FOI DEUS QUE MANDOU (God Told Me To) poderia ter sido o que O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA foi para Tobe Hooper, ou o que HALLOWEEN foi pro Carpenter. Produções relativamente pobres que renderam muito mais que o esperado. Infelizmente Larry Cohen não teve a mesma sorte. Até que é um filme bem realizado, cheio de idéias e reflexões filosóficas que transcende gêneros, que dialoga e propõe um olhar social. É uma pena, portanto, que tenha sido condenado ao limbo, onde só mesmo interessados por cinema grind house e produções de baixo orçamento de gênero têm o devido contato.
A abordagem de Cohen aqui é de um pessimismo quase poético. Em seu nível superficial, FOI DEUS QUE MANDOU é uma história de investigação policial, que se passa em Nova York. O filme começa com um atirador, empoleirado em uma torre de água no alto de um prédio, usando pessoas aleatórias nas ruas como alvo. Cohen filma com uma câmera na mão, no meio da multidão, num estilo seco e documental de fazer um Cassavetes se encher de orgulho, enquanto os tiros ecoam entre os prédios e os corpos começam a se acumular.
Tony LoBianco (OPERAÇÃO FRANÇA) é o detetive Peter Nichols, que sobe a torre para confrontar o atirador e obtém uma resposta ao caos sofrido por esse homem. Quando perguntado a razão dele estar atirando nas pessoas, e antes de mergulhar em sua morte suicida, o atirador diz ao detetive que Deus lhe disse para fazê-lo. Um olhar desesperado atravessa o rosto de Nichols. As palavras “foi Deus que mandou” são poderosas o suficiente para afastá-lo de sua complacência e abrir o seu tormento psicológico há tanto tempo reprimido. Talvez palavras poderosas o suficiente para sacudir sua perda de crença religiosa e se tornar um ímpeto para a autodescoberta.
Em relação à religião, FOI DEUS QUE MANDOU não é uma jornada cheia de redenção ao estilo do que Martin Scorsese fazia na época. A cidade de Cohen em Nova York é tão suja e decadente quanto em CAMINHOS PERIGOSOS e TAXI DRIVER, mas Cohen não oferece a oportunidade para o resgate de Nichols como Scorsese faz com seus personagens. Para Travis Bickle (Robert De Niro em TAXI DRIVER), a redenção vem através de uma jornada de escuridão neurótica e uma explosão de violência. Já Cohen resolve impor à Nichols uma excursão às trevas do misticismo ou infiltração alienígena, mas cujo resultado não deixa de ser perturbador em sua abordagem à falibilidade humana e à perda da conexão com Deus.
Nichols, em certo sentido, segue os passos de Travis Bickle, mas Cohen também se recusa a aceitar a realidade como base para sua história. Onde Travis sai do controle em um pano de fundo real, Cohen intercala o deslizamento de Nichols com o fantástico. O mistério para Nichols não é apenas descobrir quem está por trás dessa série de assassinatos realizados por pessoas que o fazem “à mando de Deus”, mas uma jornada existencial de autodescoberta. Os assassinatos são um catalisador para Nichols descobrir onde ele próprio se insere nessa trama. Todas as mortes levam à ele, que por sua vez levam a um homem chamado Bernard Philips (Richard Lynch), que se diz Deus, mas que acaba por ser uma espécie de mistura reencarnada de Cristo e do Diabo.
O discurso apocalíptico de Philips de alguma forma leva Nichols para sua mãe, que está em uma casa de repouso. Ao que parece, ela foi sequestrada por alienígenas quando era jovem e algum tempo depois concebeu Nichols, embora fosse virgem na época. Isto, naturalmente, alude à Virgem Maria e ao nascimento de Jesus Cristo. No universo de Cohen, não é despropositado fazer essas conexões.
FOI DEUS QUE MANDOU funciona bem como complemento para outros trabalhos talvez mais conhecidos de Larry Cohen, como I’TS ALIVE (74) e Q (82). Todos os três filmes são visões apocalípticas que evidenciam a ira de Deus em resposta às desilusões da estrutura familiar (IT’S ALIVE), um Deus que envia uma serpente alada contra a humanidade (Q) e, no mais emblemático, FOI DEUS QUE MANDOU, acentua a incapacidade do homem de discernir o poder de Deus, especialmente o do antigo testamento, vingativo, que usa o homem como peão para sua própria destruição.
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Filmaço do Cohen! Acho o melhor dele. Outros que assisti: “Efeitos Especiais”, que achei interessante, com uma ótima premissa, mas não me pegou… “Q” achei um belo filme. “A coisa”, filme que fez um certo sucesso na época, acho divertidíssimo. Preciso rever “It’s alive”, outro que é bem lembrado. Abraço!