Sei que muita gente torce o nariz pelo velho Scorsese pós-2000, com essa ideia de que ele não é mais o mesmo, que seu talento diminuiu, seus filmes pioraram, blá, blá, blá… Pra mim sempre foi um deleite todas as vezes em que parei para assistir a um novo filme do homem nas últimas duas décadas. Mas realmente há muito tempo que um filme dele não alcançava de modo tão expressivo as suas ambições como o faz O IRLANDÊS. É o ápice, um desses monumentos que vez ou outra nos aparece, cada vez mais raro, e que traz uma sensação de PURO CINEMA (apesar da ironia de ter sido produzido pela Netflix). Um filme para mostrar ao mundo um autor que ainda está pulsando, que ainda pode nos maravilhar.
E uma das principais maravilhas do filme vem na forma do testemunho representado por vários dos melhores atores da história. Robert De Niro, Al Pacino, Harvey Keitel, Joe Pesci, que foi literalmente retirado da aposentadoria voluntária para dar vida a um dos grandes papéis de sua carreira. E é fascinante perceber como o tempo passou pra esses sujeitos, agora com as caras enrugadas, velhos, frágeis, que no fim das contas é o próprio assunto d’O IRLANDÊS. O tempo que passa, as coisas pelas quais rememoramos da vida, envelhecer… Um épico que reflete as diferentes passagens da vida e o destino inevitável que nos espera. Para alguns, no entanto, por sorte ou azar, há tempo suficiente para refletir sobre o passado e as escolhas realizadas.
Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do título, é um desses exemplos. É o único que restou. Velho, doente, numa casa de repouso, ninguém acreditaria que fora um dia um dos maiores assassinos que trabalhou para a máfia italiana. Mas ele conta sua história, a partir da década de 1950 e vai se estendendo por mais de 40 anos. Um veterano de guerra que virou motorista de caminhão, se envolve com Russell Bufalino (Pesci) e sua família criminosa na Pensilvânia, sobe na vida para se tornar um homem de respeito, mesmo ao custo de perder o amor de sua esposa e filhas. Eventualmente, ele vai trabalhar para Jimmy Hoffa (Al Pacino), o lendário presidente do sindicato dos caminhoneiros, que na época era um dos homens mais poderosos da América. E cujo desaparecimento permanece um completo mistério, embora o filme tente trazer alguma luz para o assunto baseando-se nos relatos do próprio Sheeran (publicado no magnífico livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt), mas que não são efetivamente comprovados e talvez nunca saibamos a verdade dos fatos.
Superficialmente, temos então Scorsese voltando ao chamado “filme de máfia” pelo qual é bastante celebrado por obras como OS BONS COMPANHEIROS e CASSINO. E O IRLANDÊS é mais um olhar definitivo e abrangente sobre esse estilo de vida marcado por crimes, violência, mas também a busca por dinheiro fácil e consagração. No caso de Sheeran é uma vida melancólica. Uma vida definida pela passividade e pela constante subserviência aos seus superiores e à falha como pai, como “chefe de família”. Um vazio personificado melhor pelo papel quase simbólico da filha, que envolve pouco mais que uma participação especial de Anna Paquin, mas que não deixa de ser uma performance crucial para o estudo sobre o personagem.
Há uma infinidade de coisas para analisar e refletir em O IRLÂNDES… Os aspectos históricos por exemplo são curiosos, como a política da época e a corrupção criminal se confundem, ou caminham juntas (invasão da Baía dos Porcos em Cuba, o assassinato de Kennedy, etc…). Mas as questões intimistas me fascinam mais. A ideia de examinar homens violentos que são levados a um apocalipse interno, a melancolia do envelhecimento, a morte, as pessoas descartadas no caminho… Vi o filme duas vezes e até agora não cansei de pensar nessas questões…
Sobre CGI e tecnologias de rejuvenescimento, caguei. Pouco me importa se ficou tosco ou se agora já dá pra fazer um filme com o James Dean… Estava tão imerso na história que não me dei o trabalho de ficar reparando nesses detalhes. Importa pra mim é a aula de cinema de Scorsese, que dirige como o mestre que é, com a sabedoria de quem possui uma carreira repleta de várias obras-primas. Consegue alternar momentos engraçadíssimos com sequências assustadoras e sombrias. Três horas e meia de ritmo e de uma certa energia do diretor. Lento, claro, para quem não está acostumado, mas nunca chato. E sempre se movendo com altos e baixos emocionais como uma montanha russa, à medida em que o glamour e o humor vão gradativamente combinando com a realidade violenta e sombria.
E são vários os momentos que já nasceram clássicos. Angelo Bruno (Keitel) e Russell repreendendo Sheeran no restaurante; a preparação de Sheeran para matar Joe Gallo; o encontro de Hoffa com Tony Pro na prisão; a festa de homenagem à Sheeran; são dezenas e dezenas de momentos memoráveis. E a última hora… Meu Deus… Só essa última hora de O IRLANDÊS já seria suficiente para uma obra-prima. Mas eu queria destacar mesmo toda a sequência que se inicia com a viagem de Sheeran para “encontrar” Hoffa. Fazer o que tem que fazer. Aquele suspense dramático pra cacete… BANG BANG, dois tiros na cabeça, mais um trabalho rotineiro. E a viagem de volta num silêncio sepulcral arrasador. Momentos dignos de antologia. Das melhores coisas que Scorsese já filmou na vida.
Aliás, todos os assassinatos de Sheeran são filmados mais ou menos do mesmo modo. Com um certo distanciamento, o enquadramento pegando os atores de corpo inteiro, e o modus operandi de Sheeran geralmente é o mesmo: aproximação objetiva, dois tiros rápidos na cabeça, discreto, e a vítima não tem tempo nem de tirar as mãos do bolso. E Scorsese em nenhum momento faz dessas cenas um espetáculo. E da mesma maneira acontece com Hoffa. Muda o contexto dramático e isso basta para a cena de seu assassinato ser tão poderosa, tão devastadora. Mesmo mostrada de forma tão rápida e direta. Hoffa foi um amigo abstraído para um objetivo. Uma traição transformada em trabalho. Que filme monumental!
Importa também pra mim De Niro, Pacino e Pesci, três gigantes que agora acrescentam outras performances icônicas à história deles. E aquela última hora de filme… Meu Deus… A última hora de filme é de rasgar o coração.