PULSE (Kairo, 2001)

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Eu já tinha assistido a um filme ou outro do Kiyoshi Kurosawa (nenhuma relação com o outro diretor japonês Akira Kurosawa), cuja reputação sempre me chamou a atenção e o pouco que vi do seu trabalho reafirmava seu talento. Mas só este ano resolvi levar a filmografia do homem à sério e devo ter visto, entre março e maio deste ano, uns quinze filmes do diretor. Um dos que mais me surpreendeu foi PULSE, representativo exemplar da renovação do horror japonês, o chamado “J-Horror”, que ganhou força no final dos anos 90 e início dos anos 2000, com O CHAMADO, O GRITO, ÁGUA NEGRA e tal…

Mas conferindo um filme como PULSE é que se percebe porque Kurosawa é considerado um mestre superior do horror, o maior sopro de originalidade que aconteceu no cinema japonês dos últimos anos (ao lado de Takashi Miike) e que leva à sério a ideia de transformar horror em poesia. Não é a toa que é considerado o mais Tarkovskiniano dos japoneses. E no início dos anos 2000 até eu me rendi ao J-Horror, até porque quando começou a onda de remakes americanos desse tipo de produto eu queria estar antenado e sempre procurava assistir antes as versões originais. No caso de PULSE eu acabei vendo a produção americana e comi bola com o filme do Kurosawa.  Antes tarde do que nunca, filme conferido, erro corrigido.

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É interessantes como PULSE dialoga tão bem com o contexto do período, a expansão da internet e o início da solidão e alienação digital, mas embalado num horror arthouse, nada convencional, que se você assistir esperando tomar sustinhos, vai perder a beleza reflexiva da obra. O uso de metáfora no gênero do horror não é nenhuma novidade, mas no caso de Kurosawa a inserção da alegoria em meio à banalidade do cotidiano tange a transgressão. Em PULSE as linhas violentas do horror são traçadas pelo diretor como análise social: Duas histórias paralelas com personagens que se deparam com manifestações quase física de fantasmas, um surto absurdo de suicídios e desaparecimentos sem explicação da população.

Uma das protagonistas é Michi, cujo colega de trabalho se enforcou. Na casa do rapaz, encontram um disco com um vídeo estranho dele estático parado perto de seu computador. Na outra linha narrativa, seguimos Ryosuke, um jovem que está começando sua aventura em navegação na web, inserindo um CD para iniciar seu provedor de serviços de internet, algo banal que os mais jovens não vão se lembrar, e os mais veiacos como eu talvez sintam certa nostalgia… Quando tudo já está configurado, seu computador imediatamente acessa um site que pergunta “você quer conhecer um fantasma?“, e começam a aparecer vídeos estranhos, aparentemente ao vivo, de pessoas estáticas em ambientes escuros, imagens realmente perturbadoras, tão bizarras quanto o vídeo do colega de Michi.

À medida em que essas duas tramas paralelas vão se fundindo, Tóquio vai gradativamente sendo despovoada em segundo plano. O apocalipse em PULSE acontece de forma sutil, mas no final as ruas e estabelecimentos estão completamente desertos e no horizonte prédios desabitados e uma cidade decrépita como cenário… De vez em quando algum indivíduo se joga de um local muito alto para incrementar ainda mais a atmosfera de desolação.

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Kurosawa não perde tempo tentando explicar o que está acontecendo. Fantasmas, suicídios em massa, eventos que são precisos aceitar dentro do conceito de horror do filme. Durante a narrativa, tomamos conhecimento de alguns detalhes, sabemos que a internet é utilizada pelos espíritos para amenizar a solidão eterna. A reflexão sobre o isolamento e a separação auto-imposta que a tecnologia moderna traz é muito forte em PULSE, onde nos escondemos atrás de uma tela de computador e fazemos apenas as conexões mais superficiais uns com os outros. O filme explora bem as questões de como a tecnologia e a internet pode nos manter separados em vez de unir. E os fantasmas em PULSE se conectam justamente com as pessoas que se sentem sozinhas e cuja a depressão coletiva possibilita a criação desse vínculo metafísico.

