Ano passado tivemos uma memorável participação do personagem Justiceiro na segunda temporada da série do Demolidor, da Marvel. Interpretado por Jon Bernthal, a presença de uma das minhas figuras favoritas dos quadrinhos deu uma elevada no seriado e trouxe alguns dos momentos mais brutais que assisti em 2016, como a sequência da pancadaria na prisão e muita morte à sangue frio, pra deixar o Matt Murdock de cabelo em pé.
Foi um retorno digno do personagem, bem melhor que os anteriores e recentes, THE PUNISHER (2004) e PUNISHER: WAR ZONE (2008). No entanto, a adaptação do personagem em live action que mais me encanta e que este do seriado não chega aos pés, é o clássico épico THE PUNISHER, de 1989. Dirigido por Mark Goldblatt e estrelado pelo único e inigualável Dolph Lundgren, essa é a versão que permanece a mais truculenta, trágica e fiel sobre Frank Castle. E eu realmente AMO essa merda…
Um detalhe sobre essa adaptação que me agrada é o fato de não haver uma preocupação com as origens do Justiceiro. Quero dizer, a trama não é sobre os acontecimentos que fizeram Frank Castle se tornar o sádico e violento vigilante como acontece em 99% das adaptações de quadrinhos para o cinema.
THE PUNISHER se passa cinco anos depois do trágico destino que levou a família do ex-policial, com o Justiceiro já em atividade, sedento por vingança, eliminando a escória humana que assola a cidade e deixando um rastro de mais de 125 corpos ao longo dos anos, especialmente membros da máfia italiana, que são os responsáveis pela morte de seus familiares. Há uma cena em que o Justiceiro aparece nu, em meditação no seu esconderijo, nos subterrâneos da cidade, relembrando a morte de seus entes, mostrado apenas num rápido flashback. O suficiente pra não encher muito o saco com o passado do cara… Até porque o Justiceiro fica entediado muito rápido e não demora para sair novamente pelas ruas para matar o primeiro mafioso italiano que encontrar pela frente.
O grande problema é que exterminar praticamente todo o crime organizado local deixou os pobres italianos mafiosos vulneráveis a uma invasão hostil da yakuza. Como tirar um pirulito de uma criança, os japoneses execultam um plano que consiste em sequestrar os filhos de cada chefe de família como insentivo para que entreguem todo o império da máfia italiana de mão beijada. Isso inclui o filho de um dos gangsters mais poderosos do pedaço, Gianni Franco (Jeroen Krabbe, excelente!), que negocia uma trégua com o Justiceiro o tempo suficiente para resgatar seu filho e se possível eliminar vários “olhinhos puxados” vestidos de quimono.
A trama ainda tem espaço para um subplot com Louis Gossett Jr. vivendo um detetive que conhecia Castle antes de toda a tragédia de cinco anos atrás. E agora o caça incansavelmente. Algumas das melhores sequências de THE PUNISHER são os dois contracenando. Porra, vamos ser sinceros, algumas das melhores cenas de qualquer filme adaptado de quadrinhos são com Gossett e Dolph em cena. Eu desafio a qualquer um a me mostrar numa adaptação de HQ recente uma cena tão poderosa como esta:
“Como você chama 125 cadáveres em 5 anos?”
“Um trabalho em andamento.”
Simplesmente do CARALHO!
A escolha de Dolph como Castle/Justiceiro é uma das grandes sacadas do filme. Por mais que no período tivéssesmo vários atores casca-grossas, não consigo pensar em ninguém no lugar do sueco… Porra, Dolph Lundgren tem o look, conseguiu imprimir uma intensidade lacônica para o papel, que sem dúvida alguma é o melhor desempenho de sua carreira. Seu justiceiro até pode pertencer ao mesmo universo de um Capitão América e de um Homem-Aranha, mas ele é humano. Quebra pescoços, dá tiros, facadas, socos, chutes, mas chega a um ponto que o cara fica exausto e Dolph realmente representa alguém que consegue lidar com uma horda de ninjas de forma brutal, mas no fim das contas é apenas um homem cansado, precisando de uma boa noite de sono.
