MAIS HAWKS

A essa altura, na maratona Howard Hawks que me propus a fazer, já foram 26 filmes conferidos. A velocidade com a qual tenho assistido aos filmes é muito maior do que o tempo que tenho pra parar e postar individualmente sobre cada filme, como no post anterior. Então, vamos de mini reviews mesmo, porque aí dá pra cobrir tudo aos poucos. Aqui vão mais cinco filmes do homem.

THE CRIMINAL CODE (1930)
Depois que um jovem comete um assassinato bêbado, defendendo uma garota, ele é processado por um ambicioso promotor (Walter Huston) e condenado a dez anos. Seis anos depois, esse mesmo promotor se torna o diretor da prisão e oferece ao jovem um emprego como motorista. O rapaz se mantém íntegro no local, mas às vésperas de sua liberdade condicional, um companheiro de cela o arrasta de volta ao mundo da violência, e ele enfrenta escolhas difíceis de fazer… O único problema do filme é a forçada história de amor que surge no final entre o jovem e a filha do promotor, que quase coloca tudo a perder. Mas no geral ainda é um drama prisional bem forte, um olhar duro sobre o efeito que o sistema de justiça criminal pode ter sobre os homens apanhados por ele. Hawks explora mais as possibilidades do cinema sonoro, testando o que fazer com isso. A abertura do filme, com dois detetives tendo um desacordo prolongado sobre as regras de um jogo de cartas a caminho da cena do crime e a capacidade de Huston de transformar um simples “Yeah?” em uma espécie de mantra é algo para se contemplar. Hawks conta uma história muito mais dependente de diálogos e o resultado é bem sólido. Ajuda muito ter um ator do calibre de Huston num desempenho magnífico.

Boris Karloff, num papel pré-Frankenstein, tem pelo menos uma cena memorável, a do assassinato do delator, que aproveita muito bem a sua fisicalidade e expressão corporal. A forma como se move pelas salas com uma graça pesada e aterrorizante é o tipo de coisa que eu não duvido que possa ter influenciado na hora de escalarem Karloff como o famoso monstro no ano seguinte.

SCARFACE (1932)
Esse aqui merecia um texto mais longo. Mas fica pra depois. Por enquanto, a gente ressalta que se trata da primeira obra-prima de Hawks. A trama é obviamente inspirada em Al Capone e é um trabalho definitivo sobre a ascensão e queda de um mafioso com fome de poder. O filme ficou famoso na época por causa da controvérsia e pela violência nessa escalada de poder do protagonista, mas resistiu bem ao teste do tempo (mesmo depois de algumas revisões, apesar de que fazia uns bons anos que não revia), por causa do forte roteiro, as ótimas atuações do elenco, sobretudo um Paul Muni explosivo, e a direção – já magistral a essa altura – de Hawks. Um filme de gangster essencial.

THE CROWD ROARS (1932)
Um famoso campeão de automobilismo (James Cagney) retorna à sua cidade natal para competir em uma corrida local e descobre que seu irmão mais novo tem aspirações de se tornar um campeão de corrida, ao mesmo tempo em que tem que lidar com uma relação amorosa complicada. É outro trabalho do Hawks que tem uma subtrama de amor cego que me tira um pouco do filme (lembram de FAZIL que comentei no outro post?). Mas, no fim das contas, é um filme de 70 minutos que não consegue se aprofundar em muita coisa, acaba sendo divertido de se ver, em especial pelas sequências muito bem feitas de corridas de carro, que tem um senso de tensão e tragédia muito forte. Primeiro filme que Hawks utiliza Cagney, que tá excelente como sempre.

TIGER SHARK (1932)
Esse aqui é um filmaço do Hawks que eu não conhecia. A trama é sobre um pescador de atum português que se casa com uma mulher cujo coração fica dividido entre ele e o seu primeiro imediato no barco. Junto com THE DAWN PATROL, provavelmente é o filme mais puro do Hawks deste período, tem muito dos seus temas habituais, os tipos de personagens e os tipos de valores que ele respeita. Uma colônia unida de homens no trabalho, arriscando a vida, tendo se acostumado com despedidas sem saber se voltam. As sequências de pesca, semi documentais, são tão boas quanto as sequências de ação que Hawks fazia até aquele momento. Mas a alma do filme é o grande Edward G. Robinson interpretando o pescador português maneta, num desempenho magnífico.

TODAY WE LIVE (1933)
Sem dúvida um belo filme. Só demora um bocado pra chegar lá. Começa como um melodraminha bobo, sobre uma moça (Joan Crawford) que se apaixona por um piloto de caça (Gary Cooper) durante a primeira guerra mundial, mas que é dado como morto, então ela vai pra guerra como enfermeira – ou algo do tipo – e se casa com o melhor amigo do seu irmão, até que descobre que o piloto, na verdade, está vivo… Enfim, uma confusão. No entanto, essa traminha de alguma forma ganha força e eventualmente se transforma em um sólido drama romântico com alguns temas habituais do Hawks: um triângulo amoroso em meio à guerra, missões que envolvem sacrifício, homens disputando pra ver quem tem o pau maior… Coisas do tipo.

