UM HOMEM A MAIS (1967) E A MATERIALIDADE DO CINEMA DE AÇÃO

Texto de Gabriel Lisboa

Se tem algo que adoro são histórias da arqueologia cinematográfica e de pérolas que ganham uma segunda chance. A restituição à vida de filmes tidos como perdidos ou até então apenas em cópias péssimas e por isso sem chances de ser devidamente apreciados (PELOS CAMINHOS DO INFERNO, COMBOIO DO MEDO), ou ainda aqueles que ganham valor justamente por ser uma cápsula do tempo, aberta depois de décadas para revelar todo o aroma de uma época (MIAMI CONNECTION, NEW YORK NINJA). UM HOMEM A MAIS de 1967 dirigido por Costa-Gavras é um forte candidato a merecer esse reconhecimento tardio. O mais impressionante filme de ação que ninguém viu!

Nunca lançado em mídia física, o filme recebeu só em 2021 um lançamento em Blu-ray pela empresa Arte Editions e é a única versão disponível na Amazon americana. Ou seja, aparentemente nenhuma Arrow, Eureka ou Criterion ainda lançou o filme. Antes disso, o filme só foi reexibido em 35mm a partir de uma restauração feita em 2016, sob a supervisão de Costa-Gavras. O filme no IMDB aparece nomeado em português como TROPA DE CHOQUE: UM HOMEM A MAIS, sendo o primeiro retirado do inglês SHOCK TROOPS e o segundo do título do original UN HOMME DE TROP. Como o filme trata de um grupo de guerrilheiros maquisards (maquis significa literalmente “arbusto”) da Resistência francesa, não faz sentido chamar o filme de Tropa de Choque, termo que designa praticamente o inverso: a tropa de ataque mais bem equipada e treinada de um exército. A Resistência tem como programa ser o estorvo; obrigar a Alemanha a tirar um destacamento do front principal para caçar meia dúzia de rebeldes no meio das montanhas.

Assim sendo, vamos chamar aqui o filme de UM HOMEM A MAIS do original, que de fato, também não é tão adequado. Esse homem a mais é interpretado por Michel Piccoli, mais conhecido pelos filmes que fez com Luis Buñel e por A COMILANÇA. Michel, cujo nome no filme não sabemos, é o 13° homem liberado de uma prisão nazista, quando na verdade apenas doze homens condenados à morte estavam nas contas do grupo de resgate liderado por Cazal, interpretado por Bruno Cremer (COMBOIO DO MEDO, mais um ponto de contato e as semelhanças não param por aqui!). A trama do filme parece que seguirá como linha principal saber se o homem será ou não digno de confiança. Porém, esse estudo de personagem ou suspense, acaba sendo uma história até que bem secundária já que o filme nunca fica nessa investigação. Cazal e seu bando estão em constante movimento para sobreviver, missão atrás de missão. E talvez esse frenesi seja ao mesmo tempo o ponto fraco e forte do filme.

Antes de entrar na análise do filme em si e para apresentar o raciocínio que sustentará a análise, preciso entrar no mérito da comparação. O filme é uma coprodução ítalo-francesa e tem o nome de Harry Saltzman envolvido no projeto; o cara responsável por produzir os filmes de James Bond no período. No mesmo ano de 1967 foi lançado, COM 007 SÓ SE VIVE DUAS VEZES, um bom e divertido filme do espião, porém um pouco datado. Não só pelas caricaturas e yellow-face envolvendo japoneses, mas em termos de ação, o filme é repleto de takes de retroprojeção durantes as perseguições de carro e de helicóptero. Há de fato uma luta muito boa entre Connery e Peter Maivia, wrestler samoano, num escritório. Mesmo que com cenas icônicas, um senso real de materialidade da ação era algo esparso nessa fase com Connery. Consigo lembrar de cabeça de mais duas boas lutas nesse sentido: Bond contra Red Grant e a luta no elevador de OS DIAMANTES SÃO ETERNOS. A coisa muda um pouco na fase Moore, mas a ação começa a se deslocar da trama para evidentes stunts de dublês, como a luta em cima de um avião em 007 contra Octopussy. Inclusive algumas dessas cenas incríveis como a do carro em espiral de Com 007 VIVA E DEIXE MORRER tem essa materialidade subtraída com o efeito sonoro de um apito que mata o take transformando tudo num desenho animado (a stunt é tão bem executada que essa artificialidade é reforçada).

