ESPECIAL DON SIEGEL #23: O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The Beguiled, 1971)

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por MARCELO NARDI

Em 1971, independentemente do que viria no futuro, Clint Eastwood já tinha o seu nome assegurado como um ícone do cinema. O “Estranho Sem Nome” dos filmes de Sergio Leone já havia garantido o seu status para a eternidade. Nos faroestes, os personagens os quais ele se acostumou a interpretar, já haviam enfrentado sádicos bandidos, queimaduras no sol do deserto e surras monumentais, mas nunca antes um personagem do homem havia sofrido tanto quanto nas mãos das mulheres do filme mais perverso e estranho que Don Siegel dirigiu. Terceira parceria entre ator e diretor, THE BEGUILED baseado em uma adaptação literária do gênero sulista/rural americano, foi também, segundo Siegel, a sua própria realização preferida. E isso quer dizer muito, aliás, uma das curiosidades é que durante as filmagens Eastwood conduziu um documentário sobre os bastidores do filme intitulado “The storyteller”. Isto demonstra que na época o ator e iniciante diretor já era um devoto de Don Siegel, provando o seu respeito com essa produção documentária que abordava a visão criativa do artista. Em 1992 Clint Eastwood viria a dedicar sua obra-prima máxima OS IMPERDOÁVEIS para o próprio Siegel. Até poderíamos apontar alguns paralelos entre os dois filmes, como por exemplo a mola propulsora das tramas girarem ao redor de articulados e hierárquicos grupos de mulheres com lideranças bem definidas.

Nos meses finais da guerra civil americana, Clint é John, um soldado Yankee que nos é apresentado logo de cara ferido, sozinho, perdido em território inimigo e semi-inconsciente no meio de uma floresta no sul dos Estados Unidos. Ele tem a sorte (ou azar, difícil decidir) de ser encontrado por uma jovem garota que saltitando, colhe cogumelos na floresta como se no primeiro momento tivesse saído diretamente de algum filme completamente diferente.  Na primeira das muitas controversas cenas do filme, John lasca um beijo na menina apenas para confundir uma caravana de soldados locais que rapidamente passam por eles. “Livre do perigo”, aos trancos e barrancos o soldado a beira da morte é conduzido por ela até o portão de ferro de uma escola para mulheres, com ares de convento, onde ela mora junto a uma dezena de moças e uma diretora. A tradicional escola é um casarão colonial isolado no meio da floresta com um grande terreno cercado por enormes portões de ferro.

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Dividida entre acolher o inimigo ferido ou entregá-lo as autoridades militares conterrâneas, a diretora Mrs Martha (Geraldine Page) opta por “ajuda-lo” momentaneamente, o escondendo em um quarto improvisado e tratando todos os seus machucados. A presença de um homem entre elas, depois de muito tempo isoladas de companhia masculina, impacta de forma considerável a rotina das mulheres da casa. Entre elas está Edwina (Elizabeth Hartman) uma professora virgem de 22 anos que fica encarregada da chave do quarto de John. Relutante e tímida no inicio ela logo acaba apaixonada pelo camarada. Mesmo sem o peculiar charuto no canto da boca, aqui Clint encontra-se tão canastrão e persuasivo quanto nos faroestes da trilogia dos dólares e logo no início ele percebe na paixonite da professora uma alternativa para sair livre do lugar caso o perigo bater na porta, afinal a qualquer momento poderia adentrar um soldado local e o leva-lo preso ou até mesmo abatido dali.

Mas no seu primeiro momento desperto e bem alimentado, já com consideráveis mordomias e mesmo com boas possibilidades de sair facilmente portão afora, John não parece com muita pressa e aproveita as tardes livres trovando as garotas, a diretora e até mesmo a cozinheira da escola (sim até mesmo a cozinheira!). Entre as garotas maiores de idade também está a nem um pouco tímida e estonteantemente loira e linda Carol (Jo Ann Harris) que fazendo justiça ao soldado, foi a primeira a se oferecer aos braços do camarada. Curiosamente a atriz e Eastwood iniciaram um caso de amor que durou até alguns anos após a produção.

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Com o passar dos dias essas regalias femininas ao redor de John vão se acumulando em sentimentos de medo, atração, desejo, ciúmes, mágoa e até mesmo ódio e o filme lentamente e depois explosivamente vai ganhando formas mais perversas que colocam John em extremos maus lençóis.  O resultado é uma espécie de conto de fadas as avessas em crescente tensão (imaginem o que aconteceria se o lobo mau fosse mantido em cativeiro pela chapeuzinho vermelho e pela sua vovozinha ou algo parecido).