O filme também nunca tenta chocar ou fazer espetáculo a partir da tragédia, mas cria uma atmosfera de isolamento e desesperança com momentos realmente desconfortáveis. Algumas imagens são mais diretas, como a mulher que se joga de uma estrutura numa fábrica, numa das cenas de suicídio das mais realistas que eu já vi. Ou já perto do final, um plano envolvendo um avião em queda que é realmente aterrador. Mas são nos momentos de horror intimista e atmosférico que a coisa fica realmente angustiante. As manchas nas paredes onde as pessoas desapareceram ou se mataram, a maneira como Kurosawa usa a profundidade de campo, o trabalho de luz… A cada sombra ou lugar escuro na tela dá a impressão de estar escondendo uma entidade fantasma que se recusa a se revelar. Pequenos detalhes usados para gelar a espinha do espectador sem precisar apelar para sustos ou clichês do gênero, Kurosawa prefere conduzir o público a um passeio sombrio e angustiante que evidencia gradativa e lentamente as implicações “sociais” da trama.

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O filme foi o maior orçamento que Kurosawa havia trabalhado até então. Numa entrevista para a Fangoria na época, o sujeito disse que após anos desenvolvendo uma carreira relativamente dedicada ao horror durante os anos 90, finalmente teria a oportunidade de fazer algo grande, sem sair de seu estilo intimista. No arremate, ele disse que se o filme não tivesse o sucesso que ele esperava, ele desistiria do gênero. Bom, PULSE acabou mesmo sendo seu filme mais famoso, teve refilmagem nos EUA e Kurosawa não parou de fazer filmes de horror, então acho que a obra teve o resultado que ele queria. Pessoalmente, acho o filme sublime, é quase uma obra-prima do horror contemporâneo pra mim e dentro da filmografia do homem só perde para CURE (1997).

Se bobear, comento outros filmes que andei vendo do sujeito. Kurosawa é realmente essencial para quem curte o gênero e vale a pena acompanhar sua obra mais de perto.

CURE (1997)

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CURE é desses filmes que te arrebata instantaneamente. Agora quero ver tudo do japonês Kiyoshi Kurosawa (que não possui ligação alguma com o diretor de Ran, Kagemusha, e diversos outros) cuja carreira já possui considerável número de filmes e só agora parei pra conhecer seu trabalho. Este aqui foi o filme que deu a Kurosawa um certo reconhecimento internacional e sua grandeza reside no estilo rebuscado de contar uma história através de longos planos enquadrados com rigor e simetria, uma linguagem cinematográfica não convencional com o cinema de gênero que faz e, exatamente por isso, tão excepcional.

Trata-se de um terror policial psicológico com cara de filme de Antonioni, ou algo do tipo. A trama é até simples e parte de uma série de assassinatos, cometidos por pessoas diferentes, mas com as mesmas características: as vítimas sempre têm dois cortes que vão do pescoço ao peito em forma de X. O policial designado para o caso suspeita de que exista uma única pessoa por trás desses crimes. Aos poucos, a coisa toda toma forma de um profundo estudo da psicologia humana com a carga emocional que o protagonista vive, mas sem perder a essência do horror nem deixar de lado o realismo insólito na composição de suas imagens.

Dos diretores japoneses atuais, Kurosawa já assume um lugar favorável entre os meus favoritos ao lado de Takashi Miike, Takeshi Kitano e outros (preciso conhecer mais o Sion Sono). E isso é porque só vi apenas um filme do sujeito. Caso seus outros trabalhos mantenham o mesmo nível de qualidade deste aqui, ele corre sério risco de se tornar o meu favorito. E se tivesse assistido CURE antes de fazer aquela lista dos anos noventa que está ali em alguns posts abaixo, podem ter certeza que ele estaria lá.