HOWARD HAWKS: FINAL

HATARI! (1962)
Hawks no seu modo tardio descontraído pós ONDE COMEÇA O INFERNO. Muito pouco a título de enredo, trama, não há antagonistas, apenas um amontoado de situações com o senso de aventura fenomenal do diretor, seu humor típico e a dinâmica entre os personagens. Um bando de marmanjos na África, à serviço de um zoológico, enchendo a cara e contando prosa, um rinoceronte ensandecido, três filhotes de elefante assanhados e uma italiana que chega pra balançar o coração do Duke. Como dizia o Carlão Reichenbach: a aventura maior do cinema.

O ESPORTE FAVORITO DOS HOMENS (Man’s Favorite Sport?, 1964)
Um renomado especialista em pesca, vivido por Rock Hudson, que sem o conhecimento de seus amigos, colegas de trabalho ou chefe, nunca lançou uma linha de pesca em sua vida. Um dia, ele cruza o caminho de uma garota irritante (Paula Prentiss) que acaba de persuadir seu chefe a inscrevê-lo em um torneio anual de pesca. A confusão está armada. Não é a comédia perfeita do diretor, mas há muito o que gostar em seu próprio jeito. Engraçado, leve, romântico e, afinal, quantos filmes de Hawks temos um urso andando de motoca? Uma despedida divertida, a última Screwball Comedy de um dos maiores mestres do gênero.

RED LINE 7000 (1975)
O filme gira em torno de corredores da Stock Car e todo um universo que os rodeia, as paixões, desilusões, relações, num turbulento retrato sobre indivíduos do mundo das corridas profissionais. Acho foda que Hawks já na reta final da carreira fez esse petardo esquisito, que mesmo sendo um filme tão hawksiano, parece mais um filme do Roger Corman produzido pela AIP. É troncho, uma grande novela da globo, tem alguns dos piores diálogos da filmografia do diretor, o próprio Hawks detestava, mas ao mesmo tempo é um dos filmes mais verdadeiros, humanos e com mais força emocional que o sujeito já fez. Lindo, o tipo de obra-prima imperfeita que eu não resisto…

EL DORADO (1966)
Hawks se reuniu novamente com John Wayne para este “remake espiritual” de seu clássico ONDE COMEÇA O INFERNO. É tipo um “copia, mas faz diferente“. O Duke faz um pistoleiro que se junta a seu velho amigo, o xerife bêbado de Robert Mitchum, para ajudar uma família de fazendeiros a lutar contra um rival que tenta roubar suas terras. James Caan também tá aqui, depois de trabalhar com o diretor em RED LINE 7000. Hawks cria mais uma mistura especializada de emoção, ação e boas risadas, apresentando os dois dos veteranos da era de ouro de Hollywood, Wayne e Mitchum, em estado de graça, entregando desempenhos divertidos de ver, embora o filme no geral não chegue no mesmo nível de seus melhores trabalhos.

RIO LOBO (1970)
Último filme que Hawks dirigiu. Após a Guerra Civil, o personagem de John Wayne procura o traidor cuja deslealdade causou a derrota da unidade de sua unidade e a perda de um amigo próximo. Durante a jornada, acaba se envolvendo numa aventura cheia de ameaças e figuras hawksianas. Embora não seja dos seus melhores westerns e colaborações com o Duke – o filme já nasce anacrônico para o período e com a trama cansada (Hawks recria pela terceira vez a mesma situação de ONDE COMEÇA O INFERNO e EL DORADO, encerrando a carreira numa espécie de trilogia com estes outros dois) – não deixa de ser divertido e ter seus momentos. Uma bela despedida de um dos maiores diretores que Hollywood já teve.

Acima, o último plano do último filme de Hawks. Fim da maratona.

HAWKS NOS ANOS 50

Depois de um pequeno descanso fora da cidade, longe de computador, voltamos à programação normal:

O RIO DA AVENTURA (The Big Sky, 1952)
Tenho quase certeza de que quando o Carlão Reichenbach falava da exuberância da aventura de Hawks, ele tava pensando em O RIO DA AVENTURA. O filme é basicamente um grupo de homens descendo um rio num barco, encarando perigos naturais, trocando tiros com índios, há cenas de homens puxando o barco com uma corda contra correnteza, fazendo catapulta com árvore para lançar um cervo morto do alto de uma montanha, praticamente remete a um filme do Herzog, muito antes do Herzog! Obviamente surgem também as subtramas hawksianas. A maior parte do interesse do filme está na relação entre Kirk Douglas e Dewey Martin, que traz um pouco a dinâmica entre Victor McLaglen e Robert Armstrong no filme mudo do diretor A GIRL IN EVERY PORT (1928), que comentei aqui no primeiro post que fiz dessa série. Belissimamente fotografado, O RIO DA AVENTURA tem todo um senso de épico, de uma aventura grandiosa, que é boa de acompanhar… Só achei mais longo do que precisava.

O INVENTOR DA MOCIDADE (Monkey Business, 1952)
Hawks volta ao Screwball comedy e um pouco ao seu clássico LEVADA DA BRECA, com Cary Grant mais uma vez interpretando um professor confuso lidando com percalços profissionais e românticos. Ele é um químico cujo chimpanzé de laboratório descobre uma poção da juventude, causando complicações para ele, sua esposa (Ginger Rogers), a secretária do laboratório (Marilyn Monroe) e seu chefe (Charles Coburn). Embora não seja tão bom quanto LEVADA DA BRECA, que é a obra-prima do Hawks no gênero, na minha opinião, ainda é extremamente divertido à sua maneira. Grant e Rogers, sozinhos ou juntos, sob o efeito da poção de rejuvenescimento em performances físicas incríveis, é simplesmente antológico. A abertura, com o próprio Hawks pedindo a Grant pra esperar mais um pouco pra entrar em cena, é um desses toques de mestre, que já me faz abrir um sorriso logo de cara, e que permanece até o fim.

