O FUGITIVO DE SANTA MARTA (1950)

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O FUGITIVO DE SANTA MARTA (The Lawless), segundo filme de Joseph Losey, é um estudo interessante sobre discriminação racial em uma pequena cidade dividida entre uma comunidade branca e um bairro pobre de mexicanos-americanos que trabalham nas fazendas locais. É um filme de mensagem óbvia sobre a ânsia da América branca em desprezar o imigrante pobre. Uma América disposta a se colocar superior e acreditar que “o outro lado” é a encarnação de todo o mal e violência desse mundo. Ou seja, entra década, sai década e, como podemos ver na situação atual dos EUA e seu presidente xenófobo e racista, O FUGITIVO DE SANTA MARTA, um filme de quase setenta anos, continua refletindo uma atualidade impressionante.

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As tensões entre os jovens brancos e os latinos estão sempre à ponto de explodir por aqui. É o que acontece num festejo no bairro mexicano, quando alguns jovens brancos resolvem estragar a diversão. No tumulto generalizado que se forma, o jovem mexicano Paul Rodriguez (Lalo Rios) acerta em cheio um direto num policial. Com medo do que acontecerá a seguir, sai correndo, rouba um carro e se mete numa série de contratempos improváveis que o faz parecer cada vez mais culpado, como um psicopata à solta numa onda de crimes.

Atrelado a esse drama, está o jornalista Larry Wilder (Macdonald Carey), que já fora um ousado repórter em cruzadas por causas controversas e grandes histórias, mas agora tenta viver uma vida mais tranquila como dono de um jornal na pequena cidade. No entanto, quando se desenrola esses acontecimentos, Wilder luta contra sua consciência, tentando ficar de fora, mas não resiste muito ao observar a discriminação inflamada por repórteres inescrupulosos e cidadãos sedentos por sangue. No meio disso tudo, ainda rola tempo para o sujeito se apaixonar por uma moça mexicana que trabalha num outro jornal local, interpretada por Gail Russell, que o beija toda vez que faz uma boa ação.

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Mas o que de fato impressiona em O FUGITIVO DE SANTA MARTA é o domínio de Losey na direção. Um trabalho aparentemente simples, “invisível”, mas que segue uma ideia de eficácia naturalista, de absorver somente o necessário, sem firulas e excessos. É um cinema de essência, a coisa de captar o mundo de forma direta e imediata com a câmera, que o crítico Michel Mourlet defendia nos anos 50. Losey renuncia até a trilha sonora em grande parte da narrativa, como numa das melhores sequências do filme, a que Rodriguez é rastreado pela polícia até um local ribeirinho, com o sujeito se esgueirando no terreno pedregoso, enquanto hordas de policiais avançam em sua direção. Escutamos apenas o sons dos passos sobre as pedras, o que deixa a atmosfera ainda mais tensa. Os planos de Losey intercalam o campo aberto – contemplando a paisagem desolada com os homens com espingardas se espalhando – e composições do rosto aterrorizado do rapaz em primeiro plano.

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Em alguns momentos, parece que estamos diante de um filme neo-realista italiano, como na cena que Wilder tenta convencer a polícia a deixar os pais de Rodriguez a verem o garoto. Enquanto Wilder entra na sala, Losey opta por permanecer com os pais, que esperam. Tudo permanece em silêncio, e a câmera simplesmente fica parada a observar, até que o pai, sem qualquer exagero melodramático, abaixa a cabeça nas mãos, dominado pela emoção do momento. Quando Wilder volta e diz que eles podem ver o filho, a câmera do diretor permanece no corredor, observando à distância, através da moldura da porta, enquanto Rodriguez abraça seus pais, deixando um espaço respeitoso, entre personagens e espectador, para esse momento íntimo. São cenas simples como essa, quase imperceptíveis, mas que existem aos montes em O FUGITIVO DE SANTA MARTA, que mostram o poder da mise en scène de Losey.