Sabe-se que a personagem de Crawford foi empurrada à força na trama, os produtores a tinham sob contrato e pediram a Hawks para incluí-la (o roteiro foi escrito por William Faulkner e não tinha a sua personagem). Ela tá até bem, mas as coisas nem sempre acontecem de maneira orgânica (a forma como se apaixona pelo personagem de Cooper é muito esquisita). O filme fica realmente interessante quando os dois homens que disputam seu coração começam a se desafiar, colocando suas vidas em risco além das linhas inimigas. As cenas de ação, tanto pelo ar, quanto pela água, são de encher os olhos. Hawks voltaria a trabalhar com Gary Cooper algumas vezes ainda…

A CASA DE FRANKENSTEIN (1944)

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A CASA DE FRANKENSTEIN (House of Frankenstein), lançado um ano depois de FRANKENSTEIN ENCONTRA O LOBISOMEM, foi um dos infames (mas comercialmente bem-sucedido) filmes de crossover de monstros da Universal. Aqui temos Drácula, Lobisomem e o Monstro de Frankenstein, embora talvez curiosamente seus papéis não sejam realmente centrais. Não é lá um filme muito bom, mas tem seus momentos e é estranhamente agradável de se assistir. Até porque possui uma variedade formidável de ícones do horror do período em seu elenco: Boris Karloff retornando à serie, John Carradine, Lon Chaney Jr e J. Carrol Naish.

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Na trama, o Dr. Gustav Niemann (Boris Karloff) continua o trabalho do famoso Dr. Frankenstein e, como resultado, agora está apodrecendo na prisão. Ele ainda sonha em retomar o trabalho, mas parece improvável que seja capaz de fazê-lo encarcerado. Então o destino intervém – a prisão é atingida por um vendaval que destrói os seus muros, permitindo que Niemann e um outro prisioneiro, o corcunda Daniel (J. Carrol Naish), escapem.

Agora, Niemann pode voltar às suas experiências. Mas há duas tarefas que ele precisa realizar primeiro: encontrar os cadernos do Dr. Frankenstein e se vingar dos homens cujo testemunho o colocou na prisão. Então, com Daniel como seu fiel assistente, ele tem uma série de atividades ambiciosas para colocar em prática. E a partir daqui o filme vira uma bagunça de monstros surgindo pra todo lado…

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Na fuga, um encontro casual com um show itinerante da Câmara dos Horrores dirigido por um tal professor Lampini (George Zucco) oferece a Niemann a oportunidade útil de disfarce perfeito, permitindo que viaje pelos campos sem ser reconhecido ou atraindo suspeita. Uma das exposições de Lampini é o esqueleto de Drácula. É claro que ninguém acredita que é o esqueleto do famoso vampiro, mas quando Niemann remove a estaca do esqueleto, descobre que é realmente o Conde Drácula, que volta à vida.

Encerrado o arco com o Drácula, Niemann está ansioso para voltar ao seu laboratório, especialmente depois de encontrar não apenas os preciosos cadernos do Dr. Frankenstein, mas também os corpos congelados do Lobisomem e do Monstro de Frankenstein. O cientista tem um interesse particular em transplantes de cérebro e agora ele tem muitos cérebros e muitos corpos para brincar. E obviamente, como se trata de um filme horror, você não pode sair por aí ressuscitando mortos e transplantando cérebros de monstros sem que algo dê errado. E nesse caso, o que dá errado é um trágico triângulo amoroso entre o corcunda, o lobisomem e uma cigana…

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Talvez o grande problema de A CASA DE FRANKENSTEIN seja justamente essa combinação desnecessária de vários monstros… Quero dizer, claro que eu adoro a ideia de juntar esses ícones do horror num mesmo filme, mas que seja de uma maneira bem pensada. Por aqui, a trama do Dr. Niemann com seu fiel ajudante, o corcunda Daniel, já tinha material suficiente para um grande filme. Mas resolveram entuchar de monstros sem exatamente uma conexão lógica com o enredo.

O roteiro de Edward T. Lowe Jr (baseado na história de Curt Siodmak) não consegue resolver essa dificuldade. O trecho de Drácula, por exemplo, acaba sendo como um curta-metragem dentro do filme. A história do Lobisomem apaga totalmente a presença do Monstro de Frankenstein, que acaba desempenhando apenas um papel insignificante no final. Como disse, o principal foco da trama é a história da obsessão de Niemann por superar as conquistas de Frankenstein, combinada com os trágicos envolvimentos românticos causados ​​pela chegada da bela cigana Ilonka (Elena Verdugo) no pobre corcunda Daniel. E isso bastava.

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Se os vários aspectos da trama nunca se juntam com muito sucesso, é preciso destacar pelo menos que o filme é tecnicamente bem executado. O diretor Erle C. Kenton mantém um ritmo frenético e oferece muitas emoções ao longo dessa bagunça. Alguns toques visuais são bem interessante (como a cena do assassinato do morcego-vampiro visto apenas em silhueta). A Universal sempre teve a proeza de conseguir fazer com que seus filmes de terror menores, sem grandes orçamentos, parecessem produções mais ricas e aqui não é exceção. Os cenários são impressionantes, especialmente a caverna de gelo onde Frankenstein e Lobisomem são encontrados. As cenas de transformação de monstros são bem feitas, especialmente a do Drácula que vai do estágio de esqueleto até chegar a um vampiro de carne e osso.

