SANGUE DE HERÓIS é o primeiro filme da “trilogia da cavalaria” de John Ford – o segundo eu já comentei por aqui, LEGIÃO INVENCÍVEL – e é mais um dos grandes westerns do diretor e que veio em boa hora na sua carreira. Ford vinha de um desastre comercial com o belíssimo DOMÍNIO DOS BÁRBAROS, um de seus filmes mais intimistas, mas que o público não recebeu muito bem, e precisava agora desesperadamente de algum material que fosse resultar num sucesso comercial. E foi SANGUE DE HERÓIS que colocou Ford de volta ao topo.
Na trama, o tenente-coronel Owen Thursday (Henry Fonda) é um ilustre oficial da Guerra Civil que acaba tendo que assumir um posto em tempos de paz que não é lá muito da sua vontade. Para ser sincero, Thursday considera sua nomeação como o novo oficial comandante do Fort Apache, no Território do Arizona, como um insulto e deixa isso bem claro à todos ao seu redor.
O território vive em problemas com os Apaches, cujo líder, Cochise, desenterrou a machadinha de guerra e leva seus guerreiros ao longo da fronteira com o México em protesto contra a corrupção de um agente indígena local que está mais interessado em vender uísque do que cobertores e comida decente. Como Thursday está ansioso para encontrar alguma maneira de conquistar a glória e sair daquele território o mais rápido possível, a missão de trazer Cochise e seu povo de volta à reserva o atrai.
Só que Thursday acaba se demonstrando um cabeça dura arrogante e um péssimo líder. Thursday não sabe nada sobre os Apaches e não está disposto a seguir o conselho de oficiais experientes, como por exemplo o Capitão Kirby York (John Wayne), e todos seus atos anunciam uma inevitável tragédia que se aproxima.
Ford sempre gostou de misturar romance e comédia com o drama, mesmo em seus filmes mais sombrios, como RASTROS DE ÓDIO. E, muitas vezes, esses elementos funcionam surpreendentemente bem, tornando a parte trágica de sua obra ainda mais pungente. E é o que acontece em SANGUE DE HERÓIS, especialmente quando Thursday tem de lidar com sua filha, Filadélfia (Shirley Temple), que o acompanha nessa jornada. A garota se apaixona por um jovem tenente, mas o orgulhoso oficial se opõe ao casamento porque o rapaz é filho de um simples sargento.
Fonda está excelente em SANGUE DE HERÓIS, resistindo à tentação de exagerar no personagem ou de interpretá-lo como um mero idiota. Seu Owen Thursday é um homem insolente, mas também é corajoso, mesmo tomando decisões desastrosas. E Fonda dá a ele dignidade necessária para funcionar. John Wayne é o seu contraponto e mesmo não sendo protagonista entrega outro de seus belíssimos desempenhos. Assim como Thursday, o capitão York é um personagem complexo, dividido entre seu dever de obediência e lealdade ao exército, mas também à um código honra pessoal que o coloca em rota de colisão aos atos do coronel Thursday.
SANGUE DE HERÓIS conta ainda com um ótimo elenco de apoio, habitual nos filmes de Ford, como Victor McLagen, Ward Bond e Shirley Temple, que foi uma das maiores estrelas mirins do cinema nos anos 30 e é a primeira vez que a vi num papel mais adulto.
E obviamente temos Monument Valley. Nos westerns de Ford pós-NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, é impossível não falar de Monument Valley, cenário belíssimo que funciona como um personagem tão importante quanto os que os próprios atores vivem. Ainda no visual, em SANGUE DE HERÓIS o diretor de fotografia, Archie Stout, usou filme infravermelho (desenvolvido durante a guerra para uso militar) para obter efeitos surpreendentes. Era difícil para focar os atores, mas o efeito de contraste que dava entre o firmamento e as nuvens brancas explodindo no céu é de encher os olhos.
Considerando a reputação de Ford em não ensaiar sequências de ação e desdenhar a ideia de planejar os planos das filmagens com antecedência, as cenas de batalha em SANGUE DE HERÓIS são admiráveis. Na verdade, a grande sequência de ação do filme acontece no final, quando todos os erros do coronel Thursday entram em sintonia com o seu desastre anunciado. Ford nunca se preocupou em criar sequências absurdamente espetaculares de ação, mas é justamente pela simplicidade, economia dos planos e improviso como elabora esses momentos que torna tudo tão eficiente e realista. A maneira como Ford filma o trágico destino de Thursday é de uma naturalidade desesperadora.
O DVD da Classicline, que foi utilizado para conferir a obra, é bastante simples e não traz nenhum extra, mas a qualidade de imagem é impecável e dá para se deliciar com o trabalho visual de Ford. Preciso agora ver RIO GRANDE, também lançado pela distribuidora, para fechar a Trilogia da Cavalaria. Meu favorito ainda é LEGIÃO INVENCÍVEL, mas SANGUE DE HERÓIS também é mais uma maravilha desse diretor que possui incontáveis obras-primas do currículo.
Excelente artigo, Perrone.
Eu também gostei muito de como a fumaça da poeira é usada 2x como elemento narrativo (e fiquei ainda mais impressiona de após ler aqui que Ford não costumava ensaiar/planejar cenas com antecedência — o cara tinha um domínio ninja).
Obrigado
Tungstênio
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