TREM-BALA (2022)

por LUIZ CAMPOS

Este texto contém spoilers.

Muito se diz de que filmes com grandes elencos que envolvem vários personagens do submundo, de pequenos criminosos a grandes chefões, bebam diretamente do QuentinTarantino. Se levarmos em consideração CÃES DE ALUGUEL, PULP FICTION e mesmo parte do KILL BILL, é verdade, ao menos até certo ponto. Existe um outro diretor que penso eu ter tido pelo menos tanta influência quanto o “Queixada” para a fetichização desse universo, se não tiver tido ainda mais: Guy Ritchie, o ex-senhor Madonna, que atualmente está sempre com ternos bem cortados até mesmo quando vai pro banho, aparentemente. Figura oriunda da publicidade, Ritchie levou as histórias de gangsters, recheadas de humor ácido e tragédia para novos patamares, tanto no texto quanto na estética. Inclusive podemos afirmar sem receio que o mundo do crime é muito mais objeto do seu fascínio do que do Tarantino, tendo em vista que metade de sua filmografia lida diretamente com o assunto, e alguns outros, como os dois Sherlock Holmes e sua versão de Rei Arthur, são populados por essas figuras literalmente marginais. Então, se formos chamar TREM-BALA (Bullet Train), de derivativo, eu diria que ele deve mais aos bandidos do Ritchie do que os do Tarantino. E se o próprio diretor David Leitch disser que estou errado, recomendo ao mesmo rever SNATCH, ROCKNROLLA e REVOLVER e comparar com o que ele fez neste aqui.

Pra quem não tá sabendo do que se trata, uma breve sinopse: um grupo de assassinos está em um trem-bala, cada um com uma missão, mas ao longo da noite seus caminhos e missões irão se entrecruzar, gerando situações cômicas e sangrentas.

É muito curioso quando você entende porque determinado filme é odiado ou adorado. Neste aqui, por exemplo, eu consigo ver claramente o porquê do filme dividir tanto opiniões: David Leitch decidiu explorar com ainda mais força a comédia, e embora eu particularmente ache seus filmes engraçados na maior parte do tempo, ele abraça muito daquele cinismo auto-consciente que tomou conta de Hollywood nos últimos 10 anos.

Fora a decepção de muitos de ver um dos melhores coordenadores de ação de Hollywood investindo tão pouco da sua técnica para o desenvolvimento de momentos gloriosos de ação, como seu sócio Chad Stahelski faz na franquia JOHN WICK. Eu gosto muito de todas as cenas de ação, embora me pareça que o coração do Leitch está bem mais na história e nos personagens, e acho que ele foi feliz pela maioria de escolhas que tomou quanto a isso. E eu tenho a impressão que a maior piada de todas – e a que certamente me fez rir bastante – foi perceber que Brad Pitt, na trama, está substituindo o Ryan Reynolds, sendo que a personalidade do protagonista é a mesma de todos os filmes do Reynolds desde o primeiro DEADPOOL. Cabe dizer que Pitt fez ele mesmo uma breve participação em DEADPOOL 2, numa das melhores piadas do filme.

Aliás, eu consigo notar aqui o surgimento de um diretor autorreferente: as pontas feitas por figuras com quem já trabalhou – a Zazie Beets também fez DEADPOOL 2, assim como Ryan Reynolds Hiroyuki Sanada em WOLVERINE – IMORTAL, onde Leitch trabalhou como diretor de segunda unidade; Channing Tatum, quando foi coordenador de dublês em O DESTINO DE JÚPITER; além do diretor ter sido dublê do Brad Pitt no passado; a questão da sorte/má sorte vai gerar a cena do Brad Pitt sobrevivendo a colisão do trem da mesmíssima forma como funcionavam os poderes da Beets no já citado DEADPOOL 2; o Pitt utiliza livros, bandejas, laptops como JOHN WICK; tem cenas com capangas no topo do trem-bala que remetem diretamente a WOLVERINE – IMORTAL; uma trama repleta de assassinos e mafiosos, representando um mundo à parte do nosso, tal qual JOHN WICK. Eu sinto que existe, no fundo, um subtexto que critica o sistema de trabalho de Hollywood, onde homens e mulheres literalmente dão o seu sangue e correm riscos por gente metida que recebe dinheiro demais e não se importa, mas isso provavelmente sou eu lendo demais o filme.

