CAÇADA MORTAL, aka CAÇADOR DE MORTE (1978)

Walter Hill disse certa vez que o roteiro de CAÇADA MORTAL (The Driver) foi o mais puro que já escreveu. A história é simples: Ryan O’Neal (em um papel escrito para Steve McQueen) é um motorista especializado em fugas de assaltos. Bruce Dern é o detetive na sua cola.

E é isso.

Alguns detalhes de trama são acrescentados, como a mulher misteriosa interpretada por Isabelle Adjani, que faz um meio de campo entre os dois sujeitos; há perseguições de carros, assaltos, traições… Mas a narativa é de um minimalismo tão absurdo que Hollywood não estava lá muito acostumada num filme de gênero. Não é surpresa, portanto, notar que CAÇADA MORTAL foi bem recebido na Europa, mas na América foi um fracasso financeiro e de crítica.

Mas CAÇADA MORTAL conseguiu se induzir na consciência coletiva e se tornar um modelo para diretores e alguns dos melhores thrillers americanos que vieram posteriormente. Podemos citar produções mais recentes, como DRIVE, de Nicolas Winding Refn, e BABY DRIVER, de Edgar Wright (esse nem gosto tanto, mas é divertido), mas olhando mais pra trás dá pra notar sua influência em diretores como Michael Mann – que chegou a cogitar Walter Hill para dirigir sua obra-prima, FOGO CONTRA FOGO (foi recusado pelo próprio Hill… Ainda bem) – até Quentin Tarantino, que chamou de um dos filmes mais cool de todos os tempos. James Cameron já afirmou algumas vezes que tinha CAÇADA MORTAL em mente quando escreveu O EXTERMINADOR DO FUTURO. Até nos videogames também há quem se apoderou do filme, como o clássico Driver, lançado para o Playstation 1, onde jogamos com um motorista de fuga da máfia em altas perseguições. A relação do jogo com o filme nunca foi assumida, mas é muito óbvia e pode ser facilmente percebida, especialmente quando o jogador dirige o mesmo modelo Chevy vintage visto por aqui.

Enfim, acho que não preciso dizer mais nada sobre a importância de CAÇADA MORTAL, não é mesmo?

Além disso, é um puta filmaço que fala por si só. Um filme sobre um homem que é aquilo que faz. Nos créditos finais Ryan O’Neil aparece sem nome, apenas como The Driver, O Motorista (assim como Dern aparece como The Detective e Adjani como The Player). E dirigir é como o motorista se expressa. O carro é quase uma extensão física e psicológica dele.

Há uma sequência – provavelmente a minha favorita do filme – quando uns ladrões o desafiam, perguntando se ele é realmente tão bom no volante antes de contratá-lo para um golpe. E o motorista não argumenta, não é agressivo, não parte pra briga. Apenas diz a eles para entrarem no carro. E então ele começa as fazer manobras em alta velocidade dentro de um estacionamento, até iniciar a destruição da ostentosa Mercedes, peça por peça, com o veículo ainda em movimento e os donos do carro desesperados no banco de trás. Acho que é algo que define bem esse personagem. O motorista diz apenas 350 palavras no filme inteiro, mas por detrás de um volante, ele fala muito.

Hill, portanto, leva ao extremo essa ideia de uma linha narrativa com enredos minimalistas em filmes que mais declinam do que reproduzem um gênero, sobretudo nesse início de carreira. É como se com Walter Hill os personagens vão do ponto A ao ponto B em uma economia tanto narrativa quanto de meios visuais e psicológico na caracterização dos personagens que se definem apenas na ação. Essa lógica é trabalhada por aqui nos personagens, como já mencionei, mas também tanto numa forma de atemporalidade quanto na criação de uma espécie de realidade alternativa.

Se o diretor posteriormente moldou esse tipo de realidade de forma mais concreta – o universo das gangues de THE WARRIORS, a ambientação retro-futurista de RUAS DE FOGO – com CAÇADA MORTAL ele cria uma terra de fantasia estilizada, emoldurada na sensação dos anos 70, um mundo de pessoas que usam as mesmas roupas, de indivíduos que falam pouco, mas dizem muito com os olhos – a influência do cinema policial francês aqui é óbvia, especialmente Jean-Pierre Melville – uma espécie de film noir misturado com a ilegalidade do faroeste, com fugas e perseguições envolvendo carros em vez de cavalos. Walter Hill, assim como John Carpenter, acredita que todos os seus filmes são essencialmente faroestes.