Na época do lançamento, a New World Pictures, que produziu THE PUNISHER, tava bem mal das pernas e o filme acabou indo parar no mercado de vídeo bem antes do planejado… Aqui no Brasil mesmo, se não estou enganado, nem chegou a passar nos cinemas. O orçamento também não é lá grandes coisas, algo em torno de dez milhões de dólares, o que é uma pena pela grandeza do projeto e do roteiro casca-grossa que conseguiram aqui… Mas até que isso não é necessariamente uma coisa ruim quando temos um diretor do calibre de Mark Goldblatt no comando. O sujeito já possuia na época vasta experiência como montador e editou dezenas de filmes de ação porretas, como RAMBO II (85), O EXTERMINADOR DO FUTURO (84) e COMANDO PARA MATAR (85).
Goldblatt tirou leite de pedra com THE PUNISHER, mas o resultado das sequências de ação é fantástico. Se por um lado um orçamento maior fizesse a coisa toda ser um espetáculo visual deflagrador, o baixo orçamento fez com que o cara tivesse que usar a criatividade, filmar ação sem frescuras, crua, com boa contagem de corpos e doses cavalares de violência. Dá pra perceber que Goldblath edita o filme na câmera, filmando o essencial, com poucos movimentos, mas com equadramentos precisos, bom uso dos cenários e grandes sacadas estéticas. A sequência final na base yakuza, por exemplo, deveria servir de base para qualquer cineasta que se interessa por sequências de ação, tanto pela energia, ritmo, gramática da ação quanto pela beleza estética e uso das cores…
Aliás, essa sequência final é simplesmente épica em todos os sentidos! Castle e Franco invadem o quartel general da Yakuza enchendo samurais e ninjas de chumbo grosso sem piedade alguma. Castle ainda tem que enfrentar no combate corporal alguns capangas e salvar Franco de estourar os próprio miolos na iminência de ter o filho assassinado. Depois, quando tudo parece terminado e Castle já não aguenta nem “uma gata pelo rabo” de tão exausto, o próprio Franco tenta matá-lo como vingança dos 125 corpos ao longo dos anos. Por fim, temos a clássica cena do menino botando o revolver na cabeça de um estafado Justiceiro, que é de lascar. E Castle ainda desafia o moleque a puxar o gatilho! Como um filme desse não é reconhecido como uma obra-prima dos cinema de ação oitentista?!
Há ainda algumas outras tantas cenas que eu destacaria. O tiroteio nas docas, com os Yakuzas exterminando os italianos e o Justiceiro chegando no local para acabar com a festa dos japas… Temos Dolph Lundgren zanzando de motocicleta dentro dos túneis do esgoto, a cena do cassino, o tiroteio eletrizante no parque de diversões abandonado, a cena em que Castle é torturado pelos Yakuza… Será que só eu consigo enxergar a grandeza e a beleza desse filme?
Bem, não é muito difícil entender a falta de aceitação dos fãs com essa adaptação. Especialmente os mais xiitas que encrencam até com a camisa sem caveira do Justiceiro. Tá certo que é um ícone, o emblema do cara, a mesma coisa que levar o Batman para às telas sem o morcego no uniforme, mas não é pra tanto. O grande lance é que THE PUNISHER não possui um clima de história em quadrinhos, aquele estilo que flui com a leveza da maioria dos filmes da Marvel, especialmente os de hoje.
Mas acho que o filme realmente capta a essência do personagem e coloca na tela com o tom que deveria ter. É uma porrada violenta! THE PUNISHER possui uma carga pesadíssima de desgraça e melancolia que se mistura entre as cenas de ação. A persona que Dolph cria para Castle é deplorável e depressiva, dá até pena do cara… E isso tem tudo a ver com o Castle dos quadrinhos. Revisto hoje, só consigo pensar na atual geração das adaptações de super-heróis para o cinema, uma das vertentes mais em voga do cinema hollywoodiano atual, e que até possui alguns exemplares bacanas, como GUERRA CIVIL, HOMEM DE FERRO 3 e DR. ESTRANHO, mas é tudo tão limpinho e bonitinho, cheio de efeitos especiais, não chegam nem perto de ter o clima amargo e pesado de THE PUNISHER, ou personagens realmente trágicos como o Frank Castle de Dolph, ou sequências de ação cruas e violentíssimas… Enfim, só consigo pensar que realmente se trata da minha adaptação de HQ de super-heróis favorita de todos os tempos. Lidem com isso.