cuba, o assassinato de Kennedy, etc…). Mas as questões intimistas me fascinam mais. A ideia de examinar homens violentos que são levados a um apocalipse interno, a melancolia do envelhecimento, a morte, as pessoas descartadas no caminho… Vi o filme duas vezes e até agora não cansei de pensar nessas questões…
Sobre CGI e tecnologias de rejuvenescimento, caguei. Pouco me importa se ficou tosco ou se agora já dá pra fazer um filme com o James Dean… Estava tão imerso na história que não me dei o trabalho de ficar reparando nesses detalhes. Importa pra mim é a aula de cinema de Scorsese, que dirige como o mestre que é, com a sabedoria de quem possui uma carreira repleta de várias obras-primas. Consegue alternar momentos engraçadíssimos com sequências assustadoras e sombrias. Três horas e meia de ritmo e de uma certa energia do diretor. Lento, claro, para quem não está acostumado, mas nunca chato. E sempre se movendo com altos e baixos emocionais como uma montanha russa, à medida em que o glamour e o humor vão gradativamente combinando com a realidade violenta e sombria.
E são vários os momentos que já nasceram clássicos. Angelo Bruno (Keitel) e Russell repreendendo Sheeran no restaurante; a preparação de Sheeran para matar Joe Gallo; o encontro de Hoffa com Tony Pro na prisão; a festa de homenagem à Sheeran; são dezenas e dezenas de momentos memoráveis. E a última hora… Meu Deus… Só essa última hora de O IRLANDÊS já seria suficiente para uma obra-prima. Mas eu queria destacar mesmo toda a sequência que se inicia com a viagem de Sheeran para “encontrar” Hoffa. Fazer o que tem que fazer. Aquele suspense dramático pra cacete… BANG BANG, dois tiros na cabeça, mais um trabalho rotineiro. E a viagem de volta num silêncio sepulcral arrasador. Momentos dignos de antologia. Das melhores coisas que Scorsese já filmou na vida.
Aliás, todos os assassinatos de Sheeran são filmados mais ou menos do mesmo modo. Com um certo distanciamento, o enquadramento pegando os atores de corpo inteiro, e o modus operandi de Sheeran geralmente é o mesmo: aproximação objetiva, dois tiros rápidos na cabeça, discreto, e a vítima não tem tempo nem de tirar as mãos do bolso. E Scorsese em nenhum momento faz dessas cenas um espetáculo. E da mesma maneira acontece com Hoffa. Muda o contexto dramático e isso basta para a cena de seu assassinato ser tão poderosa, tão devastadora. Mesmo mostrada de forma tão rápida e direta. Hoffa foi um amigo abstraído para um objetivo. Uma traição transformada em trabalho. Que filme monumental!
Importa também pra mim De Niro, Pacino e Pesci, três gigantes que agora acrescentam outras performances icônicas à história deles. E aquela última hora de filme… Meu Deus… A última hora de filme é de rasgar o coração.
O IRLANDÊS
Na verdade, fui assistir logo que estreou, já na última quinta-feira. Ainda não consegui parar para elaborar um texto maior aqui pro blog, mas desde então não consegui parar de pensar em THE IRISHMAN, o que de certa forma é bom porque não quero parar de pensar no filme ainda… Scorsese nunca foi tão pesado, sombrio. Um épico íntimo e melancólico. Saí do cinema como se sai de um funeral. Obra-prima.
ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD (2019)
Fui cobrado para falar desse filme há algum tempo. Não ia escrever nada, não tenho muito a acrescentar sobre tudo o que já foi dito, mas isso ficou na minha cabeça. Até porque ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD, nono trabalho de Quentin Tarantino (se considerarmos os KILL BILL’s como um único filme) é uma das experiências mais ricas e gratificantes que tive dentro de um cinema nos últimos anos. Quase três horas de puro prazer cinematográfico, feito por quem realmente sente tesão por cinema, ou por fazer cinema, pela mágica, pela fábula do cinema, a ficção, esse baluarte contra a realidade… Enfim, é Tarantino no seu melhor.