Ryan O’Neal é uma escolha curiosa para este samurai/cowboy moderno de CAÇADA MORTAL. É um ator mais brando e Hill sabe como usar isso em proveito do filme. É evidente que se McQueen tivesse aceitado o papel ou um Clint Eastwood assumisse o personagem, talvez a recepção local fosse maior na época. Mas a performance sem emoção, bressoniana, de O’Neal ajuda a dar a seu personagem uma aura de frieza e mistério. Para criar contraste, Hill dá a O’Neal um adversário extravagante e expressivo na forma de Bruce Dern, que interpreta o obcecado em capturá-lo. É uma combinação caótica, e o filme explora perfeitamente os estilos de atuação extremamente diversos desses dois grandes atores. Já a francesa Adjani é o mistério em pessoa, uma espécie de femme fatale gélida, quase uma entidade, que vaga por esses polos.

Como não poderia faltar, CAÇADA MORTAL tem sequências de ação de arrepiar os cabelos, uma maestria com trabalho de câmera que traz o espectador para dentro da ação. As cenas de perseguição estão no mesmo nível e talvez até melhores que algumas das sequências mais famosas do tipo, como a de BULLITT e OPERAÇÃO FRANÇA.

Mas o filme é ancorado mesmo pela disputa desses dois homens em lados opostos da lei, o motorista e o detetive, cada um tentando ser mais esperto que o outro. No meio de perseguições de carros e do jogo de gato e rato desses dois, Hill cria o que poderia ser descrito como uma obra de travessura existencial. Em menos de 90 minutos, o filme funciona não apenas como uma exploração em profundidade das coisas que motivam esses indivíduos a fazer o que fazem, mas também funciona como um interessante estudo de sobrevivência, com ideias que transcendem o típico filme de mocinhos vs. bandidos. O viés minimalista é que também faz maravilhas e contribui muito nesse sentido. Até as partituras tensas do mestre da paranóia dos anos 70, Michael Small, dá lugar a uma “trilha sonora” cheia de pneus cantando e latarias amassadas. A irônica conclusão resulta em algo divertido e abstrato (a aparição final de Bruce Dern e uma horda de policiais) e o final sugere o que será um ciclo sem fim para esses sujeitos, numa espécie de purgatorio onde esses personagens habitam e ficam girando em círculo eternamente.

CAÇADA MORTAL é provavelmente a obra-prima de Walter Hill, que é um desses caras fodas que possuem várias obras-primas no currículo. E se você ainda não viu, acredito que vai ser uma boa experiência, vai estar diante de uma bela surpresa.


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CINE POEIRA – EPISÓDIO 12

Steve McQueen e Sam Peckinpah não imaginavam que um singelo filme de assalto, feito unicamente para servir de veículo ao astro McQueen, seria tão influente quando uniram forças para fazer OS IMPLACÁVEIS (The Getaway, 1972). No programa desta semana, comentamos sobre esse clássico do cinema policial lançado nos anos 70, a década que abalou as estruturas do gênero.

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INFERNO VERMELHO (1988)

Não tem muito como errar com a boa e velha fórmula do “filme de parceiros policiais“. Ou como ficou mais conhecido no seu próprio idioma original, os buddy cop movies. Era pegar dois sujeitos de personalidades, classes, culturas opostas, ou seja lá o que for, e colocá-los juntos para resolver crimes enquanto batem boca e defendem visões divergentes… É claro que colocar a Whoopi Goldberg fazendo parceria com um dinossauro de látex não é lá uma boa ideia… O dinossauro merecia um parceiro melhor. Mas os exemplos positivos de buddy cop movies temos aos montes. É como pizza, até quando é ruim é bom.

Um diretor que é sinônimo de buddy cop movies é Walter Hill, um dos responsáveis por definir as regras do sub-gênero ainda lá atrás no início de carreira, como roteirista, em HICKEY & BOGGS (72), dirigido pelo Robert Culp, ou no piloto DOG AND CAT (77), antes mesmo de realizar seu próprio exemplar nos anos 80, o clássico 48 HORAS (1982). E tão familiar com o tema, Hill sempre encontra um jeitinho de dar uma boa variada na fórmula.