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E as atuações, como sempre, variam de boas à excelentes. O desempenho de Karloff é interessante, com seu Dr. Niemann sempre afável, falado em voz baixa e até gentilmente, mas basta alguém se colocar em seu caminho e ele os descarta com crueldade de tirar o fôlego. É como se ele estivesse tão obcecado por seu trabalho que matar é apenas uma pequena irritação. Só é meio estranho vê-lo de volta à série sendo que ele fora o primeiro monstro de Frankenstein, nos três filmes maids marcantes. Portanto é meio bizarro vê-lo contracenando com o monstro (desta vez interpretado por Glenn Strange, que se tornaria oficialmente o monstro nos filmes seguintes produzidos pela Universal).

Lon Chaney Jr. poderia ter interpretado Larry Talbott/Lobisomem até de olhos fechados a essa altura, mas ele adiciona seus toques característicos de pathos, a tragédia, a vontade morrer, o que é sempre bom de ver. John Carradine é um Drácula sinistro e eficaz, uma pena que aparece tão pouco, mas no filme seguinte, A MANSÃO DE DRÁCULA, ele retorna ao personagem. J. Carrol Naish é quem acaba se destacando por aqui como o corcunda Daniel, um assassino de sangue frio, um fiel ajudante e uma vítima de um amor que deu errado.

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A CASA DE FRANKENSTEIN pode até ser desconjuntado, é um pouco mais do que um amontoado de idéias não muito originais e de acumulação de monstros sem qualquer sentido, mas tudo é tão  bem executado visualmente que não se pode deixar de perdoar seus defeitos. E é sempre divertido vê-los tentando espremer ainda mais de uma fórmula tão desgastada. Acaba por ser mais um filme de monstro da Universal que recomendo uma conferida.

O FILHO DE FRANKENSTEIN (1939)

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Em 1938, a Universal relançou nos cinemas as suas duas primeiras produções do ciclo de filmes de Monstros: DRÁCULA, de Tod Browning, e FRANKENSTEIN, de James Whale, que comentei aqui no blog recentemente. Foi um sucesso. Parecia que o apetite do público por filmes de terror estava mais forte do que nunca. Então, a Universal tomou a sábia decisão de fazer um terceiro exemplar com o monstro de Frankenstein – sem a direção de James Whale, mas com um sujeito talentoso no comando, Rowland V. Lee, e uma escala generosa de cenários e direção de arte. O resultado veio no ano seguinte, o excelente O FILHO DE FRANKENSTEIN (Son of Frankenstein).

O estúdio decidiu ainda que o elenco seria encabeçado por seus dois maiores astros do gênero. Boris Karloff voltaria a encarnar o seu icônico monstro e Bela Lugosi, mais conhecido com seu papel em DRÁCULA, contracenaria com seu “rival”. Peter Lorre faria o filho do infame Dr. Frankenstein, mas recusou, então foram atrás de Basil Rathbone, uma decisão acertadíssima.

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Rathbone é o Dr. Wolf Frankenstein, que não é o típico cientista louco como seu pai. É um educado professor universitário que passou sua carreira nos EUA vivendo a reputação infame de seu pai, o Dr. Frankenstein, que deu vida ao notório monstro feito de pedaços de cadáveres. Como herdou o Castelo de seu pai, do outro lado do Atlântico, achou que seria uma boa ideia morar lá com a esposa e o filho pequeno. Porque achou que seria uma boa, permanece um mistério… Obviamente, depois do que vimos nos dois filmes anteriores, os moradores da região ficaram ressabiados com a ideia de um novo Dr. Frankenstein vivendo novamente no local. Até porque tem havido uma série misteriosa de assassinatos por aquelas plagas.

Wolf Frankenstein, já no local, aproveita para investigar o laboratório de seu pai, que vimos que fora quase todo destruído no segundo filme. Lá ele encontra Ygor (Lugosi), ferreiro que costumava ganhar dinheiro extra roubando túmulos para o antigo Dr. Frankenstein. Ele foi enforcado por seus crimes, mas sobreviveu. Seu pescoço quebrou mas a medula espinhal ficou intacta e ele agora tem um osso saliente no pescoço, dando-lhe a aparência bizarra e curvada típica dos personagens clássicos filmes de horror. Legalmente o sujeito está morto, portanto, mesmo vagando normalmente pela região, Ygor está fora do alcance da lei. Só que ele não esqueceu os oito homens do júri que o condenaram.

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E Ygor não é o único indivíduo que “retornou” dos mortos. O monstro ainda vive, aparentemente em uma espécie de coma. Ygor implora ao novo Dr. Frankenstein para trazê-lo de volta à vida. A curiosidade científica de Wolf é despertada com a ideia de que ele poderia recuperar a reputação de seu falecido pai continuando seu trabalho. E bota a mão na massa, sem muito sucesso. Alguns dias depois, no entanto, seu filho menciona um gigante perambulando e Wolf percebe que o Monstro caminha novamente.

Só que seus problemas se acumulam. Mais assassinatos vão acontecendo e o chefe da polícia, o inspetor Krogh (Lionel Atwill, genial), está começando a ficar cada vez mais desconfiado que um mal do passado pode ter retornado ao local. Krogh perdeu um braço para o monstro na infância, então ele tem um interesse pessoal nos trabalhos científicos da família Frankenstein.

