Os últimos textos publicados no projeto DIA DA FÚRIA (um site coletivo criado em 2009 que eu editava) foi em 2018, com o especial Walter Hill. Ficou incompleto e, enfim, pouca gente se importou de fato em manter as publicações. Um tempo depois, conversando com um ou dois membros, resolvemos fazer uma última tentativa e escolhemos o diretor Mike Hodges para ser o homenageado. Só iríamos publicar alguma coisa depois que todos os textos estivessem prontos. Daí não teria a chance de mais um projeto ficar incompleto no site… A coisa não foi pra frente mais uma vez e acabou sendo o último suspiro do DIA DA FÚRIA, que realmente não tem a mínima possibilidade de retorno.
No entanto, essa última tentativa gerou dois textos inéditos, um do Marcelo Valletta e outro meu. Como o DIA DA FÚRIA não vai ver mais a luz do dia, publico aqui no blog mesmo. Primeiro, o texto do Marcelo e em breve coloco o meu por aqui também.
CARTER, O VINGADOR (Get Carter, 1971)
por Marcelo Valletta
Após alguns anos trabalhando na TV, Mike Hodges estreou no cinema com CARTER, O VINGADOR, graças a um convite do produtor Michael Klinger. Dispostos a revitalizar o filme de criminosos ingleses, gênero que nas décadas anteriores teve exemplares excelentes, como THEY MADE ME A FUGITIVE (dirigido pelo influente brasileiro Alberto Cavalcanti) e BRIGHTON ROCK, Klinger, Hodges e o coprodutor e estrela Michael Caine aproveitaram o relaxamento da censura, uma das consequências dos Swinging Sixties, para entregar uma obra especialmente brutal.
Essa brutalidade vem de sua maior qualidade: o naturalismo, em especial pelas escolhas de não glamourizar o crime nem espetacularizar a violência. Para interpretar o protagonista do romance “Jack’s Return Home“, recém-lançado por Ted Lewis, Caine, filho de faxineiros que abandonou a escola aos 15 anos, diz ter se baseado em bandidos que conheceu na juventude. Além disso, Hodges e sua equipe pesquisaram a atividade criminal em Newcastle upon Tyne, onde a história se passa.
Isso resultou em um personagem principal obstinado, taciturno e amoral, sem características redentoras nem apelação para momentâneos alívios cômicos. Em busca dos assassinos de seu irmão, Jack Carter não demonstra nenhum tipo de remorso, mesmo quando seus eventuais aliados se machucam. Diante dos diretamente envolvidos com o crime, deixa escapar uma raiva contida, nos momentos mais intensos. É uma das interpretações mais marcantes de Caine.
O ritmo da obra, cujo enredo se passa em apenas um fim de semana, também causa bastante impacto. São poucas sequências, nas quais os muitos personagens são apresentados a conta-gotas. Os acertos de contas que formam o clímax começam a menos de meia hora do final, quando se inicia uma cadeia de assassinatos, sem grande sofisticação. Não à toa, o primeiro deles é o mais chocante: Carter esfaqueia duas vezes um informante, aos gritos de “Eu sei que você não matou meu irmão!“.
CARTER, O VINGADOR também acerta ao deixar de lado alguns clichês do cinema noir, como a voz over que desnuda os pensamentos do protagonista e o uso de flaskbacks (estes existem no livro e mostram as relações de Carter com o irmão e outros personagens).
Outro ponto de destaque é o modo como o filme retrata o sexo. Além de exibir nudez ou seminudez de algumas das atrizes principais, a primeira cena mostra uma curiosa reunião em uma residência luxuosa, na qual Carter, seus chefes e outros convidados assistem a uma sessão de slides pornográficos. Prostituição e aliciamento de menores de idade para atuar em filmes caseiros também são abordados, o que ajuda a explicar a inicial classificação X (apenas para adultos), depois rebaixada para R. Mas, apesar de duas das personagens que Carter encontra em Newcastle passarem pela sua cama (a segunda sequência desse tipo faz uso de montagem paralela, alternando entre o casal no carro e na cama), a cena mais erótica, cortada pela censura em vários países, é um telefonema sensual que o protagonista faz à sua amante (interpretada pela linda Britt Ekland, o principal nome feminino nos créditos, apesar de aparecer muito pouco), diante de sua inquilina.
Entre outros destaques do elenco estão Geraldine Moffat, ótima como a interessante Glenda, que tem um destino irônico, e Dorothy White como a prostituta Margaret. Dos homens, chama especial atenção o celebrado dramaturgo John Osborne, autor de “Look Back in Anger“, que interpreta o chefe dos bandidos de Newcastle como um homem de fala suave, mas implacável nas suas decisões – no livro, o personagem é bem mais grosseiro.
A marcante sequência final, numa praia com céu encoberto onde carvão é naturalmente depositado, carrega bastante na ironia ao mostrar o destino dos principais antagonistas. Um projeto mais comercial concluiria de forma distinta.
CARTER, O VINGADOR foi recebido pela crítica com ambivalência: em geral a qualidade da produção, da direção e das atuações foi elogiada, mas o conteúdo revirou os estômagos mais sensíveis. O sucesso de público também foi moderado, numa época em que o campeão de audiência era o drama LOVE STORY. Ainda assim, foi suficiente para que as edições futuras do romance de Lewis fossem rebatizadas como o filme e que os dois livros seguintes, com histórias ocorridas em períodos anteriores, trouxessem o nome do protagonista nos títulos.
A MGM, que estava em crise, fechando suas subsidiárias na Europa, resolveu refazer o filme para as plateias ianques, em vez de divulgar o original britânico. Curiosamente, o remake de George Armitage se tornou um blaxpoitation, estrelado pelo jogador de futebol americano Bernie Casey e a futura musa Pam Grier (cuja personagem tem o curioso nome de Gozelda).
No fim das contas, o original de Hodges não alcançou a qualidade de POINT BLANK, com o qual costuma ser comparado, mas ainda assim é o que meu tio que me levava para alugar VHS na infância chamava de “filmão“. Esta porrada cinematográfica ficou esquecida por quase três décadas, até ganhar status de clássico ao ser citada como influência por diretores como Quentin Tarantino e Guy Ritchie – o que acabou desaguando no segundo remake, estrelado por Sylvester Stallone. Mas isso é uma outra história.
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