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Em INFERNO VERMELHO (Red Heat) essa variação vem num trabalho de “choque cultural”. Tá certo que o resultado acaba sendo tão ingenuo e cartunesco quanto o de ROCKY 4, mas reflete a visão estereotipada coletiva da Rússia pelos americanos do período. Além de funcionar bem como pano de fundo de um filme de ação policial que se propõe a ser uma sátira de diferenças de costumes. Mas o verdadeiro desafio de Hill não era tão simples e poderia colocar todo o projeto a perder. Consistia em trocar as peças um pouco de lugar e convencer o público americano dos anos 80 a aceitar um soviético comunista como herói da história.

Uma grande sacada para resolver essa questão pode ter sido usada já na escolha do ator que faria esse herói, já que naquele período qualquer produção que Arnold Schwarzenegger se envolvesse seria quase automaticamente levada à aceitação pública. O cara era um astro, o “tough guy” do momento ao lado de Sylvester Stallone, e não seria o fato de encarnar um russo que mancharia sua imagem.

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Aliás, a gênese de INFERNO VERMELHO nasceu do desejo de Hill em dirigir Schwarzenegger, o que trazia ao mesmo tempo algumas questões que incomodavam o diretor, como o sotaque do austríaco, por exemplo, que não encaixava em nenhum personagem previamente pensado. Então, Hill veio com a ideia do sujeito ser soviético e a partir disso, com o ator em mente, é que ele, Harry Kleiner e Troy Kennedy-Martin escreveram o roteiro.

Schwarza se encaixou perfeitamente e Hill soube aproveitar a sua iconografia de modo fundamental. Basta reparar na entrada do ator em cena, na sequência inicial na sauna russa, com a câmera passeando pelo corpo de Schwarza imponente como se estivesse estabelecendo um componente dramático-visual relacionado ao físico. Schwarza desempenha seus papéis com presença física em qualquer filme do período, na maneira como seu bíceps aparece na tela, como os músculos do pescoço se comportam no enquadramento, como as veias sobressaltam na pele somando valor estético, é o que torna filmes como INFERNO VERMELHO, CONAN – O BÁRBARO e PREDADOR tão físicos.

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A trama de INFERNO VERMELHO a grande maioria dos fãs do gênero já conhece, mas vamos lá: Schwarza é o capitão Ivan Danko, um policial de Moscou altamente badass que vai parar em Chicago na cola de um perigoso criminoso russo (Ed O’Ross) que matou seu parceiro. Na América, após o estranhamento inicial, ele acaba ganhando a camaradagem, depois de muita resistência, de um controverso e espertinho policial de Chicago, vivido por James Belushi, que lhe ajuda a seguir os rastros do bandido.

O que se desenrola a partir dessa premissa não é exatamente importante, serve apenas de base para algumas questões que interessam a Hill e, obviamente, ao público ávido por este tipo de produto, como a ação física, a sátira escrachada e o relacionamento entre as duas figuras que vamos acompanhar nessa aventura.

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Uma das razões pela qual INFERNO VERMELHO funciona lindamente pra mim, e que eu já ressaltei, é que se assume logo de cara como uma sátira de “choque cultural” cheia de contornos cômicos que envolvem a jornada desse russo na América. É praticamente uma comédia de costumes e é difícil segurar o riso das situações que Danko, o policial russo comunista, passa na meca do capitalismo. A própria maneira como Hill trabalha a imagem para enfatizar certas coisas é muito forte aqui, como a forma que filma Moscou – clean, sóbria e contemplativa – se contrapondo a Chicago, o caos, a poluição sonora e visual, local sujo repleto de bandidos e putas. Danko liga a TV no quarto de hotel em que está instalado e rola um pornozão de boa. A reação dele é hilária: “Capitalistas“.

Em outras ocasiões já acho que o humor nem era intencional, mas não dá pra não rir com Danko, depois de encontrar um pacote de droga na perna de madeira de um sujeito, soltando um “cocainum!“. A química entre Schwarzenegger e Belushi também é um ponto forte nesse lado cômico do filme. Belushi nunca vai chegar aos pés de seu irmão, John Belushi, um ícone da comédia americana, mas até que ao seu modo conseguiu sair da sombra do irmão. Em INFERNO VERMELHO, o sujeito consegue pagar de badass ao mesmo tempo em que arranca boas risadas do público.