O que UM HOMEM A MAIS realiza então é a mais improvável das adições. Tem o orçamento de James Bond, o ritmo de um ESTRADA DA FÚRIA, a verborragia de um Kevin Smith, somados a câmera presente e materialista de A BATALHA DE ARGEL, trazendo também certo peso e dialética desse filme. E quando digo materialista me refiro a dois pontos principais: primeiro é o caráter essencial da câmera in loco, colada ao corpo dos homens ou agarrada a tanques e caminhões, invariavelmente fruto de um único take, ou seja, é uma imagem imprevisível (até certo ponto). É o completo oposto das imagens em retroprojeção feitas em estúdio, onde se faz de novo e igual (ou o mais próximo possível se formos para o lado purista em que todo take é único). Aliado a isso, para compor esse materialismo, também depreendo aquilo que o crítico André Bazin chamava de montagem proibida, ou seja, quando é importante ou indispensável que dois pontos de interesse de uma cena, ação e reação, apareçam numa mesma tomada, sem cortes (caso contrário o efeito desejado se perde porque o público percebe que há uma trucagem). Há uma cena em que os guerrilheiros estão aprendendo a atirar com uma bazuca, dentro de uma cabana, até que ela dispara por acidente. Num primeiro plano vemos a centelha e fumaça que saem da traseira da arma e mais ao fundo através de uma janela, uma árvore que explode com o tiro da bazuca, tudo em um único quadro. O plano seguinte repete a explosão do lado de fora, que quase atinge alguns atores.

O ponto aqui não é apenas (não serei hipócrita) se regozijar com uma época mais irresponsável do cinema. Até que ponto essa cena opera em dois sentidos simultâneos que não se anulam: ficamos chocados tanto na diegese, pelos soldados dentro do filme, mas mais ainda imaginando como aquilo foi feito? Ou é um momento que apenas te tira do filme? Creio que o já citado ESTRADA DA FÚRIA cria sim uma certa materialidade, porém, ao mesmo tempo, não deixa de sobrepor a ela um verniz de color-grading, fumaças, areia e texturas de pós-produção para justamente esconder essa condição de veracidade, para que o público se deslumbre com os feitos e efeitos práticos, mas sem nunca abandonar o caráter imaginativo da cena. Como se o CGI fosse um alento inconsciente contra o real demais. Há dezenas de pequenos momentos assim em UM HOMEM A MAIS, é claro, menos escandalosos, que não precisam acontecer (e em filmes B não acontecem, pensando num segundo take). Os tiros “furam” as portas, janelas são quebradas e tinteiros são arremessados contra as paredes manchando-as de preto. Fr.7

Um segundo grande momento, talvez o mais genial do filme, é o que o bando foge em um caminhão por uma estrada montanhosa, perseguidos pelos nazistas. O motorista é baleado. Michel Piccoli então sai da parte de trás para tentar assumir o volante do moribundo. Outros vem ao seu auxílio. O velho que acompanha/é prisioneiro do grupo, quase cai do banco de carona. E nisso a câmera se afasta. Numa tomada aérea sem cortes, percebemos que paralelamente a estrada dos nossos heróis corre outra estrada mais abaixo com um caminhão cheio de nazistas. Mas não, é ainda pior! A câmera recua ainda mais e percebemos que é a mesma estrada, que logo mais a frente fará uma curva sinuosa para descer a montanha. Morrem pela curva ou pelos nazistas!

E até aqui não falei da minha sequência favorita! Vou ser breve porque para ela caberia outro texto inteiro. Ela divide-se em três cenas: primeiro a rendição da polícia entreguista, o assalto de um banco/correio e o tiroteio no meio de uma praça contra um atirador solitário; um jovem reacionário. O plano em que Cremer atravessa a praça com a câmera lhe seguindo num plano aberto que parece saído de NASCIDO PARA MATAR. Então, o atirador atinge um dos maquisards antes de ser baleado. Os dois feridos são colocados na traseira de um caminhão. Lado a lado. Centelhas de ódio. A mãe do garoto aparece. Um médico diz que não há o que fazer. A coisa moral a se fazer é matar o garoto ali mesmo ou levá-lo prisioneiro? Tem menos direitos que o também ferido maquisard? O caminhão parte com os dois. Outro jovem pula no caminhão querendo entrar para a Resistência. Seu pai, aparece aos berros e correndo. Cortamos para Cremer. Voltamos para os fundos do caminhão. O pai continua a repreender o garoto (“Sabia que você não daria em nada”, “Pense na sua mãe!”) mas agora lhe entrega uma arma embrulhada num tecido e a cena ganha um caráter até irônico que não se resolve.

