
Tsui Hark tem uma filmografia das mais fodas que eu conheço. Longa e cheia de maravilhas. Mas acredito que, dentre tudo que realizou, nada se compare a THE BLADE. Era uma impressão que eu já tinha quando assisti há uns 15 anos e que se confirma agora. Mas é curioso revisitá-lo depois de tanto tempo. Quando vi pela primeira vez eu ainda estava tateando o cinema de artes marciais de Hong Kong, não tinha ideia de suas possibilidades e pelo que lembro nunca tinha visto nada do Hark (a não ser os filmes que ele fez com o Van Damne). Mas já havia achado uma lindeza.
Agora, com um bocado mais de bagagem, me impressiona como é um filme capaz de devastar com as expectativas, com suas imagens de selvageria poética em sequências de ação espetaculares flertando com o experimental. Foi como se estivesse assistindo pela primeira vez. Sim, continua uma obra-prima e representa o auge da habilidade de Tsui Hark como diretor.


THE BLADE chegou no final de um ciclo de filmes de artes marciais que o próprio Tsui Hark havia contribuído, com THE SWORDSMAN em 1990. A maioria dessas obras eram basicamente remakes de clássicos da Shaw Brothers dos anos 1960 e 70 (este aqui mesmo é uma releitura de THE ONE-ARMED SWORDSMAN, do Chang Cheh, que é maravilhoso e ainda quero comentar por aqui), mas infundidos com técnicas avançadas de wirework (as cordinhas que os atores ficam pendurados em cenas de ação), que não eram possíveis vinte ou trinta anos antes, e muitas vezes apresentando acrobacias bem mais exigentes fisicamente, além de proficiência em artes marciais de nomes como Donnie Yen e Jet Li.
Dezenas de filmes de espadachim/fantasia (também conhecidos como Wuxia) inundaram os cinemas mostrando muita energia e criatividade de cineastas experientes que pareciam estar correndo contra o tempo para filmar o máximo possível antes da transferência de Hong Kong para a China em 1997, quando se pensava que a pesada regulamentação governamental da indústria cinematográfica começaria. No entanto, por volta de 1995, depois de uma leva de criatividade, as ideias para o gênero finalmente pareciam estar se esgotando.

Mas aí veio THE BLADE, com um novo sopro de criatividade, demonstrando que ainda era possível realizar algo com um toque de genialidade… Em retrospecto, THE BLADE é um trabalho visionário que lança o gênero em um mundo mais tátil de ação visceral e distante do conceito do guerreiro nobre vestido de branco que povoou os primeiros clássicos Wuxia. Só pra ter uma noção, o filme abre com um grupo de bandidos numa paisagem árida e decrépita observando um cachorro ser decapitado numa armadilha de urso… Até mesmo os épicos de kung fu de Hark de alguns anos antes, como ERA UMA VEZ NA CHINA, acabam parecendo paraísos idílicos de frivolidade em contraste com este aqui.
Principalmente na ação, THE BLADE é um troço absurdamente ousado… A câmera quase joga o espectador dentro das lutas, sempre colada no olho do furacão da ação e até mesmo presa a corpos e objetos enquanto eles rolam, saltam, lutam, tudo atrelado a uma edição rápida, movimentos de câmera frenéticos, coreografia feroz e composições repletas de ritmo, textura e detalhes.



Tudo é um turbilhão de imagens desorientadoras e movimentos acelerados em que Hark equilibra com os cenários quase sempre filmados em ângulos oblíquos. Na real, isso aqui vira praticamente cinema experimental, com planos abstratos, borrões formados por corpos, espaços e movimentos numa edição super agressiva… E o público tem que ser ágil para acompanhar tudo que acontece na tela. Não dá pra piscar. Mas a experiência de ver um dos melhores diretores de ação do mundo no seu auge é algo indescritivelmente extasiante.