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Grande parte do diálogo entre Belushi e Schwarza consiste no primeiro soltando algo do tipo: “Do I look like a fucking cab to you?“, seguido por um “yes” monossilábico de Arnie… E basta para me deixar com um sorriso na cara.

Já a sequência que os dois discutem sobre o fato de Danko ter um periquito de estimação é simplesmente de rachar o bico… Além de Schwarza e Belushi, o elenco merece atenção com vários nomes interessantes que surgem na tela. Ed O’Ross encarna com desenvoltura o papel do vilão russo, temos Peter Boyle como chefe de polícia, Laurence Fishburne, Gina Gershon e uma impagável participação de Brion James.

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Outro principal motivo para qualquer fã de cinema de ação ter a obrigatoriedade de conferir INFERNO VERMELHO é justamente pelas sequências de ação. Hill foi um dos grandes nesse departamento, herdeiro direto de Sam Peckinpah, não economizava em virtuosismo ao filmar tiroteios e perseguições, mesmo que as sequências não sejam nada extravagantes.

Seus tiroteios são crus, filmados com classe, mas que rendem uma boa dose de brutalidade. Os dez primeiros minutos de INFERNO VERMELHO são de arregaçar! Temos Schwarza trocando socos com russos bombados numa sauna, que prossegue num campo aberto coberto de neve e, logo em seguida, um tiroteio classudo num bar que culmina na morte do parceiro do protagonista.

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Outro destaque é o tiroteio na espelunca em que Danko está hospedado. A edição simples, o trabalho com o movimento dos corpos e espaços, a violência dos tiros – causa e efeito bem definidos, filmados com clareza – e até uma prostituta peladona enchendo um bandido de chumbo, proporcionam uma boa dose de truculência.

A exceção da ausência de “espetáculo” na ação de Hill fica na sequência final, em que bandido e mocinho usam um ônibus cada um numa perseguição frenética em meio ao trânsito da cidade, dando um toque do exagero oitentista à obra, mas sem perder a elegância.

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INFERNO VERMELHO é daqueles filmes que eu posso rever e rever quantas vezes forem necessário e ainda vou estar longe de enjoar. Até a sua reflexão ingênua da dialética comunismo x capitalismo funciona bem numa trama que não tenta fazer nada de diferente em termos de estrutura dos buddy cop movies, mas tem a personalidade de seu diretor e entrega exatamente o que promete: ação de primeira qualidade, humor zoeiro e ainda cria um dos personagens russos mais casca-grossa do cinema americano.

Não é o melhor filme que Hill dirigiu, nem o melhor veículo que Arnold Schwarzengger estrelou, mas sem dúvida alguma é um dos produtos mais divertidos que ambos fizeram.

★ ★ ★ ★


Texto originalmente escrito para o Action News em maio de 2018.

LET ME DIE A WOMAN

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Notícia linda que fiquei sabendo essa semana.

Esse senhor aí em cima é o mestre Walter Hill e ele foi escalado para fazer um novo filme de ação. Até aí, tudo bem, tudo normal, para o cara que nos brindou com THE WARRIORS, THE DRIVER, 48 HORAS, O LIMITE DA TRAIÇÃO e vários outros filmaços do gênero, nada mais justo.

Só que olhando mais de perto o projeto, percebe-se umas peculiaridades interessantes. Escrito pelo próprio Hill, a partir de uma história de Denis Hamill, o filme, que se chama até o momento TOMBOY, A REVENGE TALE, trata de um assassino profissional que decide se vingar de seus desafetos após ter sido traído, capturado e… pasmem, ter tido uma não consensual mudança de sexo!

Portanto, temos um assassino que se transforma numa assassina contra sua vontade e parte para a ação. O hom… quero dizer, a moça será interpretada por Michelle Rodriguez, que é, sem dúvida alguma, a escolha perfeita para a personagem. O filme já conta também com a Sigourney Weaver no elenco. Não sei se vai ser interpretando uma mulher mesmo…

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A história por si só tem um conceito legal. Mas o que realmente me anima é o fato do Hill comandar a produção. O último filme do sujeito foi BALA NA CABEÇA, com o Sylvester Stallone, que embora muita gente não tenha ficado tão empolgado, eu curti bastante e demonstra que o velho ainda sabe dirigir ação quando lhe é exigido. Fico otimista com o novo projeto.

