Ok, sei que vai ser impossível não fazer piada com o nome do sujeito, mas vamos tentar… Até porque vou ter que citá-lo várias vezes por aqui. Mas Tommaso Buscetta foi o primeiro pentito, um arrependido da Cosa Nostra, que ajudou a justiça italiana na luta contra a máfia, especialmente contra o império do sanguinário Salvatore Riina. Buscetta, desiludido após a traição de um capo, e enfrentando prisão e risco de vida, trabalha com o juiz Falcone fornecendo informações sobre o funcionamento da Cosa Nostra nos anos 80. E é esse, bem por alto, o mote de O TRAIDOR, novo filme do italiano Marco Bellocchio, um dos grandes mestres do cinema ainda em atividade.
Na longa e interminável história da máfia italiana (da qual as séries GOMORRA e SUBURRA são hoje o eco contemporâneo), a traição de Buscetta e o julgamento que se seguiu por quase dois anos foi um marco. Centenas de mafiosos foram condenados nos anos 80 e 90 por causa do Buscetta… Como todo mundo sabe, Buscetta é bom, mas para alguns é motivo de prisão e morte… er… Ok, já parei.
Bom, Marco Bellocchio se interessa bastante na jornada do protagonista ao longo desse período, desde sua fuga para o Brasil (quando a gangue de Riina estava começando o derramamento de sangue) até sua prisão (seguida de torturas e tentativa de suicídio) e depois a extradição à Itália com sua decisão de colaborar com o sistema de justiça e ganhar uma nova vida nos Estados Unidos com sua família, cuja esposa era brasileira e em O TRAIDOR é interpretada pela Maria Fernanda Cândido. Chama a atenção o fato de Buscetta nunca se considerar um traidor, mas de ter sido traído, por vários motivos, pela Cosa Nostra, o que dá ao personagem uma complexidade de herói assombrado por certo espírito de justiça, ainda que seja difícil de enxergar quando se trata de alguém que passou a vida como um “soldado” na máfia…
Uma grande parte do filme é dedicada aos julgamentos, aos tribunais que se transformam em um teatro de bufonaria, onde a máfia se coloca como vítimas em confrontos verbais que oscilam entre retaliação, lamento e ridículo. Se não houvesse tantas mortes por trás de todo esse circo poderíamos até rir, mas a triste visão desses assassinos prontos para qualquer coisa (fingir demência, costurar a boca, mostrar o pau) para economizar tempo e tentar se safar demonstra o cinismo e frieza dignos de psicopatas. As travessuras dos gangsters presos lembram bastante algumas cenas de DIAVOLO IN CORPO, que Bellocchio realizou em 1986, e que representava julgamentos de estudantes ativistas. Já comentei sobre esse filme aqui.
Bem distante da tradição mítica dos filmes de Mafia (como O PODEROSO CHEFÃO), O TRAIDOR parece mais um filme ensaio com inclinações documentais. Bellocchio faz um trabalho denso e didático, que raramente excede seu status de “arquivo”, com direito a nomes, número de mortes, informações e fatos expostos na tela em detrimento de emoções, mas que confere um realismo quase palpável para tratar desse lado sombrio e silencioso da Itália. Mesmo as várias sequências de assassinatos são frequentemente vistas com uma crueza de gelar a espinha. A exceção talvez seja no plano filmado de dentro de um carro que é arremessado pelos ares numa explosão. Desses momentos que prova a maestria de um veterano como Bellocchio. E quando há emoções, é especialmente no rosto maciço de Pierfrancesco Favino, formidável na pele de Buscetta, um retrato ao mesmo tempo frágil e determinado, que é um dentre tantos motivos de fascínio por O TRAIDOR. Sem dúvida mais um pra lista “melhores de 2019”.