JORNADA TÉTRICA (1958)

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Assisti a esse JORNADA TÉTRICA (Wind Across the Everglade), um dos filmes mais estranhos creditados ao diretor Nicholas Ray. Mas ao mesmo tempo não deixa de ser uma obra que nos reserva algumas maravilhas e qualidades peculiares dos “filmes tortos e imperfeitos”. Que é o tipo de filme que me fascina ocasionalmente bem mais do que obras consideradas perfeitas.

O fato é que os problemas de JORNADA TÉTRICA começaram antes mesmo das câmeras iniciarem as filmagens. Nicholas Ray mal foi contratado pelo produtor e roteirista Budd Schulberg e os atritos entre eles deram início. Ray achava o roteiro de Schulberg muito pesado e longo e já queria meter o bedelho, enquanto Schulberg, acostumado a trabalhar em estreita colaboração com os diretores, especialmente Elia Kazan, ressentiu-se de Ray por recusar sua contribuição e por ser geralmente arisco. Ray teve problemas também com o ator principal, um jovem Christopher Plummer iniciando sua carreira. Aparentemente, queria Paul Newman em seu lugar.

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Segundo vários relatos, Ray passava por momentos complicados da vida, o que justificaria suas atitudes. Na carreira, vinha de grandes filmes, tinha acabado de realizar o espetacular BITTER VICTORY, mas na sua vida pessoal a coisa não ia muito bem. Ray estava bebendo muito e há fontes que indicam a possibilidade dele estar usando heroína durante as filmagens. O crítico Chris Fujiwara faz um bom resumo de toda essa situação num texto escrito para o TCM que não deve ser difícil de encontrar por aí.

A produção era digna de um filme do Herzog. JORNADA TÉTRICA foi inteiramente rodado no calor da Flórida, nos pântanos selvagens da região e vários contratempos fizeram com que a produção ficasse atrasada. E depois de muita briga e confusão, especialmente por parte de Ray, que estava sem condições de continuar trabalhando, acabou demitido. O filme foi terminado pelo próprio Schulberg, contando com a ajuda do elenco e equipe. Fizeram as cenas finais, que era o que faltava para terminar as filmagens, de maneira anarquista, com todo mundo oferecendo sugestões e Schulberg tentando o seu melhor para supervisionar o caos. O final, curiosamente, é uma das melhores coisas de JORNADA TÉTRICA.

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De qualquer maneira, o filme estreou nos EUA com bilheterias e críticas péssimas, embora tenha se saído melhor na França, obviamente, onde Ray já era visto como um autor. A Cahiers du Cinéma, por exemplo, colocou o filme como um dos melhores do ano, independente se o sujeito filmou tudo ou não. Tendo em vista todo esse pano de fundo, dá pra imaginar que JORNADA TÉTRICA seja uma bagunça total. E de fato é. No entanto, é uma bagunça deliciosa de se acompanhar, com momentos de tremenda beleza visual e poder cinematográfico. E a visão distinta de Ray (90% do filme ainda é dele) brilha em cada frame.

Christopher Plummer é Murdock, um professor de ciências naturais transformado num guarda florestal que tenta coibir a caça furtiva de pássaros exóticos nos Everglades (região do sul da Flórida) no início do século XX; Burl Ives, numa atuação magistral, interpreta seu rival, Cottonmouth, o auto-proclamado chefe dos caçadores locais que estão extinguindo os pássaros. O sentimento de Ray por desajustados e paixões doentias pode ser sentido com mais força durante as cenas de Ives com sua gangue e durante os encontros acalorados entre os dois protagonistas, sempre com diálogos afiados e de grande intensidade.

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O elenco coadjuvante é tão eclético que muitas vezes desvia a atenção da história: A stripper burlesca Gypsy Rose Lee interpreta a anfitriã de um saloon; o autor MacKinlay Kantor aparece como juiz; e entre a gangue de Ives estão o ex-boxeador Tony Galento, o ex-palhaço de circo Emmett Kelly e um jovem Peter Falk.

O crítico francês Serge Daney comparou JORNADA TÉTRICA a APOCALYPSE NOW, de Francis F. Coppola. Ou melhor, comparou Cottonmouth a Kurtz (Marlon Brando), chefes de pequenos grupos à margem do mundo, relegados a ambientes selvagens, onde tudo depende dos pilares da violência, virilidade, auto-adoração e, finalmente, uma masculinidade nas fronteiras da homossexualidade. Também podemos pensar em A QUADRILHA MALDITA, western sublime de André de Toth também lançado no ano seguinte, onde o mesmo Burl Ives, desta vez enfrentando o grande Robert Ryan, lidera uma tropa de bandidos degenerados ansiosos por violência e obedecendo apenas ao seu mestre – o mesmo homem dominante e fisicamente imponente. Nos três filmes, trata-se de um duelo entre um herói e um líder da matilha que é excessivo em todos os sentidos, determinado a evoluir e permanecer na margem, considerando o mundo como um perigo a ser domesticado. As relações entre os dois adversários são, tanto aqui em Ray, quanto em De Toth e Coppola, ambíguas, combinando espécies de brigas de galos e visões contraditórias com uma amizade viril e ao mesmo tempo uma forma perturbadora de sedução.

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Em JORNADA TÉTRICA isso fica ainda mais evidente numa das melhores sequências do filme, na qual Cottonmouth desafia Murdock a um jogo de bebedeira durante uma forte tempestade: os dois homens ficam completamente bêbados em meio às trocas de diálogo e uma série de olhares penetrantes, finalmente debatendo suas respectivas posições em uma mistura de respeito e desprezo, navegando entre uma irmandade cômica e um duelo absolutamente fascinante até a morte.

A sequência termina no climax, o tal final que Shullberg teve que se virar para filmar, onde os dois sujeitos em um pequeno barco no meio dos pântanos do Everglades, rodeados pela fauna local, como crocodilos e cobras, travam um último duelo. Este é o culminar de um filme que Serge Daney nomeou ao diretor George Cukor em uma entrevista como um dos mais belos filmes americanos. O crítico teve como retorno uma risada zombeteira. Pois é, não foram muitos os que conseguiram encontrar a beleza deste filme tão autêntico e amaldiçoado… Ou “filme doente”, de acordo com o famosa expressão de Truffaut sobre JORNADA TÉTRICA. Bem que eu gostaria que todos os filmes de Hollywood hoje fossem tão doentes quanto este…