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Boris Karloff novamente interpreta o Monstro com bastante força, mas com Bela Lugosi se destacando no papel de Ygor, um personagem bem mais interessante e substancial do que o do Monstro em O FILHO DE FRANKENSTEIN. Lugosi ganha muito tempo de tela e, de fato, domina o filme. É uma das raras ocasiões de sua carreira, depois de interpretar o personagem título em DRACULA, que Lugosi tirou o melhor proveito da Universal. E aproveita a oportunidade apresentando uma performance poderosa que é um dos destaques de sua carreira.

O Wolf Frankenstein de Rathbone é um homem que, desde o início, se encontra numa situação pela qual está irremediavelmente mal preparado e começa a perder o controle. O desempenho de Rathbone se aproxima cada vez mais da histeria e lá pelas tantas, o sujeito dá um espetáculo de atuação. Mas quem realmente rouba a cena é Lionel Atwill, excelente como um sujeito cumprindo seu dever conjuntamente tentando não deixar seus sentimentos pessoais atrapalharem. E Atwill se diverte bastante com o seu braço mecânico, que adiciona um toque engraçado, ao mesmo tempo grotesco.

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O roteiro de O FILHO DE FRANKENSTEIN foi escrito duas vezes. E o produtor-diretor Rowland V. Lee não gostou de nenhuma das duas versões e começou ele mesmo a reescrever. Ainda estava reescrevendo-o quando as filmagens começaram e nunca houve realmente um roteiro final. Ainda assim, Lee manda bem na direção, o filme tem bom ritmo e alguns momentos atmosféricos. E mesmo assim continuou reescrevendo o roteiro enquanto prosseguia com as filmagens. Surpreendentemente, as coisas acabam se encaixando bem, mesmo com a longa duração de quase 100 minutos, o que é um exagero em comparação aos outros filmes de monstro do período. A direção de arte também contribuiu enormemente para o sucesso do filme, com alguns dos melhores cenários que eu já vi nesses filmes de horror da Universal.

O filme foi um triunfo retumbante nas bilheterias e gerou um bom lucro para a produtora. Seja lá por quais motivos, os filmes de horror seguintes da Universal não tiveram o mesmo orçamento, sempre menor, mesmo O FILHO DE FRANKENSTEIN provando que um filme de terror bem feito, bem produzido, é ouro nas bilheterias. Visualmente, fica no mesmo nível dos filmes de Whale, FRANKENSTEIN e A NOIVA DE FRANKENSTEIN. Possui uma história sólida, cenários incríveis, personagens complexos e ótimas performances (especialmente de Lugosi e Atwill). E eu não poderia pedir mais que isso. Altamente recomendado para quem gosta dos filmes anteriores e do ciclo de filmes de monstro da Universal.

A NOIVA DE FRANKENSTEIN (1935)

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Aproveitando o embalo, resolvi rever também A NOIVA DE FRANKENSTEIN, a célebre continuação do filme que comentei no post anterior, FRANKENSTEIN, novamente dirigido pelo James Whale, um dos diretores mais visionários do ciclo de horror da Universal. E com Boris Karloff mais uma vez reprisando o papel de monstro de forma sublime.

O filme começa com um prólogo curioso, mas que faz alusão ao real processo criativo de Mary Shelley quando concebeu seu clássico. O prólogo apresenta os poetas Lord Byron e Percy B. Shelley, numa noite chuvosa, ouvindo a esposa deste último, Mary, continuando sua história onde o romance parou. E aí começa A NOIVA DE FRANKENSTEIN, que retoma a história no ponto exato em que FRANKENSTEIN de 1931 terminou. O monstro supostamente incinerado no moinho em chamas e o corpo do infeliz Henry Frankenstein (Colin Clive), depois de uma violenta queda mostrada no clímax do filme anterior, é devolvido ao castelo de seu pai e à sua noiva em luto, Elizabeth (Valerie Hobson).

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Só que o Dr. Frankenstein milagrosamente não morreu. O tempo passa e ele consegue se recuperar, mas está determinado a esquecer seus terríveis experimentos. A chegada de um famigerado professor, Dr. Pretorius (Ernest Thesiger, genial), muda tudo isso. Pretorius tem trabalhado (de uma maneira particularmente bizarra) também na criação de vida artificial, e ele quer a ajuda de Frankenstein. Nem que tenha que recorrer a métodos extremos para convencer o jovem cientista.

De longe o personagem mais memorável do filme (e digo isso num filme que inclui dois monstros), o Dr. Pretorius é duas vezes mais maluco do que Henry Frankenstein. E também adora criar monstros profanos. Numa das minhas sequências favoritas, Pretorius mostra a Frankenstein suas últimas criações: seres humanos em miniatura que ele guarda em jarros. Um rei e uma rainha; um papa, um homem a quem Pretorius se refere como “um diabo”; uma bailarina e uma sereia que vive em uma garrafa de água… A sequência não acrescenta muito à narrativa, mas é impressionante tecnicamente, um espetáculo de efeitos especiais e imaginação que é difícil não ficar encantado.

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A ideia de Pretorius agora é criar uma versão feminina do mostro original de Frankenstein. Ficamos sabendo que o monstro, assim como seu criador, sobreviveu ao moinho ardente e agora percorre as florestas locais causando o caos e tentando fazer amigos, o que por sua vez cria mais caos… As andanças do monstro acabarão por levá-lo de volta ao laboratório de Frankenstein, onde Pretorius o usará para forçar o cientista a voltar ao trabalho. E finalmente, depois de muitas sub-tramas, Frankenstein e Pretorius dão vida à NOIVA DE FRANKENSTEIN… quero dizer, à companheira do monstro (interpretada por Elsa Lanchester, que também faz Mary Shelley no prólogo), só que os resultados são catastróficos!