Outro importante nome envolvido é o de Saïd Ben Saïd, produtor que gosta de trabalhar com diretores mais cascudos e alguns de seus trabalhos inclui os últimos filmes do Brian De Palma, David Cronenberg, o penúltimo do Roman Polanski e até o próximo do Paul Verhoeven, ELLE, que está em fase de pós-produção.

TOMBOY, A REVENGE TALE tem previsão de ser lançado em 2017 e vamos torcer pra que seja do caralho (não resisti, desculpem) e que tenha o herói transgênero mais badass da história do cinema! Mesmo que seja o único…

SOUTHERN COMFORT (1981)

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SOUTHERN COMFORT é sobre um grupo da Guarda Nacional americana que realiza uns treinamentos de localização e navegação pelos pântanos da Louisiana, tentando encontrar um local específico, exercitando a utilização de mapas, etc. A maioria deles está levando o trabalho bem à sério, muito preocupados com as putas que vão comer quando terminar o exercício. Quero dizer, até mesmo as armas que levam em punho estão carregadas com festim. Em quem vão atirar? Estão em solo americano, não existe inimigo nesse treinamento…

Os problemas começam quando se dão conta de que estão completamente perdidos. Onde deveria haver tal objetivo, só tem água e mais água… Decidem então pegar “emprestado” algumas canoas que encontram num acampamento aparentemente abandonado à beira do rio, com alguns animais esfolados no local e tal… Mas deixam um bilhete pra quem quer que fosse. Depois de alguns minutos navegando, o pelotão descobre que está sendo observado à distância por um grupo de cajuns*, os possíveis donos das canoas. Eles gritam para que leiam o bilhete, mas os caipiras não se mexem. Um dos soldados então, decide ser o engraçadinho da turma e começa a atirar na direção dos sujeitos com uma metralhadora cheia de festim. Rá! Muito engraçado mesmo.

* Os Cajuns são os decendentes dos Acadianos, expulsos do Canadá, que se instalaram na Louisiana. [/Wikipédia mode off]

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Só que os cajuns respondem ao fogo, e a munição deles é bem real, para azar dos pobres militares. A primeira bala já acerta a testa do lider do pelotão (Peter Coyote) e, bom, vocês já podem começar a imaginar o que teremos aqui.

Walter Hill é um dos canônes em orquestrar sequências de ação, colocou Charles Bronson pra brigar em gaiolas em seu primeiro filme, realizou uma das obras mais representativas dos anos 70 com THE WARRIORS, fez algumas das perseguições de carros mais impressionantes que eu já vi em THE DRIVER, imitou Sam Peckinpah num western, enfim é um dos grandes mestres do cinema de ação americano e… agora é o diretor de um dos melhores filmes de caipiras psicopatas que existe!

Na época, era clara a intenção de Hill em fazer referência à guerra do Vietnam, mas o filme se manteve atual e até há poucos anos era difícil ver SOUTHERN COMFORT sem pensar no Iraque e outros países do Oriente Médio. Mantém sua análise, só muda o local. Quero dizer, temos aqui um pelotão americano, alguns deles agindo como autênticos imbecis, numa região na qual não entendem porcaria nenhuma de seus habitantes, sua cultura, não falam nem sua língua. Chega sem permissão, se achando os fodões, mas descobre rapidinho que a coisa não é bem assim. O adversário conhece o território, monta armadilhas, sabe onde se esconder e como monitorá-los…

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É o simbolo perfeito para o fracasso inevitável nesse tipo de negócio que o governo americano insiste em fazer de vez em quando ao longo de sua história.  E não importa se estão apenas “pegando emprestado uma canoa”… Com toda essa substância, fica difícil não preferir SOUTHERN COMFORT em relação a outros filmes do gênero “caipiras assassinos“, como DELIVERANCE, de John Boorman, por exemplo, que é mais aclamado (e não tiro os méritos).

Mesmo suprimindo a análise política, sobra ainda um puta thriller de caçada humana (o final, na vila dos cajuns, é de ficar com o coração na boca, a contrução da tensão é absurda), o qual destaca-se desde o roteiro, escrito à seis mãos pelo próprio Walter Hill, Michael Kane e David Giler, a utilização dos cenários naturais dos pântanos da Louisiana, passando pela direção habitualmente magistral de Hill e, principalmente, o elenco com feras do calibre de Powers Boothe, Keith Carradine, Fred Ward, Peter Coyote e especialmente um Brion James tão assustador quanto os piores monstros e psicopatas dos slashers oitentistas.