OS HOMENS PREFEREM AS LOURAS (Gentlemen Prefer Blondes, 1953)
Divertida adaptação de um clássico da Broadway, sobre duas dançarinas (Marilyn Monroe e Jane Russell) que embarcam para Paris, onde a personagem de Monroe deve se casar com um jovem milionário. No caminho, elas conhecem um detetive particular contratado pelo pai do noivo para investigar se a moça está interessada apenas na fortuna. O filme todo é uma fantasia exagerada bem agradável sobre desejo de libertação feminina e homens como meros objetos. Algumas situações são realmente engraçadas e com números musicais muito bons. E é difícil desgrudar os olhos da dupla principal…

TERRA DOS FARAÓS (Land of the Pharaohs, 1955)
No antigo Egito, o faraó está obcecado em adquirir ouro e planeja levar tudo consigo para a “segunda vida”. Para isso, ele conta com a ajuda de um arquiteto cujo povo é escravizado no Egito. O acordo: construir uma tumba à prova de roubo, cheio de armadilhas secretas, e o seu povo será libertado. Durante os anos em que a pirâmide está sendo construída, uma princesa se torna a segunda esposa do faraó, que não tá muito a fim de deixar o sujeito levar seu tesouro com ele quando morrer… Primeiro e único filme que Hawks filma em CinemaScope. Fritz Lang dizia que o formato só servia pra filmar serpentes e funerais, então Hawks filmou uma serpente e um funeral por aqui. Mas ele não curtiu o resultado, disse, na entrevista com o Bogdanovich, que a tela larga tirava muito a atenção do público… Na verdade, Hawks não gosta de quase nada de TERRA DOS FARAÓS, fora algumas cenas isoladas. Bom, problema é dele. Na minha opinião, o que temos aqui é um dos trabalhos visuais mais poderosos de Hawks, que me ganha mesmo com a trama estranhamente estagnada, mas que consegue ser ao mesmo tempo atrativa e fascinante. Talvez seja um filme menor na obra geral de Hawks, um filme bizarro, nota-se claramente que o diretor tá fora de sua zona de conforto. Mas como filme de gênero, é uma pequena joia que merecia mais reconhecimento.

ONDE COMEÇA O INFERNO (Rio Bravo, 1959)
John Wayne, como o xerife, recusa a ajuda de “amadores bem-intencionados” (como resposta para MATAR OU MORRER, onde Gary Cooper mendiga ajuda o filme inteiro) e fica com um bêbado (Dean Martin), um jovem inexperiente (Rick Nelson) e um velho aleijado (Walter Brennan) para enfrentar um exército de bandidos – além, é claro, da clássica mulher Hawksiana em Angie Dickinson. No autêntico estilo de Hawks, com seus temas recorrentes de camaradagem masculina e profissionalismo em primeiro plano, a aliança improvável dá conta do recado. Hawks abandona um enredo definido e a abordagem épica de seu outro grande western, RIO VERMELHO, para um cenário mais confinado, uma história mais aberta, na qual vão se acumulando situações e arcos dramáticos (o estudo de alcoolismo que faz com o personagem de Martin é notável). São quatro anos que separam TERRA DOS FARAÓS de ONDE COMEÇA O INFERNO. Durante esse hiato, Hawks repensou seu cinema e o modo de o fazê-lo. E quando retornou, o resultado foi esta obra-prima, um filme testamento, um western definitivo e um dos trabalhos mais divertidos de sua carreira.

MAIS HOWARD HAWKS

LEVADA DA BRECA (Bringing Up Baby1938)
David Huxley (Cary Grant) está esperando para conseguir um osso de dinossauro que precisa para sua coleção de museu. Através de uma série de circunstâncias estranhas, ele conhece Susan Vance (Katherine Hepburn), e a dupla tem uma série de desventuras cada uma mais louca que a outra, o que inclui um leopardo chamado Baby. Delícia rever isso aqui. No primeiro filme que trabalham juntos, Hawks coloca Cary Grant usando apenas um robe feminino, gritando “Because I just went GAY all of a sudden!”. Maravilhoso! É praticamente um filme experimental transgressor, não é possível que exista algo até aquele momento com tanta intensidade, energia, que teste os limites extremos do humor. Hawks conduz um autêntico pandemônio, uma narrativa caótica de situações cada vez mais insanas, onde só o exagero surreal impera, sem nunca tirar o foco dos personagens principais, que estão geniais até no overacting. É, ao mesmo tempo, divertido, engraçado e enervante, tenso… Se eu fosse o personagem de Grant nesse filme, já teria cometido um assassinato.

PARAÍSO INFERNAL (Only Angels Have Wings, 1939)
Merecia um texto maior… Em um porto comercial remoto da América do Sul, o gerente de uma empresa de frete aéreo é forçado a arriscar a vida de seus pilotos para ganhar um contrato importante ao mesmo tempo que uma dançarina americana itinerante para na cidade e balança o seu coração. É como se tudo o que Hawks tivesse feito até este momento da carreira, todos os temas que explorou de forma obsessiva, todos os personagens que criou, todos os diálogos, situações, intrigas, dilemas, TUDO fosse um ensaio pra transcender em PARAÍSO INFERNAL da maneira mais sublime e cristalina possível. É um filme que define toda a obra de Hawks e não teria como ser mais perfeito que isso.