Há uma porção de momentos assim. Não ficamos dois minutos sem um diálogo! O que de fato é muito cansativo, ainda mais para quem segue o filme com legendas e não quer desgrudar os olhos da mise-en-scène. Costa-Gavras também coloca em prática vários truques visuais e raccords pelo simples prazer de vê-los funcionar, como um Iñarritu que irrita tanto alguns críticos com sua proeza técnica injustificada. Porém, se as escolhas da operação da linguagem cinematográfica devem ser motivadas então Costas-Gavras acerta em cheio, por que qual seria o tema aqui senão a impossibilidade da contemplação? De como é inviável parar e pensar sobre a (i)moralidade de cada decisão? É 1940 e os nazistas tomaram a França. Uma titubeada significa a morte. Enquanto os Maquisards assaltam o banco/correio, Cazal diz ao bancário que ele assinará um recibo pelo valor que eles estão roubando, “Do que vale a sua assinatura?” diz o engravatado, “É só mostrá-la quando a França estiver livre”. O acerto de contas ficará para depois. Não há tempo para se preocupar com aparências ou revigorar o ânimo dos rendidos. Mas se uma viúva der mole, ninguém é de ferro.

Disse que Michel Piccoli é aquele estranho que os protagonistas não devem confiar, mas como estes carregam o peso de ser o compasso moral do filme (e da Guerra) há esse embate entre a empatia e o pragmatismo. Há vários filmes em que esse tipo de personagem dá falsas pistas de amizade e acaba por se mostrar, de fato, um traidor. Piccoli não chega a tanto, mas é ele o catalisador para caos que leva a morte de vários guerrilheiros e a quase falha completa do plano sobre o qual gira o último ato. Piccoli encarna o pacifista, aquele que não crê que não seja possível resolver as coisas com o diálogo. Porém, se num dia ele é poupado de uma execução por um dos guerrilheiros, que por compaixão, desobedece a uma ordem do QG, no seguinte é capturado com dois cabeças do grupo Maquis por nazistas que se deleitam com os detalhes do enforcamento que carregarão em breve. Uma amostra de que em si qualquer ato de violência é injustificado, mas que talvez seja necessário praticar o imponderável para, paradoxalmente, evitá-lo*. Picolli termina o filme fugindo dos alemães, descendo pelas vigas de uma ponte como um covarde quando comparado aos colegas, mais preocupados com a missão do que com a própria vida. Nem que seja levando um único nazista para vala consigo. O último plano do filme, mais um desbunde, mostra Picolli, e sem dublês, agarrado ao aço a centenas de metros do chão, enquanto a câmera num take aéreo, toma distância, saindo de seu rosto até congelar (freeze-frame) num plano geral da ponte toda. Fr. 17

*Aqui faço um desvio que daria em outro texto, mas o que estou especulando é que seria mais “fácil” fazer um filme antibélico como GLÓRIA FEITA DE SANGUE ou PLATOON do que ao retratar Segunda Grande Guerra. E o curioso é que de um dos períodos mais abomináveis da história, têm-se os nazistas como vilões no sentido mais óbvio e unidimensional possível e dessa forma nasce o men-on-a-mission, filmes “leves” de aventura hollywoodianos, com a vantagem de ser impraticável problematizar o outro, como quando dos algozes indígenas e mexicanos, por exemplo, nos filmes de cowboy. Também de 1967, OS DOZE CONDENADOS, e os fãs do filme que me perdoem o sacrilégio, tem como segundo ato todo praticamente uma Loucademia de Polícia 3. E digo isso não como um demérito, mas só para informar o tom dominante desses filmes. E para amarrar tudo, também desse filão, O COMANDO 10 DE NAVARONE é um filme que por acaso se passa durante a Segunda Guerra, tão mais próximo de um filme de James Bond que além de Harry Saltzman também na produção (como em Um Homem a Mais) e Guy Hamilton na direção conta com Robert Shaw, Richard Kiel e Barbara Bach na frente das câmeras.

Um pensamento sobre “UM HOMEM A MAIS (1967) E A MATERIALIDADE DO CINEMA DE AÇÃO

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