THE LAST MOVIE foi uma bomba que explodiu na universal em 1971, o filme maldito de Dennis Hopper. Era uma daquelas obras que eu sempre morria de curiosidade, mas acabava adiando e adiando, especialmente depois do livro do Biskind, o maravilhoso “Como a Geração Sexo-drogas-e-rock’n’roll Salvou Hollywood“, cuja parte que fala do filme me deixou salivando.
As histórias que cercam a produção são simplesmente geniais e complementam a experiência de assistir de fato a obra. O filme em si é um trabalho realmente fascinante e conceitualmente forte na sua desconstrução estrutural, narrativa e formal, que reflete muita coisa do próprio cinema e, de certa forma, reverencia uma mística cinematográfica… Infelizmente, o público e crítica da época não conseguiu entrar na onda do Hopper, acabou sendo um fiasco e quase destruiu a carreira do homem como diretor. Ainda hoje não é uma tarefa muito fácil digerir THE LAST MOVIE, menos ainda escrever qualquer coisa a respeito, imagine então há quase cinco décadas… Mas vamos começar pelo começo.
Após o sucesso do clássico SEM DESTINO, Hollywood estava em polvorosa com o Hopper e Peter Fonda, estava de lua-de-mel com uma turma de diretores cheios de novas ideias e com possibilidades de encher os bolsos dos grandes estúdios de dinheiro, mas que davam total liberdade para diretores como Francis Ford Coppola, Hal Ashby, Robert Altman, Bill Friedkin e muitos outros. A chamada “Nova Hollywood”, aparentemente, era um sucesso. E Hopper, então, era um dos mais cotados pelos estúdios a estourar como o grande nome dessa geração. Executivos brigavam para contratá-lo, não importa o projeto que o sujeito tivesse em mente, porque tinham certeza que iria fazer dinheiro, tendo em vista o que havia sido seu filme de estreia.
Mas já em EASY RIDER, Hopper havia demonstrado o tipo de artista difícil de lidar que era. As histórias de bastidores deste icônico filme são tão incríveis quanto as de THE LAST MOVIE. O fato é que os rumores sobre a falta de confiabilidade de Hopper, sem contar o seu apetite excessivo por drogas e álcool, se espalharam pelos quatro cantos de Hollywood, e o sujeito, cuja carreira estava em tão alta cota, de repente viu os estúdios retirarem suas ofertas. Mas foi nessa que a Universal resolveu fazer uma jogada arriscadíssima, apostando em Hopper, mesmo sabendo que estavam se metendo numa enrascada, dando a ele carta branca e um milhão de dólares para fazer THE LAST MOVIE.
Era um projeto antigo de Hopper, mais de uma década tentando realizar. Como era muito jovem e não havia nenhuma experiência à frente de uma produção, era impossível alguém bancar o intento do sujeito, que já no papel devia ser totalmente indescritível e absurdamente maluco. No entanto, tendo EASY RIDER no currículo, cedo ou tarde iria aparecer algum trouxa para financiar seu projeto.
Para começar o desespero dos executivos, Hopper e sua equipe de filmagem se deslocaram a 14 km dos Andes peruanos, em uma pequena aldeia chamada Chinchero, onde rodaria a produção. Só isso bastava para deixar os investidores suando frio… E não apenas por causa da logística envolvida no transporte de equipe, equipamentos, atores para um local distante, mas porque o Peru era um dos principais produtores mundiais de cocaína no período, vendida bem mais barata do que nos EUA. Na primeira noite no local, uma boa parcela de membros da equipe estava cheirando, fumando e usando ácido com toda a liberdade do mundo.
Com festas épicas regadas à drogas durante as filmagens, não foi muito difícil Hopper conseguir atrair diversas figuras para chegarem no local e fazerem pequenas aparições, algumas sem diálogo algum, em THE LAST MOVIE: Kris Kristofferson, Peter Fonda, John Phillip Law, Dean Stockwell, Russ Tamblyn, e vários outros… O elenco ainda tinha o diretor Sam Fuller e o cubano Tomas Miliam.
Ao mesmo tempo que bancava festas homéricas, Hopper irritava o governo peruano e a igreja católica com seu proselitismo sobre o uso de maconha e apoio aos homossexuais. Obviamente acho que ele está certo em ambos aspectos, mas isso significava duas pedras no sapato que ele teria durante a produção de THE LAST MOVIE determinados a ter esse “hippie revolucionário” expulso de seu país. O governo peruano chegou a enviar espiões a Chinchero para assistir as filmagens com a esperança de encontrar provas para deportar Hopper. O que não ajudava muito o autor já paranoico.