JEJUM DE AMOR (His Girl Friday, 1940)
Adaptação da peça The Front Page, do Ben Hecht, por Howard Hawks. Existem diversas adaptações da coisa, inclusive já havia sido filmado em 1931, por Lewis Milestone. Billy Wilder chegou a fazer nos anos 70, com Lemmon e Matthau e até o Ted Kotcheff fez a sua versão com Burt Reynnolds e Christopher Reeve nos anos 80. Mas diferentemente de todas essas versões Hawks e seus roteiristas trocam o papel do repórter por uma mulher (Rosalind Russell), tornando o “embate” entre ela e seu editor (Grant) muito mais hawksiano. Na trama, uma jornalista ex-esposa do editor de jornal, visita seu escritório para informá-lo de que está noiva e que se casará novamente no dia seguinte. O editor não quer deixar isso acontecer e inicia uma sucessão de loucuras para convencê-la a voltar ao seu antigo emprego como funcionária dele, ou como esposa novamente… O filme não é tão intenso e surreal quanto LEVADA DA BRECA, mas é tão divertido quanto, e possui sua dose de insanidade, diálogos frenéticos se sobrepondo, uma loucura… Grande destaque para Russell, que tá maravilhosa, e Cary Grant, mais uma vez provando que é um gênio da comédia. Um detalhe que acho curioso é que toda a trama girar em torno do sujeito que tá no corredor da morte, enquanto tentam criar notícia em cima disso, o que dá aos personagens um verniz desagradável que a natureza do filme meio que encobre. Na superfície, é uma comédia romântica num universo de jornalistas, mas por baixo esconde algo mais dramático e grave. A cena que uma mulher se joga pela janela é um bom exemplo de como Hawks consegue trabalhar com maestria humor e tragédia ao mesmo tempo.

SARGENTO YORK (Sergeant York, 1941)
Num geral, parece menos uma obra com a assinatura de Hawks e mais um filme de John Ford. O herói Hawksiano morre no anonimato, às vezes em missões suicidas, nos confins de uma floresta na América do Sul. O herói Fordiano que é uma figura mais imponente, alçado ao status de mito histórico da América (os grandes coronéis, Wyatt Earp, Lincoln!, etc…). O protagonista de SARGENTO YORK, pacifista religioso que vira herói de guerra interpretado por Gary Cooper, tá mais pra segunda categoria. Mas isso pouco importa, porque o que temos é um belo filme biográfico, indiscutivelmente um dos mais surpreendentes trabalhos do Hawks em termos visuais e técnicos. Gary Cooper tem um dos melhores desempenhos da carreira e, como sempre, Hawks consegue criar um espetáculo na sequência que se passa no campo de batalha. O roteiro tem vários nomes responsáveis, mas de acordo com Hawks, quem realmente escreveu foi John Huston.

BOLA DE FOGO (Ball of Fire, 1941)
Gary Cooper não era exatamente conhecido por comédias, mas nas mãos de Hawks ele prova que pode nos fazer rir – não no nível de um Cary Grant, mas tudo bem – interpretando um sujeito no meio do caos hawksiano. O roteiro, que teve participação de Billy Wilder, faz uma brincadeira genial com os diálogos e o idioma inglês e coloca Cooper como um jovem professor de gramática que trabalha com um grupo de acadêmicos para criar uma enciclopédia. A confusão começa quando ele se depara com uma cantora de boate tagarela (Barbara Stanwyck) fugindo da polícia por conta do namorado gângster e, ao usá-la para pesquisas das gírias modernas, ele se apaixona por essa distinta senhorita. Pode não ser a melhor comédia de Hawks, mas é bem fácil de agradar. Ajuda muito termos um dos melhores elencos que Hawks já reuniu, a química entre os dois protagonistas e a direção magistral de Hawks.

AIR FORCE (1943)
Como entusiasta da aviação, Hawks acabou realizando algumas coisas relacionadas ao tema, o que inclui alguns de seus melhores trabalhos, como THE DAWN PATROL, que já comentei aqui no blog, e a obra-prima suprema PARAÍSO INFERNAL ali em cima. E também este petardo aqui, menos conhecido, que se passa na Segunda Guerra Mundial e se concentra na tripulação de um bombardeiro que chega ao Havaí no momento em que o ataque a Pearl Harbor está acontecendo.

Muita coisa a se destacar por aqui, as sequências dentro do avião são as melhores, seja com a tripulação jogando conversa fora, numa naturalidade pouco convencional pra época, seja em sequências de batalhas angustiantes que até hoje impressionam (e que provavelmente influenciaram George Lucas na hora de filmar algumas sequências de STAR WARS). O filme não tem nenhum grande astro – apesar de ótimos atores, como John Garfield, Gig Young, o velho Harry Carey – e nenhum personagem se sobressai demais, o que torna isso aqui um exemplar clássico do “filme de grupo hawksiano”. Vencedor do Oscar de edição.