É interessante notar uma certa falta de interesse de Whale em construir um filme de horror tradicional em A NOIVA DE FRANKENSTEIN. Na verdade, o diretor não parecia interessado no gênero de forma alguma, e acaba criando algo bem diferente do que se espera. Alguns momentos são cômicos (especialmente quando a atriz Una Connnor está em cena), outros mais melodramáticos. E Whale ainda consegue encaixar um toque muito pessoal à obra, um subtexto homossexual representado na parte em que o monstro faz amizade com um ermitão cego (O.P. Heggie) que vive numa cabana no meio da floresta. E agradece aos deuses por terem finalmente atendido suas preces e lhe abençoado com um “amigo”.

Eu cuidarei de você e você me confortará“, diz o eremita ao monstro.

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É a única relação frutífera e emocional dentro do filme, uma sátira dos valores familiares heterossexuais. Por outro lado, os relacionamentos “normais” do filme estão todos condenados. Henry Frankenstein e Elizabeth são frequentemente afetados pelas consequências das práticas do cientista. O próprio monstro e a noiva dele também são um fracasso – assim que a noiva o vê, grita, recua e prova que o amor não pode ser fabricado.

Assim, a história das duas almas solitárias excluídas pela sociedade é o único relacionamento que persevera de alguma forma. Um relacionamento que existe harmoniosamente até ser descoberto por membros regulares da sociedade. A desvantagem de ambos os personagens – um monstro, um eremita cego – pode ser vista como representações de homossexuais aos olhos hostis da sociedade.

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E o resto todos já sabem, só delícias. A NOIVA DE FRANKENSTEIN é considerado por muitos o melhor dos filmes de monstros da Universal. Ou de todos os tempos. E assim como o primeiro, é recheado de momentos clássicos e marcantes. Como a sequência que o monstro é capturado e pregado a um poste que remete a uma espécie de crucificação bíblica, ou o final, a criação da noiva do monstro e sua primeira aparição, um espetáculo de montagem e closes expressivos. A sua presença não deve durar nem cinco minutos no filme, mas é suficiente para tornar a figura de Elsa Lanchester um ícone da cultura pop.

Os cenários são maravilhosos, assim como a maquiagem e a fotografia expressionista de John J. Mescall. James Whale novamente demonstra porque foi um dos diretores com mais personalidade do período. Enfim, A NOIVA DE FRANKENSTEIN é desses monumentos do horror clássico que merece toda a celebração que o precede.

FRANKENSTEIN (1931)

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FRANKENSTEIN, de James Whale, foi realizado imediatamente após o sucesso de DRACULA, de Tod Browning, com Bela Lugosi, que deu início ao ciclo de horror da Universal nos anos 30. Mas FRANKENSTEIN sempre me pareceu bem mais avançado e moderno, resistindo mais ao teste do tempo. Posso ver e rever que não me canso. Já o filme de Browning… Não que eu não goste de DRACULA, que também tem sua inegável importância para o gênero, mas não me encanta tanto quanto outros exemplares de horror do período. O impacto do filme de Whale, por exemplo, me parece mais evidente, mais forte numa seminal tradição entre os filmes de terror, definindo e consolidando o gênero. E sua influência continuou a reverberar durante muito tempo.

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A trama, que todos conhecem, é um conto moral, reflete uma punição que cai sobre o homem que se atreve a emular Deus. No caso, temos Henry Frankenstein, um jovem cientista que abandonou os estudos, família, noiva, para se enfurnar numa torre isolada e continuar realizando seus obscuros experimentos. Que consiste também em vagar à noite pelo cemitério procurando membros de diversos cadáveres para costurá-los e criar um novo ser. Um ser criado pelas mãos de um homem. Frankenstein deseja criar vida, não apenas para o benefício da ciência, mas para saber como é ser Deus.

Mas para dar vida a esta criatura, um cérebro é necessário. Após uma confusão de seu assistente corcunda, Fritz, ele acaba colocando o cérebro de um criminoso na sua criação. Mesmo com sua família e amigos tentando fazê-lo desistir desta ideia maluca, Henry infunde vida na criatura, que escapa para o vilarejo e começa a causar estragos.

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O filme é uma sucessão de cenas clássicas, desde Frankenstein pondo-se a gritar “IT’S ALIIIIIIVE”, passando pela sequência em que a criatura joga uma menina num lago, até o confronto final no moinho. A primeira aparição da criatura também é um dos pontos altos, com Boris Karloff magistral em sua composição gestual e com a maquiagem icônica, que definiu os parâmetros visuais do personagem por pelo menos meio século. O gênio da maquiagem da Universal Jack P. Pierce concebeu a aparência única do monstro, com seu penteado eletrificado de ponta chata, cavilhas no pescoço, pálpebras pesadas, mãos cicatrizadas alongadas… Conseguiu fazê-lo parecer assustador, mas também dá um certo tom de ingenuidade e inocência à criatura.