O filme faz parte de um subgênero do film noir, o film gris, formado por exemplares que possuíam elementos do cinema noir, mas que ofereciam uma forte crítica às classes altas da sociedade e ao capitalismo em particular. E O FUGITIVO DE SANTA MARTA não deixa de ter também esse viés marxista e progressista, que ideologicamente não tem receio de se colocar do lado das minorias. No clímax, todos os preconceitos deflagram na multidão de linchadores, também conhecidos como “homens de bem”. No entanto, o final destrutivo é temperado por uma pitada de esperança, uma sugestão de que a vontade de se manifestar contra a injustiça é o primeiro passo para o que com certeza será um processo longo e difícil de mudança.

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O FUGITIVO DE SANTA MARTA é áspero e às vezes desajeitado (nas cenas de luta e confusão, por exemplo, ninguém consegue encenar um soco direito) e a maior parte do elenco é amadora. Mas Losey tem muito talento e consciência para utilizar os valores de uma produção B e transformá-la num “pequeno grande” filme. E que já sugere os interesses políticos do diretor… Não é a toa que o filme foi um dos responsáveis por Losey ser perseguido na caça às bruxas do Macartismo, o que obrigou o sujeito a se mudar para a Inglaterra e continuar seu trabalho por lá…

FIGURES IN A LANDSCAPE (1970)

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Joseph Losey disse em alguma oportunidade que achava que as ambientações de seus filmes são como atores. As casas e apartamentos em SECRET CEREMONY (68), ACCIDENT (67) e O CRIADO (63) eram como personagens e influenciavam de forma imersiva a ação dos indivíduos que colocava ali. O mesmo pode ser dito sobre os cenários de FIGURES IN A LANDSCAPE, um survivor movie, aparentemente bem atípico na obra do diretor.

O filme é sobre dois sujeitos que, com as mãos atadas e perseguidos constantemente por um helicóptero, fogem milhas e mais milhas à pé, enfrentando os mais diversos tipos de cenários que na lógica de Losey se tornam autênticos vilões: vegetações selvagens, deserto, lama, chuva, montahas, neve. Ocasionalmente, balas são disparadas em suas direções. Os dois sujeitos são interpretados por Robert Shaw (também responsável pelo roteiro, baseado num livro de Barry England), o experiente e presunçoso da dupla, e Malcom McDowell, o ingênuo e assustado garoto da cidade.

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Um detalhe que realmente se destaca em FIGURES IN A LANDSCAPE é o fato desses dois personagens existirem apenas para a ação mostrada na tela. Quem são esses indivíduos fora da ideia de que são “fugitivos de um helicóptero tentando sobreviver”? Obviamente são prisioneiros, mas por quais razões? São presos de guerra, políticos, criminosos? Como escaparam? Que país a história transcorre? Quem os persegue?

Nada disso é respondido ou importa muito. É apenas na essência da ação que Losey retira o que é necessário para trabalhar a narrativa: Como roubam comida, a maneira que arranjam um rifle, o modo que desviam de um batalhão que fazem um pente fino para encontrá-los no meio de um matagal, o conflito de personalidades que surge entre os dois protagonistas e, especialmente, o duelo psicológico e concreto de Shaw com o helicóptero negro, que me fez lembrar em alguns momentos de DUEL (71), de Steven Spielberg.

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Eventualmente a dupla protagonista expõem um pouco de background pessoal; falam de si, do passado, das famílias, compartilham alguns momentos de intimidade, seja fumando um cigarro ou defecando após tomarem leite condensado. Afinal, são seres humanos, os únicos num filme no qual todos os outros personagens são figuras camufladas, fantasmas sem face definida ou expressão. Nunca vemos os rostos dos pilotos do tal helicóptero e os soldados em solo sempre aparecem distantes ou com óculos escuros e visores. Apenas Shaw e McDowell possuem faces e aproveitam-se bem delas, com atuações expressivas.

A direção de Losey é tão magistral quanto se podia esperar. Tão econômica quanto a busca pela essência do enredo. O homem filma somente o necessário, recorrendo a longos planos, tomadas abertas dos protagonistas interagindo com as paisagens-personagens e faz surgir, com isso, belíssimas imagens – o trabalho de fotografia é de tirar o fôlego. Além, é claro, da habilidade do diretor na construção de sequências de tensão e ação, sempre procurando a maneira mais cinematográfica possível. FIGURES IN A LANDSCAPE é conhecido no Brasil como NO LIMIAR DA LIBERDADE.