Don Siegel conduz muito bem essa atmosfera toda e coloca o espectador masculino a roer unhas e se contorcer na cadeira, com um desenrolar realmente muito pesado e em certas partes nauseante para o nosso ponto de vista. Esse é o filme de terror psicológico do grande diretor que escolhe a dedo um herói do cinema de gênero e o atira no meio de um furacão feminino de emoções suprimidas. Siegel deveria saber por isso que o filme não funcionaria com outro ator, que não tivesse um apelo popular tão grande.

No ápice de sua carreira Don Siegel não abriu mão da sua objetividade característica para conduzir um dos seus filmes mais embriagantes, ele mantém a direção concisa e com pés no chão seguindo uma narração linear e se utilizando apenas de breves flashbacks, um sonho e preciosos zoons nos rostos dos personagens para enfatizar a situação claustrofóbica vivida por John. Outro dos ingredientes brilhantes do filme é a canção de soldado entoada provavelmente por uma das meninas da escola, que abre e fecha os créditos contando como paisagem de fundo a parte externa do casarão, cheio do verde das árvores que é eficientemente capturado pela deslumbrante fotografia do filme. Nas sequências ao ar livre alguns enquadramentos remetem a um faroeste e o espectador que cair de paraquedas na sessão deve facilmente imaginar que a qualquer momento Clint Eastwood pode e vai se envolver em algum tiroteio ou algo parecido.

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Meses depois ainda em 1971, Don Siegel estaria lançando nos cinemas DIRTY HARRY e retomaria o seu curso no gênero policial e de ação com filmes empolgantes e populares, mas essa sua incursão nos bastidores da guerra civil (afinal o que diabos transcorre em uma escola para mulheres durante a guerra enquanto a bala come solta e os homens se matam do lado de fora?) ainda permanece como um dos seus filmes mais singulares e marcantes, além de representar uma rica contribuição do diretor a escola de cinema da Nova Hollywood, período no qual estúdios como a Universal, responsável por tornar possível THE BEGUILED estariam propensos e mais dispostos a lançar filmes controversos, autorais e livres de grandes censuras. Isto no papel, porque na prática o diretor e o seu ator principal tiveram que brigar bastante com os executivos da Universal para conseguir manter o final que eles idealizaram.

5 pensamentos sobre “ESPECIAL DON SIEGEL #23: O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The Beguiled, 1971)

  1. Eu adorei o seu artigo sobre o Clint Eastwood! Eu sempre amei o seu trabalho. Outro filme de Eastwood que eu gostei é 15h17 Trem para Paris. É interessante ver um filme que está baseado em fatos reais, acho que são as melhores historias, porque não necessita da ficção para fazer uma boa produção. Gostei muito da história desde que e vi o trailer e soube que era um dos Clint Eastwood filmes. Eu recomendo. Vale muito à pena, é um dos melhores do seu gênero. Além, tem pontos extras por ser uma historia criativa. É algo muito diferente ao que estávamos acostumados a ver.

  2. esse filme já não passa ha muito tempo na TV Aberta e talvez não passe mais por causa do politicamente correto.. pois ali .. cheira á pedofilia ( para mim ,não pois e drama pesado ,onde um homem é cercado por mulheres ( pre-adolescentes ) que esse apaixonam por ele ).. ate a veia tem uma quedinha por o nosso anti -heroi e quem disse que mulheres não importando idade, não matam por amor, atire á primeira pedra ! , amor as vezes é algo doentio que cega ao ponto de fazer loucuras poe ele . Otimo filme lançado em DVD que eu não tenho pela NBO Editora sem a dublagem antiga somo original em ingles com legendas .. assisti esse filme tanto dublado quanto legendado aí foi no extinto Cineclube da Rede Globo exibido aos domingos depois do Domingo Maior no começo da decada de 90.bons tempos que não voltam mais …

    • Anselmo, para constar que a atriz Jo Ann Harris tinha mais de 21 anos na época da produção e a sua personagem é a única das garotas que se relaciona vias de fato com o Eastwood. Por isso discordo, que este seja um motivo para não passar mais na Tv.

      Com relação a segunda parte do comentário, sobre “o amor as vezes ser algo doentio”, você têm toda razão. Acho que o filme consegue trabalhar muito bem esta atmosfera do galanteador em perigo. Abraço.

  3. Meu comentário do Filmow, quando vi uns anos atrás:

    “Muitas simbologias interessantes:

    a galinha que colocou ovos (Clint chegando, representando o desabrochar daquelas mulheres); o corvo preso (grades) e, posteriormente, morto (ainda preso), uma analogia clara à situação do Clint; e a concha com cabeça de cobra, na cena do envenenamento.”

    Genial esse filme!

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