O monstro do romance Frankenstein, de Mary Shelly, é um personagem complexo em várias camadas, digno de uma tragédia shakespeariana. Ele é vítima e vitimizador, insensível e sensível, uma criança inocente e um vilão completamente formado. Já para a versão cinematográfica, essas nuances do personagem talvez fossem pouco atraentes para o público da época. Na tentativa de diluir o personagem para as massas, o diretor James Whale e sua equipe acabaram criando algo pelo qual o público, além de temer, também pudesse ter empatia: o monstro totalmente inocente, muito estúpido para entender seus atos. Portanto, apesar de FRANKENSTEIN, de um modo geral, não ter a complexidade do original de Shelley, o filme possui uma poderosa simplicidade que lhe permitiu sobreviver até hoje.

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Não fosse também o trabalho de Whale na direção, talvez o filme não tivesse tanta força. Whale era um visionário criativo, bastante influenciado pelo expressionismo alemão da década de 20. O uso da iluminação de Whale marcou todo o ciclo de horror da Universal. O trabalho de câmera móvel, que permitia que o instrumento pudesse passear livremente pelos cenários, é digno dos grandes mestres da mise en scène. O plano do pai carregando a menina afogada nos braços em meio à multidão que reage aterrorizada, num longo travelling contínuo, é dessas imagens dignas de antologia.

O resultado é um filme de considerável força estilística, com a cinematografia assombrosa e cenários que mistura estilizados detalhes expressionistas e a solidez da arquitetura gótica e teutônica, que contribuem muito para a atmosfera sombria da produção. Whale também mostra uma compreensão sofisticada do som. Ao contrário de DRACULA e os filmes de terror do período, FRANKENSTEIN evita ao máximo usar uma trilha sonora. Whale usa sons do ambientes para ajudar a sustentar a atmosfera – o que é bem evidente na cena inicial do cemitério, por exemplo, onde um sino de igreja e o barulho de terra batendo na tampa de um caixão ressoam com uma precisão assustadora.

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Karloff estrelou as próximas duas sequências, A NOIVA DE FRANKENSTEIN (1935), também dirigido por Whale e SON OF FRANKENSTEIN (1939). Mas a série com o personagem sob a batuta da Universal continuou ao longo dos anos: THE GHOST OF FRANKENSTEIN (1942), FRANKENSTEIN MEETS THE WOLF MAN (1943), HOUSE OF FRANKENSTEIN (1944) e até a comédia ABBOT AND COSTELLO MEET FRANKENSTEIN (1948). Ao longo dos anos, várias outras franquias, filmes isolados e releituras foram surgindo, desde comédias como YOUNG FRANKENSTEIN, de Mel Brooks (1974) até a versão de Kenneth Branagh, em 1994, com Robert De Niro estrelando o monstro. Dizem que é uma das adaptações mais fieis do livro de Shelley. Ainda não assisti.

Embora FRANKENSTEIN esteja longe de ser impecável – o remorso de Henry Frankenstein é particularmente pouco convincente, diminuindo-o à mesquinha moralização – este clássico do horror é filmado com uma sensibilidade mítica que o coloca entre um dos mais icônicos exemplares do gênero na história do cinema.

MORTE PARA UM MONSTRO (Die, Monster, Die! 1965)

DieMonsterDie-CG06-tnOs aficcionados pela obra do escritor H. P. Lovecraft provavelmente vão querer conhecer MORTE PARA UM MONSTRO, de Daniel Heller, produção de James H. Nicholson e Samuel Z. Arkoff, os cabeças da American International Pictures (AIP) – responsáveis por vários dos melhores trabalhos do genial Roger Corman. O filme adapta The Colour Out of Space, conto escrito em 1927 por Lovecraft. Ao contrário dos filmes de Corman, no entanto, especialmente as adaptações de Edgar Allan Poe, e já fazendo uma comparação um tanto cretina, até porque é impossível não pensar o filme como um sub-Corman, MORTE PARA UM MONSTRO pode soar um bocado simplista e até mesmo bobo em termos de conteúdo e personagens, mas ainda reserva alguns atributos interessantes para segurar a atenção.

A verdade é que as histórias de Lovecraft têm se demonstrado quase infilmáveis. Tirando, claro, as adaptações extremamente livres de Stuart Gordon, com o seu RE-ANIMATOR, FROM BEYOND e outros, quais filmes fielmente adaptados do autor americano resultaram em grandes obras? Bem, pelo menos eu não consigo me lembrar de nenhum exemplo e, assistindo a MORTE PARA UM MONSTRO, isso não mudou muito de figura, embora eu tenha curtido o filme, especialmente o que toca todo o conceito estético.

vlcsnap-2014-04-11-03h40m33s120_zps09db6bacNick Adams é Stephen Reinhart, um americano que chega à pequena cidade de Arkhan, na Inglaterra, em busca da mansão dos Witley, mas acaba sendo sendo extremamente mal recebido pelos locais no instante em que, apavorados, ficam sabendo que o rapaz está procurando tal lugar. Mesmo com os avisos de dar meia volta, retornar aos EUA e se enfiar debaixo das cobertas, Reinhart resolve seguir caminho. Ao se aproximar do seu destino, o rapaz percebe que algo estranho tem assolado a paisagem, especialmente aos arredores da mansão, totalmente desértico, com uma imensa cratera no chão, onde deveria haver uma vegetação verdinha, além uma névoa densa e constante realçando a atmosfera, provavelmente até o cheiro deveria ser incomum…

