CIDADE DAS ILUSÕES (Fat City, 1972)

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A Versátil vai lançar um box do John Huston em dezembro e, dentre os títulos, o destaque é sem dúvida CIDADE DAS ILUSÕES, um dos melhores filmes do homem. Como sabem, Huston é diretor da era clássica de Hollywood, tinha mais trinta anos de carreira àquela altura. Mas aí veio a Nova Hollywood e suas liberdades, os velhos diretores acoados, e o sujeito me vem com essa PEDRADA que é CIDADE DAS ILUSÕES.

Foi uma espécie de filme redenção para Huston, cujos dois ou três trabalhos anteriores não foram muito bem. Baseado num romance de Leonard Gardner (que também escreveu o roteiro), o filme segue Stacy Keach como Billy Tully, um lutador de boxe que nunca viu o sucesso e vive na miséria. Quando Billy faz uma rara visita à academia, ele conhece Ernie (Jeff Bridges), a quem Billy vê algum potencial no boxe e sugere que vá ver seu antigo treinador, Ruben (Nicholas Colasanto). Ernie acaba indo e logo se vê trinando sob a batuta de Ruben, enquanto a vida de Billy se deteriora ainda mais. Especialmente quando começa um caso com uma alcoólatra chamada Oma (Susan Tyrell, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por este filme).

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Ao mesmo tempo em que Ernie começa sua carreira de lutador, ele também enfrenta problemas quando engravida sua namorada e logo deixa para trás o mundo do boxe. Quando Ernie e Billy se reencontram numa jornada de trabalho pesado no campo, ambos se inspiram para voltar ao ringue. No entanto, para quem supõe que os personagens de Bridges e Keach conseguem superar as dificuldades e enxergam alguma esperança no horizonte através do esporte, num tipo de clímax vitorioso nos ringues de boxe, bom, a coisa não vai muito por esse caminho. Isso porque CIDADE DAS ILUSÕES não é lá um “filme de boxe” (apesar do próprio Huston ter sido boxeador na juventude). É um filme sobre pessoas fodidas na vida. É um retrato amargo sobre perdedores, que por mais que tenham sonhos e ambição, são fodidos demais para alcançar seja lá quais forem seus objetivos… Ao invés do sucesso, a frustração inevitável de indivíduos que povoam quartos sujos de hotéis baratos, bares decadentes e academias de ginásticas de periferia.

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As coisas até parecem começar a dar certo para Billy no terceiro ato do filme, quando finalmente se livra da amante e vence sua luta de “retorno”. Mas logo depois se autodestrói, rastejando de volta à primeira garrafa que vê pela frente. Não há redenção em CIDADE DAS ILUSÕES. Billy termina o filme exatamente como havia iniciado e, embora não conheçamos o seu futuro, parece ser totalmente insignificante… Mas o filme também não fica fazendo julgamentos moralistas pra cima dos personagens. Huston os trata como seres humanos enquanto sua câmera documenta os destroços que são suas almas nessa vida de desolação.

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Huston era um mestre de marca maior, um contador de histórias fenomenal. E aqui está no auge, mesmo num trabalho aparentemente mais discreto, “menor”, que estuda os pequenos detalhes, mas que é ao mesmo tempo uma obra poderosa e sensível, iluminada pela condução de Huston e pelas performances maravilhosas de Keach e Bridges. A fotografia magistral de Conrad Hall também é outro destaque. Prova que ele podia filmar bares e academias com tanta habilidade que quase dá para sentir o cheiro de cigarro, cerveja e suor.

Para John Huston, CIDADE DAS ILUSÕES foi um retorno bem-sucedido, um sucesso de crítica e financeiro. E o velho ainda tinha talento de sobra para gastar mesmo depois de todas as transformações que o cinema americano sofreu no período. Enfim, aqueles que esperam um filme esportivo inspirador podem ficar desapontados, mas pra quem curte estudos de personagens, CIDADE DAS ILUSÕES é uma pequena obra-prima. E só por esse título já tá valendo a caixa que a Versátil vai lançar.

ROY BEAN – O HOMEM DA LEI (The Life and Time of Judge Roy Bean, 1972)

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Paul Newman, um dos meus atores favoritos, morreu. Em sua homenagem, fui procurar no meu acervo alguns filmes dele que eu ainda não tivesse visto e acabei encontrando ROY BEAN – O HOMEM DA LEI, dirigido pelo mestre John Huston. Como era o único que eu não tinha visto, não precisei nem ter o trabalho de escolher. Mas foi muito recompensador, tanto por conta do próprio Paul Newman, numa belíssima interpretação, digna da galeria de personagens que viveu ao longo de sua carreira, quanto pelo prazer da descoberta de mais uma grande obra de John Huston já ingressando na sua fase final da carreira, que é repleta de alguns de seus melhores filmes, como FAT CITY e O HOMEM QUE QUERIA SER REI.

O roteiro de ROY BEAN – O HOMEM DA LEI foi escrito pelo grande John Milius (genial diretor de CONAN – BÁRBARO) e trata da vida do juiz que dá nome ao título, Roy Bean, vivido por Newman, cujos princípios básicos de sua profissão e filosofia de vida se resumem em sentenciar todo criminoso à forca, sem importar-se com a gravidade do crime. A história se passa na pequena cidade de Vinegaroon, onde acompanhamos o seu crescimento ao longo do tempo sob a influência do excêntrico e casca-grossa Juiz e que serve de metáfora para analisar um período de transformação na formação da civilização americana.

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Elogiar o trabalho de Paul Newman seria o mínimo a se fazer. Seu personagem ganha uma forma física, mental e mística que poucos atores poderiam conceber com tanto carisma, humor e profundidade dramática (Talvez um Mitchum ou Lee Marvin também aguentassem o tranco com tanta formosura).

Vale destacar ainda o elenco composto por figuras ilustríssimas como Anthony Perkins, no papel de um reverendo que surge no início do filme narrando sua passagem direto para a câmera, olhando para o público, algo que acontece várias vezes durante o filme com outros personagens. O próprio diretor John Huston surge em cena como um sujeito excêntrico que deixa um urso de presente ao Juiz. Ainda temos Jacqueline Bisset, Roddy McDowall, Ned Beatty, Richard Farnsworth, Stacy Keach como o fora-da-lei Bad Bob, o Albino, e a bela Ava Gardner, uma das mulheres mais lindas da história, fazendo uma participação como Lillie Langtry, a musa do protagonista.

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ROY BEAN – O HOMEM DA LEI não é um western convencional. Desde o início percebe-se um tom despretensioso na narrativa que logo alcança um ar estilizado já no primeiro tiroteio. Não é também um filme de muita ação, mas quando acontece, Huston parece não se importar muito com verossimilhanças, mas sim em dar a sensação de uma lembrança antiga, como uma história que foi contada de geração em geração até se tornar uma lenda que ultrapassa os limites da realidade. A cena em que o Albino toca o terror na cidade, por exemplo, é uma das minhas favoritas nesse sentido, com o tiro que lhe acerta, disparado pelo Juiz, deixa um buraco de desenhos animados, estilo Looney Tunes. É sensacional!

John Huston foi um dos grandes mestres do cinema americano e cada filme, especialmente nessa fase final da carreira, é uma descoberta deliciosa e que demonstra um diretor lúcido e totalmente maduro. E essa primeira (de duas, a segunda seria com o EMISSÁRIO de MACKINTOCH) parceria com Paul Newman é um dos grandes momentos de sua belíssima filmografia.