UMA AVENTURA NA MARTINICA (To have and Have Not, 1944)
“Posso fazer um filme com o pior livro que você já escreveu”, disse Hawks ao próprio Ernest Hemingway, quando comprou os direitos pra produzir isto aqui. E fez realmente um trabalho belíssimo. Na trama, o capitão de um barco de frete da Martinica se envolve com agentes clandestinos da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial e também com uma mulher misteriosa que aparece no local. Para além de ser lembrado principalmente pelo romance real e fumegante que rolou entre Bogart e Bacall (ambos sublimes aqui), o filme acaba sendo um thriller em tempos de guerra dos mais divertidos do diretor. Eu já tinha visto a versão que o Don Siegel fez dessa mesma história, estrelada pelo Audie Murphy, e que é um dos mais fracos do Siegel. Cheguei a comentar aqui no blog há alguns anos. Não preciso nem dizer o quanto esta versão do Hawks é melhor…

Ah, e Walter Brennan, na sua quarta colaboração com Hawks, tá genial como sempre.

À BEIRA DO ABISMO (The Big Sleep, 1946)
Seguindo o sucesso de UMA AVENTURA NA MARTINICA, Hawks se reuniu novamente com o casal Bogart e Bacall para criar um dos filmes definitivos do cinema noir. Bogart é o detetive particular Phillip Marlowe que se envolve em uma teia de chantagem e assassinato difícil de descrever… Já se tornou um clássico à parte a histórias de que Hawks se viu obrigado a ligar para o próprio autor do romance que deu origem, Raymond Chandler, para perguntar sobre algum ponto-chave da trama e o autor também não fazer a menor ideia de como responder. Mas isso acaba não importando muito de tão imerso que ficamos durante a investigação de Marlowe, sua atitude cínica e espertinha, e claro no romance entre ele e a personagem de Bacall. Um Hawks obrigatório, nota-se sua importância e influência, apesar de nesta revisão eu perceber como não tá entre os meus favoritos do diretor. Não é culpa do filme, que é uma maravilha, mas o Hawks é que tem várias obras-primas à frente…

RIO VERMELHO (Red River, 1948)
De alguma forma, BARBARY COAST, como disse em outro post, é o primeiro faroeste de Hawks, apesar de pouco convencional na iconografia e ambientação. O sujeito só faria um western puro mesmo aqui em RIO VERMELHO. Gênero que ele demorou mais de duas décadas para adentrar e acabou se destacando no restante da carreira. John Wayne, trabalhando com Hawks pela primeira vez, usa maquiagem pesada e tem aqui uma de suas melhores atuações da vida como Tom Dunson, um fazendeiro obstinado que luta com seu filho adotivo, Matt Garth (Montgomery Clift) e seus subordinados durante uma viagem de transporte de gado. O comportamento tirânico de Tom leva a um motim e uma amarga rivalidade entre ele e o filho. É aquela coisa, no universo hawksiano, é o grupo que importa. O personagem de Wayne tentou quebrar essa regra e se ferrou…

A construção que Wayne faz de seu personagem é tão profunda, um processo de transformação de herói à vilão tão genial, que depois de ver o seu desempenho, John Ford chegou a dizer “I never knew the big son of a bitch could act.”

O filme é lembrado também pelo notável subtexto gay entre Matt e o caubói Cherry Valance (John Ireland). “There are only two things more beautiful than a good gun”, diz Cherry para Matt, “a Swiss watch or a woman from anywhere. Ever had a good… Swiss watch?”

Um filme mais emocional e psicologicamente complexo do que a média dos westerns realizados no período. Um clássico absoluto e provavelmente a obra-prima máxima de Hawks. É outro filme que eu gostaria de escrever mais, mas acho que nem tenho capacidade de externar toda minha admiração.

A CANÇÃO PROMETIDA (A Song is Born, 1949)
Remake “copia e cola” de BOLA DE FOGO, que o próprio Hawks tinha feito sete anos antes, reformulado como um musical, substituindo os acadêmicos compiladores de enciclopédia por professores de música. A ideia é muito boa e os números musicais são ótimos (tem participação até de Louis Armstrong) e obviamente não deixa de ser divertido. O material original de Billy Wilder é bem fácil de agradar. Mas lá pelas tantas já tinha perdido o interesse… Não sei se porque revi BOLA DE FOGO há pouco tempo, ou se é perceptível que Hawks não tava muito inspirado, refazendo os mesmos enquadramentos, as mesmas situações, os mesmos diálogos, tudo de novo com outros atores… E convenhamos que Danny Keye e Viriginia Mayo não são Gary Cooper e Barbara Stanwyck. Mas ainda assim vale a pena. Nem que seja pra ver as primeiras cores do cinema de Hawks.

A NOIVA ERA ELE (I Was a Male War Bride, 1949)
Antes de QUANTO MAIS QUENTE MELHOR, de Billy Wilder, Hawks fez esse clássico crossdressing com Cary Grant. Ele vive um capitão do exército francês que se casa com uma tenente americana (Ann Sheridan) na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. Quando tentam embarcar para os Estados Unidos, descobrem que ele deve acompanhá-la sob os termos do War Bride Act, ou seja, como a “esposa” dela, fazendo com que, em determinado momento, Grant tenha que usar uma peruca, saia e voz em falsete. Grant pode não ser muito convincente como francês ou como mulher, mas é justamente por isso que é hilário, enquanto Hawks prova mais uma vez por que foi um dos principais mestres da Screwball comedy.

E por hoje chega.

