Em 1971 Clint Eastwood era uma das principais figuras do cinema comercial americano, tendo construído seu nome em filmes de faroeste e ação. PLAY MISTY FOR ME, no Brasil lançado como PERVERSA PAIXÃO, foi sua primeira investida como diretor e a surpresa inicial é o fato do filme ser um crazy bitch thriller ao estilo de ATRAÇÃO FATAL, sobre um DJ de rádio que se torna o objeto de obsessão mórbida de uma fã obcecada. Um filme de romance às avessas que se torna um autêntico pesadelo. E, convenhamos, é algo que está bem longe dos filmes de ação pelos quais Clint era então conhecido.
Mas olhando hoje, quase 50 anos depois, percebe-se claramente que PLAY MISTY FOR ME trata-se de um trabalho muito pessoal de Clint, cheio de interesses e obsessões que de certa forma o acompanharam durante toda a sua carreira. Uma das principais características é o fato dele mesmo incorporar o protagonista, um apresentador de rádio responsável por um programa de jazz. O filme é, portanto, literalmente invadido pela música, onipresente, dos mais populares ritmos aos mais elegantes (Errol Garner, com a música Misty, citada no título do filme) e para quem não sabe o homem é um aficcionado por jazz e blues… Muita gente reclama do prolongamento da sequência do festival, mas acho que é a melhor exemplificação dessa lógica, esses minutos “ao vivo” do festival de Monterey, onde Eastwood filma os músicos e o público em transe, etc… Uma magnífica declaração de amor de Clint à música.
A trama de PLAY MISTY FOR ME é sobre David Garver, este disc-jockey de fala mansa que Clint interpreta. Depois de uma noite caliente com sua fã número um, Evelyn (Jessica Walter), ele dá a ela a velha desculpa “Eu te ligo depois“. Só que ela realmente acredita nas palavras do sujeito. Logo, ela está surgindo na casa dele com compras, ligando em horários estranhos e aparecendo completamente nua em sua porta. À princípio David tolera o comportamento dela, mas quando ele resolve volta para Tobie (Donna Mills), um antigo romance, Evelyn entra no modo full-crazy bitch stalker. Invade a casa dele histérica, destrói seus móveis, estraga uma importante entrevista de emprego, até esfaqueia sua empregada antes de ir atrás da namorada de David. Ao final, por ser Clint Eastwood, ele não tem nenhum problema (SPOILER) em dar um soco na cara dela e vê-la cair com tudo e se espatifar nas pedras de uma ribanceira à beira-mar…
O legal é que PLAY MISTY FOR ME não gasta muito tempo enrolando. É bem direto no tema do “perseguidor obcecado” e alguns dos melhores momentos ilustram a facilidade com que David cai nas armadilhas de Evelyn e o quão impossível é para ele se livrar. Chega a ser angustiante… E David acaba sendo cúmplice em sua própria crise. O filme prenuncia cuidadosamente o lado sombrio de Evelyn, de um modo até exagerado no maniqueísmo, sem sutilezas, e o filme enfatiza que a única coisa que impede David de sentir o perigo é sua própria arrogância. E a luxúria, claro, já que David é um mulherengo cujo relacionamento com Tobie está sendo testado por conta de suas conquistas extracurriculares. E como o colega de David, Al (James McEachin), diz com uma piscadela: “Quem vive à espada, morre pela espada“.
A última hora de filme compensa bem a premissa, com várias cenas tensas de suspense e violência. E Jessica Walter devora o seu papel, criando um monstro memorável, baseado em emoções críveis e perversas. Talvez falte a tal sutileza à personagem, mas dentro da proposta tão direta na qual o filme lida com o assunto, ela convence fácil com uma atuação expressiva e perturbadora. Clint também faz um bom trabalho na frente da câmera, desempenhando basicamente o mesmo que em todos os seus filmes, exceto que ele quase não mata ninguém por aqui. E transa mais (prefere usar a outra arma, se você me entende)…
Na direção, Clint se deixa guiar pelos ensinamentos de seus mestres, Sergio Leone (com vários planos detalhes dos olhos de seus personagens) e Don Siegel (e é até comovente que Clint tenha colocado Siegel para fazer um pequeno papel como o barman favorito de David). Mas muito do estilo autoral da direção de Eastwood se manifesta nesse seu primeiro trabalho, especialmente o uso da iluminação escura, no cuidado com as composições e no ritmo lânguido… Não deixa de ter falhas (pesa a mão alguns momentos melosos demais entre David e Tobie) e uma certa hesitação entre ser classicista ou Nova Hollywood… Mas o resultado não deixa de funcionar. PLAY MISTY FOR ME é uma sólida estreia, um thriller angustiante muito bem executado para o primeiro esforço de um diretor que se tornaria um dos melhores do ramo.
Realmente é possível evidenciar algumas características constantes em toda a filmografia do Clint como diretor, como por exemplo uma espécie de “mistificação” da sua própria figura e/ou da figura do homem (em filmes nos quais ele não é o protagonista).
Legal também reparar que ele sempre escolhe alguns planos para destacar seu status de grande lobo solitário e “isolacionista”, mesmo em tramas no qual ele é o mulherengo.