INFERNO VERMELHO (1988)

Não tem muito como errar com a boa e velha fórmula do “filme de parceiros policiais“. Ou como ficou mais conhecido no seu próprio idioma original, os buddy cop movies. Era pegar dois sujeitos de personalidades, classes, culturas opostas, ou seja lá o que for, e colocá-los juntos para resolver crimes enquanto batem boca e defendem visões divergentes… É claro que colocar a Whoopi Goldberg fazendo parceria com um dinossauro de látex não é lá uma boa ideia… O dinossauro merecia um parceiro melhor. Mas os exemplos positivos de buddy cop movies temos aos montes. É como pizza, até quando é ruim é bom.

Um diretor que é sinônimo de buddy cop movies é Walter Hill, um dos responsáveis por definir as regras do sub-gênero ainda lá atrás no início de carreira, como roteirista, em HICKEY & BOGGS (72), dirigido pelo Robert Culp, ou no piloto DOG AND CAT (77), antes mesmo de realizar seu próprio exemplar nos anos 80, o clássico 48 HORAS (1982). E tão familiar com o tema, Hill sempre encontra um jeitinho de dar uma boa variada na fórmula.

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Em INFERNO VERMELHO (Red Heat) essa variação vem num trabalho de “choque cultural”. Tá certo que o resultado acaba sendo tão ingenuo e cartunesco quanto o de ROCKY 4, mas reflete a visão estereotipada coletiva da Rússia pelos americanos do período. Além de funcionar bem como pano de fundo de um filme de ação policial que se propõe a ser uma sátira de diferenças de costumes. Mas o verdadeiro desafio de Hill não era tão simples e poderia colocar todo o projeto a perder. Consistia em trocar as peças um pouco de lugar e convencer o público americano dos anos 80 a aceitar um soviético comunista como herói da história.

Uma grande sacada para resolver essa questão pode ter sido usada já na escolha do ator que faria esse herói, já que naquele período qualquer produção que Arnold Schwarzenegger se envolvesse seria quase automaticamente levada à aceitação pública. O cara era um astro, o “tough guy” do momento ao lado de Sylvester Stallone, e não seria o fato de encarnar um russo que mancharia sua imagem.

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Aliás, a gênese de INFERNO VERMELHO nasceu do desejo de Hill em dirigir Schwarzenegger, o que trazia ao mesmo tempo algumas questões que incomodavam o diretor, como o sotaque do austríaco, por exemplo, que não encaixava em nenhum personagem previamente pensado. Então, Hill veio com a ideia do sujeito ser soviético e a partir disso, com o ator em mente, é que ele, Harry Kleiner e Troy Kennedy-Martin escreveram o roteiro.

Schwarza se encaixou perfeitamente e Hill soube aproveitar a sua iconografia de modo fundamental. Basta reparar na entrada do ator em cena, na sequência inicial na sauna russa, com a câmera passeando pelo corpo de Schwarza imponente como se estivesse estabelecendo um componente dramático-visual relacionado ao físico. Schwarza desempenha seus papéis com presença física em qualquer filme do período, na maneira como seu bíceps aparece na tela, como os músculos do pescoço se comportam no enquadramento, como as veias sobressaltam na pele somando valor estético, é o que torna filmes como INFERNO VERMELHO, CONAN – O BÁRBARO e PREDADOR tão físicos.

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A trama de INFERNO VERMELHO a grande maioria dos fãs do gênero já conhece, mas vamos lá: Schwarza é o capitão Ivan Danko, um policial de Moscou altamente badass que vai parar em Chicago na cola de um perigoso criminoso russo (Ed O’Ross) que matou seu parceiro. Na América, após o estranhamento inicial, ele acaba ganhando a camaradagem, depois de muita resistência, de um controverso e espertinho policial de Chicago, vivido por James Belushi, que lhe ajuda a seguir os rastros do bandido.

O que se desenrola a partir dessa premissa não é exatamente importante, serve apenas de base para algumas questões que interessam a Hill e, obviamente, ao público ávido por este tipo de produto, como a ação física, a sátira escrachada e o relacionamento entre as duas figuras que vamos acompanhar nessa aventura.

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Uma das razões pela qual INFERNO VERMELHO funciona lindamente pra mim, e que eu já ressaltei, é que se assume logo de cara como uma sátira de “choque cultural” cheia de contornos cômicos que envolvem a jornada desse russo na América. É praticamente uma comédia de costumes e é difícil segurar o riso das situações que Danko, o policial russo comunista, passa na meca do capitalismo. A própria maneira como Hill trabalha a imagem para enfatizar certas coisas é muito forte aqui, como a forma que filma Moscou – clean, sóbria e contemplativa – se contrapondo a Chicago, o caos, a poluição sonora e visual, local sujo repleto de bandidos e putas. Danko liga a TV no quarto de hotel em que está instalado e rola um pornozão de boa. A reação dele é hilária: “Capitalistas“.

Em outras ocasiões já acho que o humor nem era intencional, mas não dá pra não rir com Danko, depois de encontrar um pacote de droga na perna de madeira de um sujeito, soltando um “cocainum!“. A química entre Schwarzenegger e Belushi também é um ponto forte nesse lado cômico do filme. Belushi nunca vai chegar aos pés de seu irmão, John Belushi, um ícone da comédia americana, mas até que ao seu modo conseguiu sair da sombra do irmão. Em INFERNO VERMELHO, o sujeito consegue pagar de badass ao mesmo tempo em que arranca boas risadas do público.

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Grande parte do diálogo entre Belushi e Schwarza consiste no primeiro soltando algo do tipo: “Do I look like a fucking cab to you?“, seguido por um “yes” monossilábico de Arnie… E basta para me deixar com um sorriso na cara.