Mas Hopper era, de alguma maneira, profissional, e em meio caos da produção ele conseguiu concluir as filmagens a tempo e sob o orçamento. Foi na montagem do filme, no entanto, que os problemas ficaram realmente sérios…
Assim como tinha feito com EASY RIDER, Hopper praticamente sequestrou os rolos de filme e mudou-se para Taos, no Novo México, para editar THE LAST MOVIE. Foi quando a Universal começou a se preocupar seriamente com o que eles realmente pagaram. Embora tivesse filmado dentro do prazo, a quantidade de filmagens era absurda, eram horas e horas de imagens que Hopper simplesmente não fazia ideia do que fazer. Os meses iam passando e a coisa só se agravando, com Hopper num ritmo devagar quase parando e sempre sob a influência de drogas e bebidas.
Para ter uma noção maior de como as coisas estavam rolando, recomendo o documentário THE AMERICAN DREAMER, que é sobre o Hopper – uma espécie de manifesto filosófico do sujeito sobre a vida e como artista, ator, fotógrafo – mas foi filmado justamente nesse período em que o sujeito estava editando THE LAST MOVIE…

Hopper em THE AMERICAN DREAMER editando THE LAST MOVIE: rindo pra não chorar
Dizem que em determinado momento Hopper conseguiu finalizar a edição e teve a “brilhante” ideia de mostrar o resultado para o diretor chileno Alejandro Jodorowsky, de A MONTANHA SAGRADA. A montagem, no fim das contas, era bem convencional e Jodo falou algo como “muito bem, você fez um filme como qualquer outro que vem sendo realizado por aí nos EUA“… Foi o suficiente para que Hopper voltasse para a moviola e recomeçasse a edição do zero. Aí que Hopper chutou o balde de vez e começou a fazer experimentações malucas com a estrutura do filme, com a ordem cronológica, eliminou várias sequências de diálogos e transformou seu material em uma obra de imagens… Mas para chegar a um resultado satisfatório passaram-se mais alguns meses desesperadores tanto para Hopper quanto para o estúdio.
Finalmente Hopper terminou THE LAST MOVIE. Chegou o momento de mostrar o filme aos executivos e a única coisa que posso dizer que a Universal ficou horrorizada. Hopper havia feito um filme “arthouse europeu” de um milhão de dólares para uma empresa que principalmente fazia entretenimento de massa. Os caras do estúdio simplesmente não sabiam como lançar o filme… No Festival de Veneza THE LAST MOVIE até ganhou algum prêmio, mas no circuito comercial, os executivos estavam certos em se preocupar com o dinheiro. O filme fracassou de todas as formas possíveis e acabou com a carreira de Hopper como diretor por quase uma década.
Pra mim, no entanto, THE LAST MOVIE é uma dessas experiências arrebatadoras, uma obra-prima experimental e vangauardista que só poderia ter saído neste contexto insano que foi o final dos anos 60, início dos 70, na chamada “Nova Hollywood”.
O que podemos chamar de trama em THE LAST MOVIE gira em torno de Kansas (encarnado pelo próprio Hopper), um coordenador de dublês responsável pelos cavalos durante as filmagens de um western, cujo diretor é interpretado pelo Samuel Fuller, numa pequena vila peruana.
Depois de um trágico acidente no set onde um ator é morto numa queda, Kansas decide sair do filme mas continuar no Peru, onde arranja uma mulher e uma pequena casinha para morar. Kansas pensa que ele encontrou o paraíso, mas logo é chamado para ajudar num evento bizarro que está rolando no pequeno vilarejo: influenciados pela produção americana, os nativos peruanos resolvem “filmar” seu próprio filme, mas com “câmeras” feitas de palha e encenando de maneira real a violência, já que não entendem o conceito do falso no cinema.
THE LAST MOVIE toca nessa lógica da ficção x realidade, numa reverência a uma mística cinematográfica ao mesmo tempo que apresenta uma obra que desafia a compreensão tradicional, numa configuração tão particular de desconstrução narrativa e formal. Portanto, é difícil analisar THE LAST MOVIE de maneira convencional, pensar nos seus componentes, o trabalho de direção, a performance dos atores, a edição, a fotografia, porque tudo parece matéria bruta que sugere uma dinâmica tão própria, tão singular, que pode até resultar em algo aleatório em demasia ou num exagero alegórico, mas que de alguma maneira Hopper conferiu uma força admirável e independente através das suas imagens, nessa bagunça absoluta que é THE LAST MOVIE – uma bagunça maravilhosamente linda…
Recomendo uma conferida a quem interessar por filmes malditos e que fogem do convencional. Mesmo que você ache THE LAST MOVIE um lixo, acho difícil ficar indiferente às imagens que Hopper nos convida a olhar. Ou nem que seja pelo contexto do período e do caos da produção.
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Filmaço!! Obrigado por me apresentar essa preciosidade!
Bom dia amigo. Que doravante seus textos sejam tão extensos e interessantes quanto esse. Não menos, ok? Muito obrigado e um forte abraço. PS: eu também li o livro e recomendo fervorosamente para os cinéfilos. Aliás, bem que poderiam publicar mais livros de cinema no Brasil, principalmente os que o saudoso Sir Roger George Moore ( meu Bond favorito – por razões sentimentais, ok?) escreveu sobre os filmes de Bond.