O TRAIDOR (Il Traditore, 2019)

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Ok, sei que vai ser impossível não fazer piada com o nome do sujeito, mas vamos tentar… Até porque vou ter que citá-lo várias vezes por aqui. Mas Tommaso Buscetta foi o primeiro pentito, um arrependido da Cosa Nostra, que ajudou a justiça italiana na luta contra a máfia, especialmente contra o império do sanguinário Salvatore Riina. Buscetta, desiludido após a traição de um capo, e enfrentando prisão e risco de vida, trabalha com o juiz Falcone fornecendo informações sobre o funcionamento da Cosa Nostra nos anos 80. E é esse, bem por alto, o mote de O TRAIDOR, novo filme do italiano Marco Bellocchio, um dos grandes mestres do cinema ainda em atividade.

Na longa e interminável história da máfia italiana (da qual as séries GOMORRA e SUBURRA são hoje o eco contemporâneo), a traição de Buscetta e o julgamento que se seguiu por quase dois anos foi um marco. Centenas de mafiosos foram condenados nos anos 80 e 90 por causa do Buscetta… Como todo mundo sabe, Buscetta é bom, mas para alguns é motivo de prisão e morte… er… Ok, já parei.

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Bom, Marco Bellocchio se interessa bastante na jornada do protagonista ao longo desse período, desde sua fuga para o Brasil (quando a gangue de Riina estava começando o derramamento de sangue) até sua prisão (seguida de torturas e tentativa de suicídio) e depois a extradição à Itália com sua decisão de colaborar com o sistema de justiça e ganhar uma nova vida nos Estados Unidos com sua família, cuja esposa era brasileira e em O TRAIDOR é interpretada pela Maria Fernanda Cândido. Chama a atenção o fato de Buscetta nunca se considerar um traidor, mas de ter sido traído, por vários motivos, pela Cosa Nostra, o que dá ao personagem uma complexidade de herói assombrado por certo espírito de justiça, ainda que seja difícil de enxergar quando se trata de alguém que passou a vida como um “soldado” na máfia…

Uma grande parte do filme é dedicada aos julgamentos, aos tribunais que se transformam em um teatro de bufonaria, onde a máfia se coloca como vítimas em confrontos verbais que oscilam entre retaliação, lamento e ridículo. Se não houvesse tantas mortes por trás de todo esse circo poderíamos até rir, mas a triste visão desses assassinos prontos para qualquer coisa (fingir demência, costurar a boca, mostrar o pau) para economizar tempo e tentar se safar demonstra o cinismo e frieza dignos de psicopatas. As travessuras dos gangsters presos lembram bastante algumas cenas de DIAVOLO IN CORPO, que Bellocchio realizou em 1986, e que representava julgamentos de estudantes ativistas. Já comentei sobre esse filme aqui.

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Bem distante da tradição mítica dos filmes de Mafia (como O PODEROSO CHEFÃO), O TRAIDOR parece mais um filme ensaio com inclinações documentais. Bellocchio faz um trabalho denso e didático, que raramente excede seu status de “arquivo”, com direito a nomes, número de mortes, informações e fatos expostos na tela em detrimento de emoções, mas que confere um realismo quase palpável para tratar desse lado sombrio e silencioso da Itália. Mesmo as várias sequências de assassinatos são frequentemente vistas com uma crueza de gelar a espinha. A exceção talvez seja no plano filmado de dentro de um carro que é arremessado pelos ares numa explosão. Desses momentos que prova a maestria de um veterano como Bellocchio. E quando há emoções, é especialmente no rosto maciço de Pierfrancesco Favino, formidável na pele de Buscetta, um retrato ao mesmo tempo frágil e determinado, que é um dentre tantos motivos de fascínio por O TRAIDOR. Sem dúvida mais um pra lista “melhores de 2019”.

DIAVOLO IN CORPO (1986)

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Já tinha assistido a DIAVOLO IN CORPO, de Marco Bellocchio, há uns dez anos por recomendação de um amigo e lembro de ter ficado extasiado. Soube nesta semana que vão passar alguns trabalhos do italiano na Mostra de Cinema de São Paulo e resolvi assistir de novo. Não conheço tanto assim o cinema de Bellochio, mas é famosa sua veia política, um notório defensor da esquerda cujos filmes carregam temas socialistas de forma bastante radical, como no seu clássico mais famosinho DE PUNHOS CERRADOS (1965).