Já a sequência que os dois discutem sobre o fato de Danko ter um periquito de estimação é simplesmente de rachar o bico… Além de Schwarza e Belushi, o elenco merece atenção com vários nomes interessantes que surgem na tela. Ed O’Ross encarna com desenvoltura o papel do vilão russo, temos Peter Boyle como chefe de polícia, Laurence Fishburne, Gina Gershon e uma impagável participação de Brion James.

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Outro principal motivo para qualquer fã de cinema de ação ter a obrigatoriedade de conferir INFERNO VERMELHO é justamente pelas sequências de ação. Hill foi um dos grandes nesse departamento, herdeiro direto de Sam Peckinpah, não economizava em virtuosismo ao filmar tiroteios e perseguições, mesmo que as sequências não sejam nada extravagantes.

Seus tiroteios são crus, filmados com classe, mas que rendem uma boa dose de brutalidade. Os dez primeiros minutos de INFERNO VERMELHO são de arregaçar! Temos Schwarza trocando socos com russos bombados numa sauna, que prossegue num campo aberto coberto de neve e, logo em seguida, um tiroteio classudo num bar que culmina na morte do parceiro do protagonista.

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Outro destaque é o tiroteio na espelunca em que Danko está hospedado. A edição simples, o trabalho com o movimento dos corpos e espaços, a violência dos tiros – causa e efeito bem definidos, filmados com clareza – e até uma prostituta peladona enchendo um bandido de chumbo, proporcionam uma boa dose de truculência.

A exceção da ausência de “espetáculo” na ação de Hill fica na sequência final, em que bandido e mocinho usam um ônibus cada um numa perseguição frenética em meio ao trânsito da cidade, dando um toque do exagero oitentista à obra, mas sem perder a elegância.

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INFERNO VERMELHO é daqueles filmes que eu posso rever e rever quantas vezes forem necessário e ainda vou estar longe de enjoar. Até a sua reflexão ingênua da dialética comunismo x capitalismo funciona bem numa trama que não tenta fazer nada de diferente em termos de estrutura dos buddy cop movies, mas tem a personalidade de seu diretor e entrega exatamente o que promete: ação de primeira qualidade, humor zoeiro e ainda cria um dos personagens russos mais casca-grossa do cinema americano.

Não é o melhor filme que Hill dirigiu, nem o melhor veículo que Arnold Schwarzengger estrelou, mas sem dúvida alguma é um dos produtos mais divertidos que ambos fizeram.

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Texto originalmente escrito para o Action News em maio de 2018.

HARDCORE (1979), de Paul Schrader

Neste segundo trabalho como diretor, Paul Schrader volta o seu olhar novamente para a sociedade underground urbana, assim como já fizera em alguns de seus melhores roteiros para outros diretores, como TAXI DRIVER, de Scorsese, e ROLLING THUNDER, de John Flynn. Particularmente, prefiro estes dois citados, mas HARDCORE é um esforço notável, tem momentos de grande força e é controverso na medida certa.

Uma questão negativa – que vou comentar a seguir – reside justamente em um de seus grandes trunfos: George C. Scott. O ator entrega uma puta interpretação na pele de um calvinista que vive em uma pequena cidade do centro-oeste americano com sua filha adolescente. Em determinado momento, ela sai a um encontro religioso aos arredores de Los Angeles. Poucos dias depois, Scott recebe uma ligação informando que sua filha desapareceu.

Sem saber muito que fazer, o protagonista vai até Los Angeles, fala com a polícia, o qual não oferece muita ajuda, mas sugere que ele contrate um investigador particular. Entra em cena o ótimo Peter Boyle, vivendo um detetive maluco que diz que vai encontrar fácil a filha. Em pouco tempo, Boyle aparece com um rolo de filme 8mm que contém um curta pornô vagabundo no qual a filhotinha do calvinista desempenha o papel de protagonista contracenando com dois rapazes ao mesmo tempo.

Pela reação de George C. Scott, dá pra perceber que ele não curtiu a estréia da filha em Hollywood. Essa cena aliás, constitui algo de magistral na atuação de Scott. O detetive informa que é praticamente impossível rastrear este tipo de filme, que seria passado em cabines por 25 centavos. Mas o velho não quer nem saber e desce sozinho ao submundo para encontrar a filha. Veste-se como um diretor de filme pornô, faz conexões com prostitutas e figuras estranhas, circula pelos cantos mais obscuros dos centros urbanos, assiste a snuff movies, etc…

A “questão” que eu disse ali em cima em relação ao George C. Scott seria as diversas brigas e diferenças de opiniões entre o ator e o diretor. Este último havia planejado um filme ainda mais pesado e pessimista e teve de mudar o roteiro para fazer a vontade de Scott, este sob a ameaça de abandonar a produção. Mas isso não tira o brilho de HARDCORE, que deveria ter feito o Joel Schumacher sentir vergonha na cara com o seu 8MM se comparado com a magnitude deste trabalho do Schrader.

Além disso, HARDCORE tem caráter pessoal para o diretor, que recebeu educação calvinista e sofreu barbaridades por conta disso. Nada melhor que expressar suas experiências colocando um personagem calvinista (reflexo de seu pai) que desafia suas crenças e compromete seu lugar no paraíso em busca de sua filha.Visualmente, Schrader permanece influenciado pelas composições estéticas cruas e realista do cinema de Martin Scorsese daquele período. A fotografia do competente Michael Chapman, que já havia feito TAXI DRIVER, o que ajuda bastante nessa semelhança, colhe com êxito alguns instantes expressivos.

Depois da ótima estréia na direção em VIVENDO NA CORDA BAMBA, nada melhor que um verdadeiro Filmaço com F maiúsculo para assegurar Schrader na carreira de diretor. E que venha AMERICAN GIGOLO.