O que acredito ser o problema maior de TREM-BALA é que esse citado cinismo do humor do Leitch acaba sabotando o que o filme tem de melhor, que é a presença dessas figuras marginais em situações crescentemente mais absurdas e, de certa forma, até trágicas. A necessidade da piada arrebenta com o peso da subtrama do Andrew Koji – um talento, aliás, desperdiçado aqui -, com algumas das perdas, como a do assassino Limão, vivido por um inspirado Aaron Taylor-Johnson, e principalmente com a figura do misterioso Morte Branca (Michael Shannon), que chega ao fim do filme menos como a encarnação do mal e mais como uma caricatura.

O filme tinha potencial para terminar em um intenso embate entre esses peões e o grande rei que domina todo esse tabuleiro de xadrez, mas a necessidade de fazer o espectador supostamente rir implode isso. Ele também acaba tendo seu maior ápice emocional muito antes do arco final, o mesmíssimo erro que Leitch cometeu em HOBBS & SHAW. Ainda teremos muita coisa boa acontecendo, assim como no filme do The Rock com o Jason Statham, mas parece que Leitch ainda não entende porque um de seus heróis do cinema, Jackie Chan, dá o seu máximo nos últimos 30 minutos de duração.

Ainda que o filme termine com um extenso – e engraçado – set piece, a verdade é que já chegamos ao fim como convidados para uma festa que está se estendendo um pouco mais do que devia. Mas, se formos citar o lado positivo, temos o já mencionado Aaron Taylor-Johnson em estado de graça, dividindo vários momentos com um também inspirado Brian Tyree Henry, o Brad Pitt também se garante como o desajeitado “Joaninha”, que divide também excelentes diálogos com seu contato, vivido – descobriremos depois – pela Sandra Bullock, e também gostei muito da Joey King como a insidiosa Príncipe, se afastando com força de sua persona teen dos filmes da Netflix.

Leitch sempre trabalhou muito bem com cores e blocagem, e aqui temos mais uma parceria bem sucedida sua com o diretor de fotografia Jonathan Sela. Nada daquelas cores mortas ou de câmera tremida, já que o homem também chamou novamente a competente Elísabet Ronaldsdóttir para editar o filme. Para cuidar da ação, o homem chamou sua rapaziada da 87eleven, então temos aqui um nível de qualidade só rivalizado pelas equipes da Ásia.

No fim, assim como Ritchie, Leitch se mostra um artesão com talento, mas sem uma noção clara de quais são os seus pontos fortes e fracos. Vem se mostrando um autor – sim, definitivamente um autor – com uma abordagem muito particular, mas que, assim como o ex-senhor Ciccone, deve ter uma carreira recheada de filmes interessantes, mas que vão fascinar e alienar a audiência na mesma proporção com frequência. Tendo dito isto, se Guy Ritchie fez ALADDIN, quero O Corcunda de Notre Dame dirigido pelo David Leitch, assim como uma releitura do Arsène Lupin.

NOBODY (2021)

Bob Odenkirk ganhou fama como o advogado esperto e picareta Saul Goodman, de BREAKING BAD, cujo personagem chama tanto a atenção que acabou ganhando um seriado próprio para chamar de seu (BETTER CALL SAUL). O cara é muito bom ator, isso não tenho dúvidas, mas acho que ninguém (sem trocadilho com título original deste filme aqui) esperava que a essa altura do campeonato teríamos um filme com Odenkirk pagando de action hero, ao estilo Liam Neeson… Para um filme que se chama NOBODY, acertaram em cheio na escalação do sujeito.