5 HAWKS MENOS CONHECIDOS

20th CENTURY (1934)
Depois se dedicar a uns filmes de guerra, crime, dramas românticos, que até possuíam um tom de humor em alguns momentos, finalmente Hawks faz sua primeira comédia pura no cinema sonoro. Na trama, um temperamental produtor da Broadway (John Barrymore) toma sob sua guarda uma atriz iniciante (Carole Lombard) e se apaixona por ela. Mas a vida hiper controlada faz com que ela fuja e se torne uma das maiores estrela de cinema. Agora, todos a bordo de um mesmo trem, ele tenta reconquistá-la, o que não vai ser fácil. Hawks não decepciona, repleto de cenas impagáveis e com dois protagonistas inspirados e realmente engraçados (Barrymore sobretudo está inacreditável, entrega uma das grandes performances cômicas do período, genial até nos excessos), é uma grande festa para fãs de screwball comedies, em especial por se tratar de um dos pontos de partida do gênero e ser dirigido por um dos seus maiores mestres.

BARBARY COAST (1935)
Uma moça (Miriam Hopkins) chega do leste e descobre que o seu noivo, que lhe esperava, foi morto. Ela acaba tendo que trabalhar na casa de jogos de Luis Chamalis (Edward G. Robinson), um local turbulento da São Francisco na década de 1850. Quando ela se apaixona por um minerador poeta (Joel McCrea), as coisas começam a se complicar, porque Chamalis não vai entregá-la tão fácil… De alguma maneira, este aqui é o primeiro Western do Hawks, ainda que fora do tradicional. No centro da trama temos mais uma variação habitual do diretor no drama romântico com uma forte figura feminina dividindo as atenções de dois homens. Mas aqui me peguei mais interessado na paisagem, numa São Francisco submersa em névoa, e nas subtramas, a do jornal local, os vigilantes, os personagens secundários, como o do grande Walter Brennan… Segundo filme do Edward G. Robinson com Hawks. Ótimo como sempre.

CEILING ZERO (1936)
O cotidiano perigoso, e muitas vezes trágico, de alguns pilotos veteranos de guerra que estão trabalhando em uma companhia aérea é o tema central desse filme mais rotineiro do Hawks, apesar de ser bom de acompanhar, com os personagens hawksianos que estamos acostumados a ver, com os temas habituais do diretor. Mas tirando um ou outro momento mais inspirado, como a sequência do pouso às cegas – uma aula de tensão e atuação do elenco – o restante me parece conduzido no piloto automático, muito numa zona de conforto de Hawks. O suficiente pra fazer um bom filme, divertido, mas não para um GRANDE filme. O que tá bom também, normal para um diretor desse calibre, com uma filmografia longa. Nem todos precisam ser obras-primas. Minha única reclamação é que justamente os dois trabalhos que Hawks fez com James Cagney (este aqui e THE CROWD ROARS) resultaram em filmes menores… Essa parceria merecia ter rendido pelo menos algo do nível de PARAÍSO INFERNAL, RIO VERMELHO, HATARI! RIO BRAVO…

THE ROAD TO GLORY (1936)
A história da vida nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial através de um regimento francês. No centro da trama, à medida que os homens são mortos e substituídos, um tenente (Fredric March) torna-se cada vez mais sombrio e seu rival pelo carinho de uma enfermeira (June Lang) é o seu próprio capitão (Warner Baxter). É muito louco ver a filmografia de um diretor como a do Hawks, um sujeito tão autoral, em ordem cronológica e num curto espaço de tempo (este aqui era o décimo quinto assistido em menos de duas semanas)… Corre-se o risco de tudo parecer uma repetição de si mesmo. O que de certa forma é, mas não num mau sentido, porque é a obsessão por certos temas que faz a assinatura do cara ser tão pessoal. Aqui, é mais um filme sobre um grupo de homens lidando com a morte durante uma guerra (THE DAWN PATROL, TODAY WE LIVE), novamente temos dois homens apaixonados pela mesma mulher (TIGER SHARK, BARBARY COAST, TODAY WE LIVE, CEILING ZERO), de novo um deles fica cego (TODAY WE LIVE) e parte para uma missão suicida, um último sacrifício (praticamente todos os filmes que citei)… Mas é só tomar cuidado, que dá pra fugir dessa armadilha. Foi um prazer ver filme a filme do Hawks e sim, perceber suas “repetições”. Este aqui é um sólido filme de guerra, cuja direção de Hawks e o elenco entregam até mais do que era de se esperar do roteiro de William Faulkner. A subtrama romântica nem tem tanta força quando uma boa parte do filme vemos um grupo de personagens hawksianos tentando sobreviver em trincheiras sujas ou em meio à explosões e balas. Enfim, mais um grande filme do diretor. Esse recomendo muito mesmo.

COME AND GET IT (1936), co-direção de William Wyler
Um lenhador ambicioso abandona a mulher que ama para se casar com a filha de um milionário, mas anos depois se apaixona pela filha da sua antiga paixão. Só que agora vai ter que disputar o amor dela com o próprio filho. Concordo com o próprio Hawks que diz, numa entrevista com Peter Bogdanovich, que a história é meio boba, mas é desses exemplares que mostram que um grande diretor pode dar vida até num material desse nível. Os primeiros vinte minutos são Hawks puro: grupo de homens focados num trabalho específico (no caso, lenhadores), sequências semi documentais da profissão (como em TIGER SHARK) e uma sequência de bar que termina numa briga generalizada com o humor hawksiano típico… Depois a trama dá uma caída, ainda sobra a velha situação dos dois homens apaixonados pela mesma mulher. A variação aqui é a que mencionei: os dois sujeitos são pai e filho. No final, percebe-se a mudança de tom, ritmo, cadência, já era o William Wyler quem dirigia (Hawks se demitiu, de saco cheio do produtor Sam Goldwyn, mas uns 80% do filme é dele). Filme irregular, mas bem assistível e com ótimas atuações de Frances Farmer (em papel duplo) e do bom e velho Walter Brennan, na sua segunda colaboração com Hawks, e que lhe rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante

MAIS HAWKS

A essa altura, na maratona Howard Hawks que me propus a fazer, já foram 26 filmes conferidos. A velocidade com a qual tenho assistido aos filmes é muito maior do que o tempo que tenho pra parar e postar individualmente sobre cada filme, como no post anterior. Então, vamos de mini reviews mesmo, porque aí dá pra cobrir tudo aos poucos. Aqui vão mais cinco filmes do homem.