E o filme trabalha muito bem com essa ideia de fábula (Não é a toa que o título começa com “ERA UMA VEZ”). Mistura personagens típicos do imaginário “tarantinesco”, mas num contexto mais palpável (a Hollywood dos anos 60, o período de transição da indústria do cinema, a contracultura fervilhando), no qual o sujeito faz questão de subverter. A partir disso, temos Leonardo DiCaprio e Brad Pitt perambulando por Hollywood: O primeiro é Rick Dalton, ator que teve um passado de glória como cowboy numa antiga série de TV, mas agora está confinado, de uma produção à outra, aos pequenos papéis de vilão em participações especiais; O segundo, Cliff Booth, é a sua sombra, seu dublê, seu faz-tudo e, acima de tudo, seu amigo.
São várias camadas, vários temas, para explorar em ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD e não tenho capacidade nem tempo de ficar enrolando aqui com isso… Mas a relação entre esses dois sujeitos é um dos mais fortes tratado sobre amizade do cinema recente. Bem bonito mesmo. Outra coisa que gosto é a ideia de mostrar os esforços que um ator faz para existir em seu tempo. E DiCaprio está simplesmente genial nessa representação. Só a sequência dele no trailer soltando os cachorros por ter esquecido umas falas já é melhor que a performance inteira que lhe rendeu o Oscar há alguns anos. E depois da gravação da cena, quando a menina lhe diz que foi a maior atuação que ela já viu na vida, fiquei tão emocionado quanto o próprio Rick Dalton…
Mas o que realmente me fascina em ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD é um outro viés, bem mais sutil, mas tão importante quanto qualquer outro tema do filme. Reflete bastante pela presença de Sharon Tate (Margot Robbie), mas acaba dominando boa parte da atmosfera do filme, que é essa rememoração do fantasma de Charles Manson (que mal aparece no filme, quebrando várias expectativas), no que o filme pode ter de macabro e fatalista levando consigo os últimos fragmentos da utopia hippie. O que gera sequências como Brad Pitt no acampamento da seita de Mason, por exemplo, que é das melhores coisas que Tarantino já filmou na carreira.
Só que por outro lado, como já disse, Tarantino tem a crença total no cinema, em seu poder de fábula. Então, ele reescreve a história, como havia feito em BASTARDOS INGLÓRIOS. É por isso que temos coisas lindas como a cena da luta entre Booth e Bruce Lee – que gerou e uma polêmica danada – ou um final que transforma uma tragédia histórica numa farsa sangrenta. Um modo de usar o “Era uma vez” para dar sentido à vida. O cinema é mais bonito que a vida e substitui aos nossos olhos um mundo que concorda com nossos desejos.
O elenco que Tarantino reuniu, como sempre, é especial: Al Pacino, Bruce Dern (que substituiu o Burt Fucking Reynolds, RIP), Kurt Russell, Luke Perry (RIP também), Michael Madsen, Martin Kove, Clu Gulager, James Remar, entre outros… Todos atuam com brilho e fazem suas participações, por menores que sejam, com dignidade. Se rolar uma versão estendida, é bem capaz de aparecer ainda o Tim Roth, que teve suas cenas cortadas.
Se querem saber, pra mim ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD é, certamente, o melhor filme de Tarantino desde os KILL BILL’s, e o melhor que assisti este ano até o momento. E como já estamos no final de outubro, acho bem difícil algum outro tomar este posto. Talvez THE IRISHMAN, de Martin Scorsese, que estreia mês que vem na Netflix e eu já estou babando de ansiedade. Veremos… De qualquer modo, 2019 está sendo um belo ano para o cinema.
“I HEARD YOU PAINT HOUSES”
HEAT IN FRAMES
FOGO CONTRA FOGO (Heat, 1995), Michael Mann