Mas aqui a ideologia política de Bellocchio fica em segundo plano numa trama que transcorre no período conhecido como “Anos de Chumbo” na Itália, marcado por uma onda de terrorismo de cunho político, mas que dá lugar, no entanto, a um relato romântico transgressivo nutrido de muita sexualidade. O que, convenhamos, é bem mais interessante do que sistemas econômicos e partidos… Especialmente quando temos cenas explícitas…

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A lindeza Maruschka Detmers e o jovem Federico Pitzalis são os pombinhos perigosamente apaixonados de DIAVOLO IN CORPO. Ele é um estudante de dezoito anos, “filhinho de papai”, entediado. É durante uma aula na escola que, pela janela, o rapaz e seus colegas assistem uma mulher aparentemente com o “Diabo no corpo” ameaçando se jogar de um telhado sob o olhar de vários curiosos na vizinhança e percebe uma dessas espectadoras, Giulia (Detmers), na qual Andrea se apaixona imediatamente e passa a persegui-la. Eventualmente os dois acabam se conhecendo, desenvolvem uma relação que rapidamente se transforma num tórrido romance.

A paixão é vigorosa, mas logo descobrem que não basta só isso para manter um relacionamento saudável, especialmente quando uma das partes é noiva de um terrorista preso, em processo de julgamento, e que existe a possibilidade de ser solto a qualquer momento. Como se isso não bastasse, Andrea aos poucos vai descobrindo que Giulia é uma mulher totalmente instável, com uma certa tendência para violência. Entre risos histéricos e súbitas explosões de destempero, nunca sabemos exatamente o verdadeiro sentimento de Giulia em relação a Andrea. A única certeza é que parece bem improvável que o romance termine bem…

Mas o sexo entre os dois é visceral e intenso na maior parte do tempo. DIAVOLO IN CORPO inclusive ganhou certa fama por conta de uma cena em que Maruschka, que não tem problema algum em ficar sem roupa, resolve cair de boca na manjuba de Pitzalis em frente à câmera, sem qualquer remorso… A cena é bem curta, não tem sequer apelo sexual, mas não deixa de ser um boquete, o que é suficiente pra causar repulsa nos moralistas de plantão. Até mesmo os produtores italianos queriam que a cena fosse cortada, mas ainda bem que prevaleceu a vontade de Bellocchio e da senhorita Maruschka, que a princípio defendeu a ideia, mamou com vontade e se tornou uma das primeiras protagonistas a praticar sexo não simulado num filme mainstream. Mas depois de alguns anos reclamou que isso atrapalhou sua carreira e tal…

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O que não deixa de ser verdade, infelizmente… O rapazinho até que é bom ator, mas a grande força de DIAVOLO IN CORPO só poderia ser mesmo a performance de Maruschka, que rouba o show com sua beleza estonteante, desinibida e uma capacidade muito poderosa de encarnar essa figura tão descontrolada e fascinante. O lance dela com essa paixão que surge subitamente é algo tão absurdo e ambíguo, que ao mesmo tempo que parece ser sua salvação, acaba sendo também sua ruína. E quanto mais tempo seu relacionamento com Andrea continua, mais parece ser empurrada para loucura total.

Belo filme esse do Bellocchio. Preciso ver mais coisas dele. Mas este aqui é forte, desconcertante e valeu a pena rever.

Uma curiosidade sobre a Maruschka é que de musa desse brilhante filme do Bellochio ela chegou a contracenar com o bom e velho Dolph Lundgren nos anos 90 no filme de ação THE SHOOTER, do Ted Kotcheff, que eu acho um filmão… Obviamente para a grande maioria isso é sinal de decadência. Pra mim não… Recomendo ambos, dependendo das suas intenções. Mas já adianto que pelo menos em DIAVOLO IN CORPO ela aparece beeeem mais à vontade e com menos roupa.

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