Odenkirk é um homem aparentemente comum, pai de família, mas que guarda um passado violento envolto às sombras. Ele parece estar entediado, o casamento não anda lá essas coisas, crise da meia idade batendo, se sentindo impotente com sua vida vazia e monótona se repetindo dia a dia, como é mostrado na eficiente edição do começo do filme. Então, quando alguns gangsters russos vêm atrás dele e de sua família depois de determinados eventos, ele aproveita a oportunidade para liberar seu antigo “eu” acompanhado de mais um conjunto de habilidades especiais.

Óbvio que neste momento não vou resistir de fazer comparações com JOHN WICK. Quem já viu o filme estrelado por Keanu Reeves já nota as semelhança quase de imediato. E na verdade NOBODY foi escrito pelo mesmo roteirista de JOHN WICK, Derek Kolstad, e um dos produtore é David Leitch, que co-dirigiu JOHN WICK, então não tem pra onde fugir, as semelhanças estão lá de maneira explícita sem qualquer esforço em virar o disco. O que não acho negativo. Não prezo tanto assim por originalidade em toda merda que se faz por aí. Claro, uma obra que possua essa qualidade acaba se sobressaindo… Mas contanto que façam filmes legais, não me importo que copiem JOHN WICK na cara dura… E NOBODY é bem divertido nessa lógica.

E, bom, se vc asssitiu ao trailer de NOBODY sabe que não é pra esperar algo que traga luz à reflexões profundas e filosóficas da alma humana. Ninguém tá esperando um Bergman, um Antonioni. O que dá pra esperar é Bob Odenkirk socando e trocando tiros com pessoas. E o filme entrega isso: Bob Odenkirk socando, matando pessoas e explodindo coisas (e pesoas) por 90 minutos. O que tá bom demais pra mim.

A direção de NOBODY é daquele russo maluco que há uns anos fez aquele filme de ação em primeira pessoa, HARDCORE HENRY, que na época eu achei um tanto enjoativo pela proposta “100% visto pelos olhos do protagonista”. Uma revisão hoje não faria mal. Mas pode esperar. O nome do sujeito é Ilya Naishuller e acho que nessa narrativa mais convencional até que mandou bem. Ele não leva o material a sério, consegue trabalhar bem com os atores e cria sequências de ação bem coreografadas e cheia de mortes criativas. A sequência da pancadaria no ônibus, com Odenkirk encarando uns cinco sujeitos (entre eles o grande Daniel Bernhardt e Alain Moussi) tá entre as melhores do ano. E o tiroteio final é um barato. Tá certo que você sente que vai dar tudo certo, que praticamente nenhum dos heróis sofre qualquer ameaça real nas trocas de tiros, não tem peso dramático nenhum, mas não deixa de ser divertido. E poder ver Christopher Lloyd, o bom e velho Doc Brown de DE VOLTA PARA O FUTURO, carregado de espingardas e escopetas, mandando chumbo pra cima de mafiosos russos é uma imagem linda.

Bob Odenkirk consegue se sair muito bem, o que não é nenhuma surpresa. Mas a participação de Lloyd sim, essa eu não estava esperando que fosse tão legal. Ele é responsável por alguns dos melhores momentos do filme. No elenco ainda temos a musa dos anos 90 Connie Nielsen, o rapper fã de Shaw Brothers RZA e um russo de nome longo fazendo um daqueles vilões surtados típicos que adoramos: Alexei Walerjewitsch Serebrjakow.

NOBODY não é perfeito, está longe de ser um grande filme (como é o caso do próprio JOHN WICK), mas é agradável, me diverti bem com ele. Sem contar com aquele detalhe de que possui apenas 90 minutos de duração. Para um filme de ação atual, além de raro, chega a ser um frescor.