THE CRIMINAL CODE (1930)
Depois que um jovem comete um assassinato bêbado, defendendo uma garota, ele é processado por um ambicioso promotor (Walter Huston) e condenado a dez anos. Seis anos depois, esse mesmo promotor se torna o diretor da prisão e oferece ao jovem um emprego como motorista. O rapaz se mantém íntegro no local, mas às vésperas de sua liberdade condicional, um companheiro de cela o arrasta de volta ao mundo da violência, e ele enfrenta escolhas difíceis de fazer… O único problema do filme é a forçada história de amor que surge no final entre o jovem e a filha do promotor, que quase coloca tudo a perder. Mas no geral ainda é um drama prisional bem forte, um olhar duro sobre o efeito que o sistema de justiça criminal pode ter sobre os homens apanhados por ele. Hawks explora mais as possibilidades do cinema sonoro, testando o que fazer com isso. A abertura do filme, com dois detetives tendo um desacordo prolongado sobre as regras de um jogo de cartas a caminho da cena do crime e a capacidade de Huston de transformar um simples “Yeah?” em uma espécie de mantra é algo para se contemplar. Hawks conta uma história muito mais dependente de diálogos e o resultado é bem sólido. Ajuda muito ter um ator do calibre de Huston num desempenho magnífico.

Boris Karloff, num papel pré-Frankenstein, tem pelo menos uma cena memorável, a do assassinato do delator, que aproveita muito bem a sua fisicalidade e expressão corporal. A forma como se move pelas salas com uma graça pesada e aterrorizante é o tipo de coisa que eu não duvido que possa ter influenciado na hora de escalarem Karloff como o famoso monstro no ano seguinte.

SCARFACE (1932)
Esse aqui merecia um texto mais longo. Mas fica pra depois. Por enquanto, a gente ressalta que se trata da primeira obra-prima de Hawks. A trama é obviamente inspirada em Al Capone e é um trabalho definitivo sobre a ascensão e queda de um mafioso com fome de poder. O filme ficou famoso na época por causa da controvérsia e pela violência nessa escalada de poder do protagonista, mas resistiu bem ao teste do tempo (mesmo depois de algumas revisões, apesar de que fazia uns bons anos que não revia), por causa do forte roteiro, as ótimas atuações do elenco, sobretudo um Paul Muni explosivo, e a direção – já magistral a essa altura – de Hawks. Um filme de gangster essencial.

THE CROWD ROARS (1932)
Um famoso campeão de automobilismo (James Cagney) retorna à sua cidade natal para competir em uma corrida local e descobre que seu irmão mais novo tem aspirações de se tornar um campeão de corrida, ao mesmo tempo em que tem que lidar com uma relação amorosa complicada. É outro trabalho do Hawks que tem uma subtrama de amor cego que me tira um pouco do filme (lembram de FAZIL que comentei no outro post?). Mas, no fim das contas, é um filme de 70 minutos que não consegue se aprofundar em muita coisa, acaba sendo divertido de se ver, em especial pelas sequências muito bem feitas de corridas de carro, que tem um senso de tensão e tragédia muito forte. Primeiro filme que Hawks utiliza Cagney, que tá excelente como sempre.

TIGER SHARK (1932)
Esse aqui é um filmaço do Hawks que eu não conhecia. A trama é sobre um pescador de atum português que se casa com uma mulher cujo coração fica dividido entre ele e o seu primeiro imediato no barco. Junto com THE DAWN PATROL, provavelmente é o filme mais puro do Hawks deste período, tem muito dos seus temas habituais, os tipos de personagens e os tipos de valores que ele respeita. Uma colônia unida de homens no trabalho, arriscando a vida, tendo se acostumado com despedidas sem saber se voltam. As sequências de pesca, semi documentais, são tão boas quanto as sequências de ação que Hawks fazia até aquele momento. Mas a alma do filme é o grande Edward G. Robinson interpretando o pescador português maneta, num desempenho magnífico.

TODAY WE LIVE (1933)
Sem dúvida um belo filme. Só demora um bocado pra chegar lá. Começa como um melodraminha bobo, sobre uma moça (Joan Crawford) que se apaixona por um piloto de caça (Gary Cooper) durante a primeira guerra mundial, mas que é dado como morto, então ela vai pra guerra como enfermeira – ou algo do tipo – e se casa com o melhor amigo do seu irmão, até que descobre que o piloto, na verdade, está vivo… Enfim, uma confusão. No entanto, essa traminha de alguma forma ganha força e eventualmente se transforma em um sólido drama romântico com alguns temas habituais do Hawks: um triângulo amoroso em meio à guerra, missões que envolvem sacrifício, homens disputando pra ver quem tem o pau maior… Coisas do tipo.

