Tava revendo no youtube UM CÃO ANDALUZ, primeiro filme do espanhol Luis Buñuel, um curta tão fundamental para qualquer cidadão que tenha o mínimo de interesse pelo cinema e, caramba, lá se vão praticamente noventa anos de existência desta pequena obra-prima… Ainda hoje, revendo essa merda, as imagens me impressionam tanto que resolvi tentar dar uma peregrinada na obra do diretor. A última vez que fiz isso à sério aqui no blog foi com o Don Siegel, há uns dois anos, e agora resolvi que quero homenagear Luis Buñuel. Um desafio, eu sei, custe o tempo que custar, tempo que anda curto pra cacete ultimamente, veremos como vai ser isso…
Apesar de UM CÃO ANDALUZ ter o prestígio como obra surrealista, não vale a pena reduzir Buñuel apenas à alcunha de “mestre do surrealismo”, seria fechar as portas para uma variedade de significados que cada um de seus filmes que eu vi até agora emana de maneira muito própria. Mas aqui, neste seu primeiro trabalho, é impossível fugir desse movimento, é de longe o filme surrealista mais conhecido, em parte devido a participação do pintor surrealista de Salvador Dali na sua concepção, mas também por causa de imagens específicas que nunca parecem deixar a nossa consciência cinematográfica.
É impossível também explicar o que se trata UM CÃO ANDALUZ, apesar de todas as interpretações freudianas encontradas em críticas espalhadas por aí. Prefiro acreditar na insistência do próprio Buñuel de que não há nenhum significado por aqui, mas cuja inspiração eram os elementos irracionais coletados dos seus sonhos e do seu co-autor, Dalí.
Como Buñuel explicou certa vez: “Nossa única regra (ao escrever o roteiro) era muito simples: nenhuma ideia ou imagem que pudesse se prestar a uma explicação racional de qualquer tipo seria aceita. Tínhamos que abrir todas as portas para o irracional e ficar apenas aquelas imagens que nos surpreenderam, sem tentar explicar o porquê.”
Acima de tudo, UM CÃO ANDALUZ representa uma consciência imagética que penetra em nossa percepção e dá uma noção do que os jovens surrealistas estavam fazendo no período em ressignificar as convenções artísticas e, no caso específico de Buñuel, subverter agressivamente a forma e a estrutura do cinema.
A coerência narrativa, por exemplo, está longe de ser o foco por aqui, o que já era absurdamente ousado; as cenas se contrapõem como um fluxo de consciência, e realmente há uma influência das teorias psicanalíticas de Freud, mas não é algo fechado a ser compreendido. Se a sequência de eventos em forma de sonho não faz nenhum tipo de sentido convencional, o filme ainda tem substância visual suficiente para envolver e assombrar os espectadores – como um sonho. E se até hoje algumas imagens conseguem impactar, imaginem o tapa na cara que deve ter sido em 1929.
Um bom exemplo é logo no início, a notória cena da lua sendo cortada por uma nuvem, em transição para um globo ocular de uma mulher sendo aberto à navalha – foi utilizado um bezerro morto na filmagem, mas imagem que fica surpreende ainda hoje…
O filme é uma série de gags surrealistas, como já disse, retiradas dos sonhos dos realizadores, e que vão se amontoando ao longo de uma narrativa sem qualquer linearidade ou lógica. A navalha é a mais impressionante, é uma das imagens mais usadas para representar UM CÃO ANDALUZ, mas pra mim, a cena mais marcante é a do homem com as mãos no seio da mulher, cuja face, numa espécie de êxtase do orgasmo, se confunde com a de uma espécie de zumbi, um morto-vivo… Outras sequências que me vem à mente de forma aleatória é a da mão que brotam formigas ou a do sujeito puxando penosamente dois pianos contendo um burro morto em cada um e com dois sacerdotes sendo arrastados no meio disso tudo (um deles é o próprio Dalí). Buñuel também aparece, é o fumante que surge na cena de abertura, que corta o olho da mulher com a navalha.
A primeira exibição de UM CÃO ANDALUZ teve uma audiência cheia de notáveis, incluindo Pablo Picasso, Jean Cocteau e todo o grupo surrealista de André Breton. A recepção positiva do público ao filme surpreendeu Buñuel, que ficou aliviado por não haver violência, já que tinha enchido os bolsos de pedras, caso fosse necessário enfrentar uma plateia enfurecida. Dalí, pelo contrário, ficou desapontado, sentindo que a reação do público fez a noite “menos emocionante”.
Quem nunca viu, assista, não passa de 20 minutos. Para facilitar, segue UM CÃO ANDALUZ na íntegra: