Hoje estreia uma nova coluna aqui no Dementia¹³ que ficará sob a responsabilidade de Gustavo Santorini. Não conhecem o sujeito? Pois a partir de agora guardem bem esse nome! Santorini demonstrará por aqui sua admiração por filmes esquecidos e subestimados, na maioria das vezes ação casca-grossa, em textos que demonstram seu amor pelo cinema. Nesta primeira edição, no entanto, ele escolheu reavaliar um de seus filmes favoritos para começar. Com vocês, Cartas de Amor de um Badass:

CARTAS DE AMOR DE UM BADASS #01
por GUSTAVO SANTORINI
O que eu espero de um filme é que ele expresse a alegria ou o sofrimento de fazer cinema. O que fica no meio disso absolutamente não me interessa.
François Truffaut
A citação acima bem poderia servir de epitáfio a carreira do americano William Oliver Stone, que, assim como Truffaut, é reconhecido por ser um cineasta passional de carteirinha, e diferentemente deste, hoje passa longe da aclamação de público e crítica. A disparidade de confetes não se deve ao fato de a morte conferir um verniz de respeitabilidade insuspeita aos que partem, como poderia ser o caso de Truffaut, falecido em 1984. Oliver Stone ainda está vivo, felizmente, mas sua carreira nem tanto. A mediocridade dos últimos filmes assinados por ele é incontestável. Ou será que há alguém nessa galáxia com o mínimo de senso crítico capaz de defender uma sacarose como AS TORRES GÊMEAS, veneno para diabéticos? Ou uma bobagem monumental chamada ALEXANDRE, épico afetado que provavelmente fez Cecil B. DeMille se remexer na tumba? Acho que não. Seu último grande filme é NIXON, uma ópera maquiavelista de 1995, e de lá pra cá já se passaram dezenove anos. Somado ao momento pouco inspirado, há uma famigerada simpatia por ditadores como Fidel Castro, retratado em Comandante, seu achincalhado documentário de 2003. Embora os cinéfilos mais jovens talvez não saibam, e os mais velhos façam questão de esquecer, Oliver Stone já foi um gigante.
Veterano da Guerra do Vietnã, tendo se alistado voluntariamente e condecorado com a “Estrela de Bronze de Honra ao Mérito”, Stone saiu do conflito desiludido com os tentáculos da política externa americana e resolveu canalizar toda sua angústia no cinema, onde se iniciou como roteirista, após se graduar na Universidade de Nova York – Martin Scorsese foi um de seus professores – e escrevendo scripts de futuros clássicos: O EXPRESSO DA MEIA NOITE (1978), pelo qual ganharia seu primeiro Oscar, de roteiro adaptado; SCARFACE (1983) e CONAN: O BÁRBARO (1982). Não demorou muito para o jovem e premiado roteirista se tornar o queridinho dos estúdios, embora nada disso tivesse aplacado sua fúria. Ele queria mais. Ele ainda estava faminto. Escrever roteiros para terceiros filmarem foi apenas o primeiro passo para Oliver Stone se estabelecer como um dos cineastas mais controvertidos da história do cinema americano, talvez o mais controvertido.

Enquanto uns o acusam de impostor, por supostamente explorar de forma maniqueísta eventos traumáticos da historia americana – a morte do presidente John Kennedy, por exemplo, tema de JFK: A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR – tecendo um amontoado de teorias conspiratórias com fins meramente midiáticos, outros o vêem como uma poderosa voz dissonante, exatamente por trazer a tona tais discussões e levantar uma pá de dúvida sobre as “versões oficiais” perenizadas pelas autoridades. A questão se mostra pertinente. Seria ele uma fraude? Um fanfarrão? Ou mais um caso de iconoclasta incompreendido? De minha parte, ao me debruçar sobre a matéria prima de seus filmes, não vejo outra figura senão a de um “Cineasta da Selva”, pois foi ao se embrenhar tanto na floresta bruta (SALVADOR: MARTÍRIO DE UM POVO, PLATOON, ENTRE O CÉU E A TERRA) quanto na de concreto (TALK RADIO, WALL STREET: PODER E COBIÇA, ASSASSINOS POR NATUREZA) que sua câmera radiografou com virulência incrível o colapso moral do sonho americano, e ao revirar do avesso seu deslumbrante tapete de status quo, expôs a sujeira que convenientemente se acumulava por debaixo. Portanto, o combustível de seu cinema é a cólera e a indignação, e o maior exemplo disso encontramos em NASCIDO EM 4 DE JULHO, obra-prima imperfeita lançada em 1989.

Baseado na autobiografia de Ron Kovic, combatente do Vietnã que adaptou o roteiro com Stone, o filme narra sua trajetória de soldado idealista que, após ficar paraplégico no conflito, retorna aos EUA e logo se depara com a dura realidade que os veteranos enfrentam e decide lutar pelos seus direitos, transformando-se por tabela num grande opositor da Guerra do Vietnã. Este filme não é, em seu conjunto, um primor de virtuosismo técnico. O roteiro, apesar de oferecer grandes momentos, salta bruscamente no tempo, em uma elipse mal ajambrada no terceiro ato, quando Ron Kovic decide se lançar no front de protestos a Nixon e sua combalida política republicana. Temos a impressão que muita coisa ficou de fora na sala de montagem, e a edição faz milagre na tentativa de criar uma unidade narrativa (não a toa foi laureada com o Oscar). A maquiagem de Tom Cruise, o protagonista, não convence, deixando claramente se tratar de uma peruca grosseira. No entanto, descontada todas as imperfeições, raras vezes nos deparamos com uma obra impregnada de tamanha paixão, algo que transcende o próprio ofício de se fazer cinema e, por ironia, acaba por subverter a máxima de Truffaut. Sem qualquer pudor, o cinema é o meio pelo qual Oliver Stone se utiliza para exorcizar suas obsessões, e o que fica no meio disso é totalmente irrelevante.

Famoso por arrancar desempenhos memoráveis de atores medianos – vide Tom Berenger em PLATOON –, é aqui que Stone se supera na direção de atores. Tom Cruise não apenas tem sua maior atuação (desculpem fãs de MAGNÓLIA, mas aqui a parada é muito mais… visceral), como seu desempenho dita o ritmo de todo o filme. Hipnotizados, assistimos sua persona de galã ser soterrada por um trabalho memorável de expressão corporal, e a metamorfose por que passa o personagem é conduzida de maneira sutil e não menos envolvente. Ele começa como um jovem atleta de rosto lépido e ideais ufanistas, o típico americano oriundo de família conservadora, cujo pai é um ex-combatente da Guerra da Coreia. Com a intenção de seguir os passos do coroa, ele se alista na Guerra do Vietnã. Após se machucar gravemente em conflito, sua via crucis tem inicio no Hospital de Veteranos, quando é tratado como lixo pelos enfermeiros. Ao regressar para Massapequa, sua cidade natal, ele descobre que o lugar vive tempos de prosperidade econômica, e seus moradores estão pouco se lixando para uma guerra que explode a milhares de quilômetros dali. O sol fulgurante que incide sobre a cidadezinha parece ignorar o fato de que há cada vez mais jovens retornando para seu país em sepulcros, e é por isso que o retorno de Ron Kovic causa um desconforto entre os moradores. Quando olha nos olhos das pessoas, Kovic enxerga o reflexo de um homem arruinado, vítima de um fracasso militar que golpeara um país orgulhoso por jamais perder uma guerra, e de quem a própria família se envergonhava e os amigos viravam o rosto. Seu corpo alquebrado é a triste alegoria de um país em ruínas. Assim, seus antigos valores vão se desintegrando aos poucos, e não tarda para que o personagem entre numa espiral deprimente de impotência, autopiedade e rancor. É dolorosa a cena em que, ao reencontrar a ex-namorada de infância e esperançoso por um revival, ele percebe que o semblante da jovem murcha ao fitar sua cadeira de rodas. Em sua nova condição, Kovic se dá conta de que para certas coisas não há segunda chance.

A inadequação o leva a um exílio voluntário no México, e é em meio às figuras espectrais de prostitutas e veteranos desvalidos que o personagem despenca no nível mais profundo de seu limbo particular. Depois de uma patética discussão com o amargurado personagem de Willian Dafoe em pleno deserto, algo muito próximo de uma epifania o atinge: se não der o fora dali o quanto antes, jamais sairá de lá são. Essa aquisição de autoconhecimento o motiva a fazer um acerto de contas consigo, e ele então decide regressar aos Estados Unidos. Afundado pela dor, Kovic visita os pais de um colega morto em combate e confessa ter sido o responsável pelos disparos. O fato ocorreu num momento de extrema confusão nas trincheiras, sua vista anuviada pelo sol ofuscante, mas não o bastante para redimi-lo de uma vida assombrada pela culpa, e só de lembrar dessa cena é impossível não ficar com a garganta embargada. Em mãos menos hábeis, o filme descambaria para um tom lacrimoso, mas felizmente não é o que presenciamos. Oliver Stone tem respeito pelo protagonista e o trata com honestidade comovente, abordando sua fratura emocional como uma espécie de tumor que precisa ser removido, a fim de que dê lugar à cura. Absolvido pelo perdão, Kovic se vê finalmente disposto a abandonar o casulo de autocomiseração no qual se isolara e decide tomar as rédeas de sua vida. De um arremedo de ser humano, ele se transforma num símbolo de luta contra as mazelas do país. Assim como ele próprio, Kovic acredita que a América precisa nascer novamente, e tal crença é forjada em meio a nuvens de gás lacrimogêneo lançadas de maneira covarde pela polícia. Ao final da jornada, ele sai da experiência mais puro, integro e em paz com seus demônios. E nós, espectadores, partilhamos de sua leveza de espírito. Quanto ao país, talvez não possamos dizer o mesmo.

A brilhante fotografia do filme é outro ponto de destaque. Dependendo do estado emocional dos personagens, as cores variam entre vermelha, azul e branca, as mesmas da bandeira norte-americana. A canção tema é regida pelo maestro John Willians, famoso pelos temas grandiloquentes e que aqui atinge o sublime com uma partitura de rara sutileza, deixando-se guiar pela força das imagens. Também desfilam pela trilha sonora um punhado de canções que são um verdadeiro deleite para fãs do pop rock das décadas de 60 e 70, além de cumprir a função de contextualizar a trama nas mudanças temporais.
Assistir NASCIDO EM 4 DE JULHO é testemunhar um artista em pleno domínio de seu ofício, o que não nos livra de uma certa dose de melancolia. Ao olharmos para os grandes filmes de Oliver Stone e comparando com sua safra recente, ficamos a nos perguntar: até onde vai o declínio de um artista? Em tempos de obscurantismo cultural, onde a arte é patrulhada pelo politicamente correto, faz-se oportuna uma reavaliação de seu papel como um dos grandes cronistas de nossa era. Torçamos para que seu vigoroso cinema não tenha esmorecido de vez. Precisamos acreditar que tudo não passe de um blefe, e que este hiato criativo se revele o ensaio de um retorno triunfal. Assim como Ron Kovic, ainda é capaz de o fogo resistir sob as cinzas.
No apagar das luzes, caso nada disso se confirme, ao menos teremos seus velhos filmes a nos tomar pela mão.