Sabe-se que a personagem de Crawford foi empurrada à força na trama, os produtores a tinham sob contrato e pediram a Hawks para incluí-la (o roteiro foi escrito por William Faulkner e não tinha a sua personagem). Ela tá até bem, mas as coisas nem sempre acontecem de maneira orgânica (a forma como se apaixona pelo personagem de Cooper é muito esquisita). O filme fica realmente interessante quando os dois homens que disputam seu coração começam a se desafiar, colocando suas vidas em risco além das linhas inimigas. As cenas de ação, tanto pelo ar, quanto pela água, são de encher os olhos. Hawks voltaria a trabalhar com Gary Cooper algumas vezes ainda…

PATRULHA DA MADRUGADA (1930)

Se querem mais Hawks, teremos mais Hawks. PATRULHA DA MADRUGADA (The Dawn Patrol) foi o segundo filme sonoro do diretor (o primeiro, THE AIR CIRCUS, se perdeu). É também uma amostra fascinante do estágio de sua carreira em que não havia ainda chegado no ápice, tava aperfeiçoando seu estilo, mas já tava chegando bem perto disso. Os temas que seriam sua obsessão já começam a cristalizar melhor aqui e podemos ver em embrião as maneiras pelas quais ele abordaria esses temas repetidas vezes.

No final de 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, o 59º Esquadrão do Royal Flying Corps passa por maus bocados. Seu comandante, Major Brand (Neil Hamilton, o comissário Gordon da série do Batman dos anos 60), se vê tendo que enviar jovens pilotos inexperientes direto para o meio da batalha e, inevitavelmente, muitos não sobrevivem nem mesmo à primeira missão. O estresse piora para o sujeito, já que ele próprio, como comandante, não pode voar em missões de combate e o resultado é o sentimento de um carrasco enviando homens para seu destino final.

Major Brand entra em conflito sobretudo com seu subordinado Capitão Courtney (Richard Barthelmess). Supostamente tem havido rixa entre eles desde um incidente envolvendo uma mulher em Paris, mas como o gentil ajudante do esquadrão aponta para um dos pilotos, a realidade é que eles são amigos muito próximos. Eles simplesmente acham mais fácil lidar com uma situação difícil desabafando um com o outro. A guerra avança e Major Brand é promovido. O capitão Courtney, que sempre zombou dos oficiais de escritório que enviam homens para o combate, agora se vê desempenhando exatamente esse papel.

Uma interpretação simplista seria que o filme é um comentário sobre a futilidade da guerra, mas isso não seria característico de Hawks e, de qualquer forma, o próprio filme deixa bastante claro que essa não é a intenção. Na verdade, o filme enfatiza que o perigo e a morte são sempre os inimigos e estão enraizados na vida desses homens. O filme simpatiza com os alemães que são retratados como adversários honrados e heróicos e isso é mais uma indicação de que o inimigo não é o soldado do lado oposto. O inimigo é a própria morte. Em uma cena, um aviador alemão capturado é trazido à base. Logo lhe oferecem uma bebida e não demora para estar farreando alegremente com os aviadores britânicos. Ele não é um inimigo; ele é um homem que enfrenta os mesmos perigos que os pilotos britânicos enfrentam.

De certa forma há um equilíbrio entre o sentimento anti-guerra com uma aceitação existencial mais estóica do dever e amor pelo trabalho, pela missão, ação, destruição, mesmo quando não existe muita esperança, conscientes do sacrifício. Hawks sempre foi fascinado pelo comportamento de homens confrontados com o perigo iminente e a morte. Fascinado pela maneira como grupos de homens lidavam com a morte.

Além disso, PATRULHA DA MADRUGADA nos oferece o tipo de configuração que ele usaria repetidamente, como em sua obra-prima posterior, PARAÍSO INFERNAL (Only Angel Have Wings), na forma como os homens do 59º Esquadrão parecem estranhamente isolados. Nunca vemos os oficiais superiores que dão as ordens ao comandante do esquadrão, temos poucas cenas e eventos em outros locais, praticamente todo o filme se passa no escritório do comandante, na sala de recreação do esquadrão e no ar onde acontecem as violentas batalhas. Ao isolar esse grupo de homens do mundo exterior, Hawks é capaz de se concentrar nos próprios homens e na maneira de se relacionar uns com os outros.

E os homens do 59º Esquadrão aprenderam, no clássico estilo hawksiano, que a única forma de enfrentar a morte é rindo na cara dela.

As cenas de batalhas aéreas são um destaque à parte, tão boas que foram até reutilizadas no remake de 1938, com Errol Flynn e David Niven. A assinatura de Hawks também é aparente aqui. O que importa para o diretor não é a ação, mas a maneira como os homens reagem a ela e, em várias ocasiões, Hawks mostra as aeronaves decolando e corta imediatamente para o comandante do esquadrão esperando ansiosamente pelo som das aeronaves retornando. Não precisamos ver a luta; é o custo emocional que importa. No entanto, quando as cenas de luta aérea são mostradas, o resultado é um espetáculo de ação que impressionam até hoje.

Richard Barthelmess tem uma performance taciturna e discreta que captura perfeitamente o espírito do obstinado herói Hawksiano. Douglas Fairbanks Jr é um tanto expansivo, mas se dá bem. Agora, Neil Hamilton, esse é um caso perdido. Seu desempenho destoa completamente do restante com folgas, hum mau sentido, exagerado ao estilo do cinema mudo, que Hawks evitava.