Uma vez dentro da mansão, as coisas não ficam melhores. Surge em cena Nahum Witley, personagem de Karloff, arrepiante como o patriarca da mansão, preso numa cadeira de rodas, mas que atormenta o pobre Reinhart dizendo que ele não pode ficar e deve ir embora imediatamente. Além disso, uma estranha luz verde fosforescente brilha no porão da casa, acrescentando ainda mais o número de bizarrices do local e instigando a curiosidade de Reinhardt. Mas nada disso impede o rapaz de permanecer no local. A atenção de Reinhart é somente à bela filha de Karloff, interpretada por Suzan Farmer, demonstrando ou uma estupidez sobre-humana ou um desejo incontrolável do cara em tirar o cabaço da moça, para não sair correndo dali o mais rápido possível!

vlcsnap-2014-04-11-03h41m05s185_zps01806678A primeira hora de MORTE PARA UM MONSTRO é basicamente resolvida na conversa, com uma narrativa lenta que trabalha os elementos do suspense de forma esporádica, para não dizer arrastada e enfadonha. Heller dirige o filme de maneira pesada, sem grandes inspirações com a câmera, mas bastante apoiado no visual que a obra possui e que é absurdamente fascinante, seja pela elaboração dos elementos estéticos ou pela forma como a cor é distribuída na tela. Isso a ajuda a manter o foco na história.

É curioso notar também que Heller foi diretor de arte de vários filmes de Roger Corman no ciclo Edgar A. Poe, cujo padrão estético reserva muita semelhança com MORTE PARA UM MONSTRO. Portanto, não é difícil identificar os motivos que fizeram Heller se preocupar mais com o visual do que com o ritmo da narrativa e detalhes de dramaturgia. E, neste caso, atrapalha um bocado o fato dos personagens não terem tanto carisma quanto deveriam, nem mesmo a presença de Karloff em cena é suficiente, um ator com bons recursos dramáticos para esse tipo de produção.

Die Monster Die - CG.avi_snapshot_00.53.42_[2012.12.15_23.46.45]Mas à medida em que os personagens aproximam-se das reais ameaças que a trama prepara e alguns corpos começam a aparecer misteriosamente, a coisa engrena e melhora consideravelmente. Reinhart, por exemplo, passa a bisbilhotar a estranha luz verde no porão e descobre que o artefato trata-se de um pedra que caiu do céu, ou como dizia aquele personagem do Ramón Valdéz, num episódio de Chapolim: “São aerolitos! Aerolitos!“. O velho Witley pegou o meteorito para usar a radiação nas suas plantas dentro de uma estufa, fazendo-as crescer e dar uma “bombada”.

O problema é que com o tempo, as plantas do velhote se transformam em criaturas bizonhas e o efeito colateral da radiação foi responsável pela morte de sua esposa, Letitia, e tem ferrado com sua saúde e a de todos que se aproximam do local, afetando até mesmo o ecossistema da região. Nahum planeja destruir o meteorito, mas as coisas só pioram… pioram para os personagens, claro, porque para o espectador é só diversão. Ao final, por exemplo, temos uma sequência espetacular na qual Karloff passa por uma transformação e torna-se numa espécie de Surfista Prateado com um brilho esverdeado, já “possuído” pelo meteoro, e tenta matar quem estiver em seu caminho.

DieMonsterDie-CG28-tn No fim das contas, MORTE PARA UM MONSTRO consegue deixar uma boa impressão, principalmente pelos acontecimentos do terço final, que é bem mais instigante para o público e mantém uma ação mais contínua na tela até certo ponto; o visual estonteante, que acaba sendo o principal elemento a ser apreciado, também contribui para a impressão final; e, claro, o Karloff, que apesar de não ser suficiente para contribuir com o ritmo na primeira metade do filme, ao menos participa com dignidade e consegue brilhar, literalmente e simbolicamente, na metade final. Ainda assim não dá para ignorar a falta de ritmo que o filme possui, o que pode tornar a experiência um bocado cansativa.

Vale ressaltar que MORTE PARA O MONSTRO não é a única adaptação cinematográfica do conto The Colour Out of Space. A mais famosa, além desta aqui, é A MALDIÇÃO – RAÍZES DO TERROR (87), um dos poucos filmes dirigidos pelo ator David Keith. Nunca vi, não sei se presta. Mas na dúvida, mesmo com todos os seus problemas visíveis, recomendo MORTE PARA UM MONSTRO.

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NA MIRA DA MORTE (Targets, 1968)

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Quando Roger Corman perguntou a Peter Bogdanovich se queria fazer um filme, lhe propôs o seguinte: de acordo com um contrato, o lendário ator de horror movies, Boris Karloff, devia à Corman dois dias de trabalho. Bogdanovich deveria nesses dois dias filmar algo em torno de vinte minutos aproveitáveis. “You can shoot twenty minutes of Karloff in two days. I’ve shot whole pictures in two days“, dizia Corman. Depois, Bogdanovich teria que utilizar mais vinte minutos de imagens de Karloff retiradas do filme THE TERROR, dirigido pelo próprio Corman, e assim, já teria quarenta minutos de película. Com outros atores, Bogdanovich poderia utilizar de dez a doze dias para filmar mais quarenta minutos e… voilá, um Boris Karloff movie de oitenta minutos de duração.