Fortes personagens femininas é uma das coisas que não faltam no cinema de Hark. THE BLADE é narrado por Ling (Sonny Song), que dá um toque lírico ao típico enredo de vingança, cujo resultado poderia sair qualquer coisa mais tradicional, mas que ganha força com uma subtrama própria que mostra como as mulheres tentam se encontrar em um mundo dominado pela agressão masculina. Ling é filha de um mestre fabricante de espadas que brinca com os afetos de dois empregados de seu pai em uma cidade fronteiriça no árido território ocidental da China.
Um deles é Ting On-man (Vincent Zhao) que é o escolhido para ser o sucessor do mestre na fábrica, o que lhe atrai muita desconfiança, até de seu melhor amigo Iron Head (Moses Chan), que é o outro interesse romântico de Ling. Mas On-man tem uma jornada própria de vingança à seguir depois de descobrir a verdade sobre o seu passado e sobre a morte do seu pai.


A coisa esquenta mesmo quando On-man, Iron Head e outros trabalhadores da fábrica de lâminas são levados a um confronto sangrento com bandidos saqueadores que mataram de forma brutal um monge, numa sequência espetacular de movimentos de câmera e sons de ossos quebrados. O monge grandalhão consegue lidar facilmente com um número maior de bandidos, mas eles lutam sujo e o emboscam com as tais armadilhas de urso.
Armas que entram em jogo novamente numa das melhores sequências do filme, quando On-man enfrenta os bandidos sozinhos no acampamento de bambus, e que acaba com o protagonista dominado enquanto tenta salvar Ling. É aqui que ele perde o braço direito depois que fica preso em uma dessas armadilhas.


On-man consegue fugir e acaba cuidado por uma jovem órfã que vive numa casa isolada. Considerado morto pelos colegas, o rapaz tenta encontrar uma nova vida suportando todo o tipo de desprezo. Ele inicialmente enterra a espada quebrada (à qual o título se refere) deixada por seu pai. Mas ao encontrar um manual de kung fu, ele começa a treinar um estilo inusitado no qual adapta para lutar com um braço só, aperfeiçoando um ataque giratório e saltitante, aumentado por uma corrente que ele prende à lâmina quebrada para chicotear os adversários.
On-man eventualmente volta sua atenção para encontrar Flying Dragon (Hung Yan-yan), o homem todo tatuado que matou seu pai e que agora ameaça a fábrica de espadas de seu antigo mestre. O confronto feroz de On-man com Flying Dragon no final do filme é de tirar o fôlego, uma das mais brutais lutas de espadas da história do cinema.

Vale destacar que o design de produção de THE BLADE é de William Chang, colaborador de Wong Kar-Wai, que havia feito o seu Wuxia um ano antes, ASHES OF TIME (1994). E é impossível não notar algumas similaridades visuais. O trabalho de Chang aqui é de encher os olhos, tudo é ricamente detalhado pra criar um universo sujo, apodrecido e visceral. Os personagens não voam como de costume no mundo marcial tradicional do Wuxia, e em vez disso eles têm os dois pés plantados na lama e seu vôo é substituído por saltos giratórios e uma velocidade absurda, quase sobrenatural, que é ainda mais inspiradora pelo atletismo que exige. E nesse sentido, Vincent Zhao impressiona. Ator subestimado, apareceu tarde demais para se beneficiar totalmente do boom do cinema de kung fu. Dá pra encontrar coisas boas protagonizadas por ele, mas geralmente seus filmes são inferiores em comparação com um Donnie Yen, Jet Li, Jackie Chan, etc… Mas pelo menos, o cara tem THE BLADE no currículo, simplesmente um dos melhores filmes que Hong Kong já produziu.
O casamento perfeito da ação clássica das artes marciais com uma perspectiva moderna, experimental e desconstrucionista do gênero, e ainda assim, Hark tenta agradar um público mais amplo. Mesmo com a direção ousada, THE BLADE contempla a própria essência dos filmes de espadachim no que há de mais popular. É nesse equilíbrio entre poesia e selvageria, arte e diversão, que Hark sustenta perfeitamente o seu cinema. Obrigatório não apenas aos apreciadores de filmes de artes marciais, mas também pra quem ama cinema de uma forma geral.