O roteiro de PATRULHA DA MADRUGADA ganhou o Oscar, creditado a John Monk Saunders, que havia escrito outro clássico de guerra e aviação, ASAS (27), também conhecido como o primeiro filme a ganhar o Oscar de Melhor Filme. Mas dá pra perceber que Hawks teve peso sobre a história e dá até pra dizer o que realmente tem o dedo dele – sequências dos pilotos em bebedeira, a farra, a cantoria, a cena com o aviador alemão capturado… Coisas que se tornariam constantes no cinema de Hawks. E que vale a pena conhecer aqui em seu estágio inicial.

HOWARD HAWKS – FASE MUDA

Iniciei este ano de 2023 assistindo aos filmes do diretor Howard Hawks em ordem cronológica. Se vou conseguir ir até o fim da filmografia do homem, aí é outra história. Mas pelo menos já vi todos os filmes da fase muda. Quero dizer, os filmes que ainda existem dessa fase, porque alguns trabalhos do Hawks estão perdidos. Mas vamos lá.

FIG LEAVES (1926)
Como disse, todo o trabalho do Hawks anterior a FIG LEAVES se perdeu, então esse aqui é o seu “primeiro” filme. A história gira em torno de Adam, um encanador, que tem um casamento feliz com Eve, uma dona de casa obcecada por guarda-roupas, até que ela acidentalmente conhece um designer de moda. Por sugestão de sua vizinha, que tem seus próprios planos secretos com Adam, Eve secretamente se torna uma modelo durante o dia, sabendo que seu marido desaprovaria… Fruto da época, hoje seria impossível de fazer pela visão machista. Hawks disse pro Bogdanovich em entrevista que até pode-se zombar das mulheres, contanto que não ofenda ninguém, ou algo do tipo, o que daria um belo cancelamento ao diretor. Mas consegui me divertir com as várias situações engraçadas sobre o casal protagonista e seus problemas matrimoniais. A sacada de começar o filme levando as questões de “hoje” a um período pré-histórico, de Adão e Eva, é um toque de mestre.

THE CRADLE SNATCHERS (1927)
Já dava pra perceber desde cedo o quanto Hawks levava jeito para o humor e a trama deste aqui é um prato cheio pra isso: para curar seus maridos paqueradores de se relacionarem com outras garotas, três esposas combinam com três universitários a flertarem entre si em uma festa. Durante um ensaio da festa, chegam os três maridos, acompanhados de suas amigas melindrosas, gerando as complicações cômicas que se espera. Só é uma pena que este filme esteja incompleto. E o que sobrou, só consegui ver em imagens de condições muito precárias no youtube. Mas valeu a pena pra conhecer.

PAID TO LOVE (1927)
Hawks podia ter esperado mais uns anos e feito esse filme com som. É uma comédia que pede demais as falas dos atores e poderia estar até melhor rankeado na filmografia do homem. A trama é sobre um banqueiro americano que vai para um pequeno país dos Bálcãs procurando investir o dinheiro de seu banco e fortalecer a fraca economia do país para maximizar o retorno de seu investimento. Para esse fim, ele faz amizade com o rei do país e eles bolam um esquema para casar o príncipe herdeiro (o que ajudaria a fechar o negócio), mas algo que não é particularmente atraente para o príncipe – até que ele vê a bela atriz de cabaré que os velhos escolheram para ele se casar. É mais outro belo exemplar que prova o talento de Hawks pra um certo tipo de humor, com tensões sexuais, e bom olho para composições, câmera e metáforas visuais. Impossível não citar a cena que o primo (William Powell) do príncipe descasca uma banana assistindo a protagonista a se despir. Mostra já um diretor mais sofisticado daquele que realizou FIG LEAVES no ano anterior.

A GIRL IN EVERY PORT (1928)
Dois marinheiros com uma rivalidade em perseguir mulheres tornam-se amigos. Quando um deles decide finalmente estabelecer um relacionamento mais sério, acaba colocando em risco a amizade entre eles. A resolução do filme envolve esses dois homens considerando sua amizade mais importante do que o afeto de uma mulher. Dois homens que aprenderam a se amar através das pelejas e pelo trabalho a bordo de um veleiro e que descobrem que sempre podem contar um com o outro. Achei ousado. Pensem como quiserem, mas muito antes de RIO VERMELHO Hawks já tava abordando amizades diferenciadas entre homens. E é um filme bem bonito, muito bem feito, com vários momentos que arrancam fácil um sorriso do público. Victor McLaglen tá excelente e Louise Brooks é realmente o diabo vestido de mulher… E que mulher! Enfim, uma pequena joia divertida do início da carreira de Hawks. O melhor filme dessa lista.

FAZIL (1928)
Um príncipe árabe nascido e criado no deserto e uma bela francesa de Paris se apaixonam e se casam, mas as enormes diferenças em suas origens e culturas entre suas duas sociedades colocam tensões em seu casamento que podem ser irreparáveis. Talvez o filme mais bem dirigido pelo Hawks até aqui, com algumas composições bonitonas e trabalho de câmera realmente apurado. A sequência que mostra o harém de Fazil é digna de antologia – além de provavelmente ter deixado alguns senhores de 1928 bastante, digamos, animados. Sobre a história, o próprio Hawks dizia que não gostava e não tinha interesse em fazer, mas deu um jeito de tornar a coisa assistível, apesar das atitudes da protagonista e esse conto de amor cego exagerado me deixarem um pouco irritado.

Vou continuar vendo mais uns filmes do Hawks, agora já no período sonoro. E talvez coloque mais impressões por aqui.