Bogdanovich não era exatamente um fã de Roger Corman, muito menos de filmes de horror – embora a fase das adaptações de Edgar Allan Poe lhe interessasse. Palavras do próprio diretor, que antes de se envolver na realização de filmes era um conceituado crítico de cinema, tanto que quando se mudou para Los Angeles foi o Corman – com seu instinto de caça-talentos – que foi atrás do rapaz perguntando se estaria interessado em escrever alguns roteiros.

Roteirista, produtor, diretor de segunda unidade e quebra-galhos, Bogdanovich fez de tudo um pouco na Corman Factory. No entanto, embora tenha aceitado de boa a proposta de Corman para este seu primeiro trabalho como diretor, o sujeito ficou um bocado desconfortável com a ideia de escrever uma história de horror ao estilo gótico, aporveitanto-se de imagens de um filme do gênero como outros tantos que surgiram nos anos anteriores. Como disse, Bogdanovich não gosta de horror… Foi então que o homem se lembrou que um editor da Esquire havia lhe dado a ideia de fazer um filme sobre um atirador maluco que mata diversas pessoas com um rifle. Uma história verídica que aconteceu no Texas nos anos sessenta.

Quando Corman leu o roteiro, disse que foi um dos melhores que já tinha lhe chegado em mãos. Aumentou o orçamento do filme e até conseguiu mais dias com o Karloff. E foi por esse caminho que TARGETS tomou forma, um filme que estabelece, com subtextos sobre o próprio cinema de horror, a relação do gênero com o público.

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O que fazer então com o Karloff? Bogdanovich resolveu seguir sua intuição cinéfila: o velho seria um ator de filmes de horror que resolve se aposentar, cansado da vida que leva, das pessoas que tem de lidar e por perceber que seus filmes já estão ultrapassados, ingênuos e não assustam mais ninguém. O próprio Bogdanovich interpreta o diretor que tenta convencer Byron Orlock (Karloff) em não desistir de sua carreira e estrelar seu próximo filme. Em determinada cena, Bogdanovich e Karloff assistem a um trecho de THE CRIMINAL CODE (31), de Howard Hawks, no qual Karloff fez um personagem e rasgam elogios a Hawks, um dos diretores favoritos de Bogdanovich.

Em contrapartida, temos a outra trama, aterradora, de um rapaz que arruma um arsenal, mata sua família e sai pelas ruas atirando em pessoas aleatoriamente em plena luz do dia, como um sniper em um campo de batalha. A sequência em que o jovem deixa uma carta com letras em vermelho e realiza um banho de sangue em casa é digna de antologia.

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O roteiro de Bogdanovich, que aparentemente possui contribuição não-creditada de Samuel Fuller e Orson Welles, equilibra as duas narrativas de uma forma sofisticada. O encontro entre as duas histórias não poderia ser num cenário mais propício para as intenções do diretor/roteirista: um drive-in onde acontece a sessão de estreia do último filme de terror de Orlock, com a presença do ator. O atirador se coloca atrás da tela de projeção e enquanto passa o filme que não causa mal a ninguém os tiros que “saem da tela” ferem mortalmente os espectadores. Choca quando o horror da ficção se revela insignificante diante o verdadeiro horror, aquele que ocorre diariamente na realidade. TARGETS, portanto, valida um pensamento sobre o cinema de horror americano, que começava a dar sinal de vida naquela época, à medida em que estabelece de forma clara essa relação entre o horror ficcional e o real, a banalidade de um e a evidente brutalidade do outro, mas sem soar como uma crítica ao lado fantasioso do cinema clássico do gênero.

Em termos de direção, é notável a maneira segura com a qual Bogdanovich conduz seu filme, com muita noção de timing, enquadramentos bem sacados, habilidade para a construção de tensão, driblando os entraves do baixo orçamento. As cenas com o Karloff são simpáticas e demonstram respeito e gratidão pelo grande ícone do horror que ainda é até hoje, mas é nas sequências com o atirador que o diretor estreante mostra inteligência e originalidade.

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Nunca é revelado de forma clara os motivos que fazem o sujeito entrar num frenesi de violência contra todos à sua volta, mas há um desenvolvimento gradativo sendo pontuado: o personagem aponta um rifle na direção de seu pai num campo de tiro, senta-se no escuro fumando lentamente com um olhar sinistro, pequenos detalhes que insinuam um comportamento estranho do rapaz até culminar na já citada sequência do massacre da família e, logo depois, no alto de uma torre distribuindo chumbo nos motoristas numa rodovia, também daqueles momentos de pura maestria, onde o suspense é criado simplesmente pela decupagem, economia e composição das imagens quase documentais, sem trilha sonora e firulas.

Após TARGETS a carreira de Bogdanovich deslanchou. Desvencilhou-se de Corman e ganhou as graças da crítica e público com A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA (71) prosseguindo como um dos diretores mais relevantes do período da Nova Hollywood, no fim dos anos 60 e início dos 70. Ainda que A ÚLTIMA SESSÃO seja sua obra-prima na minha opinião, TARGETS permanece firme e forte como um dos seus trabalhos mais selvagens, interessantes e divertidos, além de ser uma bela homenagem a Boris Karloff e um ótimo estudo sobre o horror e medo dos nossos tempos.