Em meados dos anos 40, ainda durante a Segunda Guerra, o diretor John Hunston estava em Los Angeles finalizando algum de seus documentários filmados em campo de batalha. Huston, ao lado de John Ford, Frank Capra, William Willer e outros, contribuiu com o exército americano registrando imagens da guerra. Enfim, o fato é que neste período em que estava em LA, Huston passava os dias entre o trabalho e um bocado de festas. Segundo as palavras do próprio diretor, “Tendo acabado de voltar ao trabalho com heróis de verdade, não estava com vontade de aguentar a subespécie cinematográfica. Foi com essa disposição e ânimo que encontrei Errol Flynn parado no saguão durante uma recepção na casa de David O. Selznick“.
Flynn estava já com um copo de uísque na mão, como lhe era habitual. Devia ter enchido a cara… E Huston conta que o sujeito andava a procura de confusão. Não demorou muito, Flynn chamou a mulher que Huston estava paquerando na época de alguma coisa não muito agradável, Huston retrucou sem muita gentileza e ambos acabaram procurando um local mais isolado, ao fundo dos jardins, para chegarem às “vias de fato”.
Essa história é uma das melhores entre as tantas que Huston conta em sua biografia e que vale a leitura de cada palavra, cada linha, cada descrição… Mas, para resumir, a luta entre Errol Flynn e John Huston realmente aconteceu neste dia, ambos eram pugilistas e trocaram socos violentos por quase uma hora, sem golpes sujos e tudo dentro das normas do Marquês de Queensberry, ou seja, as regras oficiais do boxe. Detalhe que foi visto com grande decência para ambos oponentes.

Errol Flynn vive um boxeador em GENTLEMAN JIM, de Raoul Walsh

Nos anos 70, o diretor John Huston mostra a Stacy Keach como se faz em CIDADE DAS ILUSÕES
A coisa foi tão respeitosa entre os dois que, na manhã seguinte, Flynn ligou para Huston para saber como o diretor estava passando (só para constar, o ator foi parar no hospital com algumas costelas quebradas). Todo esse respeito fez com que Huston tivesse sempre Flynn em alta estima. No fim dos anos 50, o diretor foi escalado para dirigir um filme na África em que um dos atores contratados era Errol Flynn. “Ele apareceu logo depois da nossa chegada e nós dois nos apertamos as mãos. Era o nosso primeiro encontro desde aquela noite sanguinolenta séculos atrás“. O filme: RAÍZES DO CÉU.
Quando fez RAÍZES DO CÉU, Errol Flynn estava muito longe de ter aquela imagem que o imortalizou nos filmes de aventura dos anos 30, vivendo heróis como Robin Hood e Capitão Blood. E não apenas por estar mais velho, mas pela seu notório problema com o alcoolismo. Em 1958, Flynn abandonou uma peça de teatro antes da estreia por alegar que era um veículo pobre e banal, mas também porque a essa altura ele era incapaz de memorizar suas falas e sua atuação era deplorável. Ganhou uma chance de Zanuck quando lhe ofereceu uma participação em RAÍZES DO CÉU justamente para fazer o papel de um bêbado…
Já era a terceira vez em seguida que Flynn interpretava um bêbado, desta vez encarnando o Major Forsythe, um desertor britânico que se junta a um grupo de aventureiros – alguns deles bem oportunistas – para seguir o idealista Morel (Trevor Howard) nos seus esforços de preservar os elefantes africanos e impedir que sua caça aconteça.
Tanto o homem do dinheiro, Zanuck, quanto o diretor John Huston ficaram interessados no romance do francês Romain Gary e decidiram tocar o projeto juntos. No entanto, a expedição da equipe de filmagens em território africano resultou numa saga desastrosa com elenco e equipe tentando mais sobreviver à experiência do que no resultado do filme. Temperaturas altíssimas e doenças tropicais tomaram uma boa parcela de tempo da produção… O ator Eddie Albert, por exemplo, teve um colapso e delirou por vários dias. E Flynn se fortificou, obviamente, com suas doses de vodka e outros drinks, administrando sua aventura diante de qualquer contratempo que lhe pudesse ocorrer. Tanto que, em sua autobiografia, Flynn comenta que foi o filme que mais gostou de fazer acima de qualquer outro…
Originalmente, RAÍZES DO CÉU teria William Holden como protagonista, no papel de Morel, com Flynn fazendo um coadjuvante de luxo. No entanto, devido a alguns problemas contratuais entre o ator e a Paramount, Holden foi substituído por Trevor Howard, que não tinha tanta popularidade, o que acabou dando mais destaque ao personagem de Flynn, que aproveitou o momento e entregou um desempenho notável, talvez um dos mais fortes da sua carreira. E estamos falando do cara que fez GENTLEMAN JIM e encarnou o General Custer em THEY DIED WITH THEIR BOOTS ON, ambos do mestre Raoul Walsh.
Seu Forsythe é um típico bêbado alegre, mas que esconde amarguras de um passado sombrio e vê em Morel e seus ideais uma oportunidade de se redimir de alguma forma. A princípio, seu personagem seria um soldado americano que trocou de lado na Guerra da Coreia. Mas seu papel acabou sendo mudado para um oficial britânico que traiu seus companheiros durante a Segunda Guerra quando foram capturados pelos nazistas. “Todos morreram porque não quiseram falar, e eu continuo vivo“, diz o sujeito entre uma golada e outra numa garrafa de uísque.
O filme dá ao personagem uma morte heróica, a última morte que Flynn encenou nas telas. A sua própria morte viria um ano mais tarde, não tão heróica assim… De parada cardíaca, aos 50 anos, em decorrência ao abuso de bebidas.
Tirando os contratempos que prejudicam a obra e as falhas mais visíveis, RAÍZES DO CÉU ainda é uma boa aventura de bela mensagem ecológica, com excelente fotografia e bom uso das locações naturais, que preenchem a tela com a vastidão da savana africana. O elenco também é outro bom motivo pra não tirar os olhos da tela: Além de todos já citados, há participações de Hebert Lom, Juliette Gréco e o grande Orson Welles.
É interessante o compromisso de Huston com o tema e o tom de desilusão que confere ao filme um espírito que eu acho difícil de resistir. Mas é mais curioso ainda que o diretor tenha se interessado em fazer algo com o tema, uma vez que o próprio Huston tenha sido um grande caçador. Talvez o filme funcione como uma forma de reconhecer a crueldade e a falta de senso do “esporte” que ele abraçou e traz a questão da preservação ao público numa época que ninguém pensava nisso.
PS: Acho que RAÍZES DO CÉU até cai bem numa dobradinha de CORAÇÃO DE CAÇADOR, com Clint Eastwood fazendo o papel do diretor realizando um filme na savana africana e obcecado por caçar elefantes, baseado justamente nos relatos de John Huston e suas desventuras na África.