Por mais que coloquem o diretor Don Siegel como um dos grandes mestres do cinema policial, western e de ação norte-americano, o que de fato não deixa de ser, frequentemente é VAMPIROS DE ALMAS, um sci-fi aterrorizante de relativo baixo orçamento, o trabalho mais lembrado e celebrado de sua carreira e que o próprio diretor considerava um de seus prediletos. Mas realmente é uma obra bastante curiosa em diversos aspectos e acabou se tornando um dos filmes mais importantes e definitivos sobre invasão alienígena em pleno auge da ficção científica nos anos 50.
O fato de VAMPIROS DE ALMAS possuir um estilo de direção minimalista, realista, num gênero fantasioso combinado a uma alegoria sobre o fator dominante crescente da desumanização, da falta de sentimento, do conformismo e da uniformidade de pensamento das sociedades, seria suficiente para justificar sua reputação. Só que o filme ganhou uma proporção ainda mais relevante ao trabalhar o tema de invasores do espaço de uma maneira que dialogaria fortemente com o contexto político do momento, a paranoia da Guerra Fria e do temor da ideologia comunista invadindo o “perfeito” modo de vida americano, a “caça às bruxas” promovida pelo então senador Joseph McCarthy, que realizava uma intensa patrulha anticomunista, período que ficou conhecido como Macartismo (ou, no original McCarthyism).
Na trama de VAMPIROS DE ALMAS, temos o protagonista, Dr. Miles (Kevin McCarthy, que havia trabalhado com Siegel em seu filme anterior, AN ANNAPOLYS STORY), que é um dos primeiros a perceber que uma aparente neurose coletiva era, na verdade, uma invasão alienígena de proporções impensáveis. Aos poucos, de forma cadenciada, o filme vai trabalhando essa invasão, representada por enormes vagens leguminosas que se alojam próximo a seres humanos adormecidos e lhes duplicam o físico e a mente, mantendo as mais íntimas características e sua essência, mas não as emoções.
Concluído o processo de duplicação, o humano matriz é destruído de alguma forma, restando só a cópia. Mesmo aqueles que passam a desconfiar do seu vizinho, ou amigo ou até mesmo um parente, acaba não tendo muito o que fazer, porque uma hora ou outra terão de dormir e serão duplicados. Uma situação simples, mas aterradora. Se esses invasores são seres desprovidos de emoção, não possuem individualidade, acabam refletindo, portanto, exatamente o que era o estereótipo do comunista (comedores de criancinhas, como berram alguns). Assim como as garantias que esses seres dão de que a vida será mais agradável ao aceitar esse estado mental coletivo, pode também ter ecos no que se pensava sobre a ideologia do comunismo.
Por outro lado, alguns responsáveis pela existência do filme afirmam que nunca tiveram a intenção de criar esse comentário sobre a “ameaça comunista”. Jack Finney, autor do livro que inspirou VAMPIROS DE ALMAS, disse que a sua intenção foi escrever uma história pura de terror e ficção científica sem outra pretensão que não o divertimento. No livro Dança Macabra, de Stephen King, Finney comenta: “Tenho lido explicações do ‘significado’ dessa história que me divertem pelo fato de que não há significados; foi simplesmente uma história feita para entreter, e com nenhum significado além desse. A primeira versão em filme do livro foi feita com grande fidelidade, exceto pelo final medíocre; e sempre me divertia com as argumentações das pessoas envolvidas com o filme de que eles tinham alguma espécie de mensagem em mente. Se era assim é muito mais do que eu jamais fiz, e, dada a proximidade com que eles seguiram minha historia, é difícil ver como essa mensagem surgiu. E quando a mensagem foi definida, sempre me pareceu um pouco pobre de espírito“.
Siegel, quando perguntado sobre a referência política específica ao Macartismo, disse, na sua entrevista com Peter Bogdanovich, que acreditava que o cinema servia principalmente ao propósito de entreter (e é curioso ele dizer isso, porque seu cinema sempre foi bastante reflexivo), mas que era inevitável naquele momento que tal assunto não viesse à tona, por mais que não tentasse enfatizá-lo.
De fato, assistir a VAMPIROS DE ALMAS com a simples intenção de entreter-se durante pouco menos de 90 minutos também não deixa de ser um bom negócio. É eficiente como suspense e algumas sequências são realmente tensas e memoráveis. Mas quanto mais se pensa o filme e aprofunda-se em algumas questões é que a coisa fica ainda mais interessante. É possível até notar um tom totalmente contrário em relação a alegoria anti-comunista.
É possível fazer uma leitura do filme como uma crítica à histeria anti-comunista, o que sugere que a ideia de que comunistas estão secretamente tentando se infiltrar e influenciar nos vários aspectos do cotidiano americano (como era imaginado pelos impertinentes anti-comunistas, como o senador McCarthy) é tão ridícula quanto é provável que seres alienígenas venham do espaço plantar vagens que crescem réplicas perfeitas de seres humanos específicos a quem vão substituir. É como acontece hoje no Brasil, onde há gente esperando acontecer o grande golpe comunista do PT. Vão esperar sentados (detalhe, não sou petista, nem defendo partido algum, mas dizer que o Brasil corre o risco de sofrer um golpe comunista é algo tão fantasioso quanto o roteiro de ficção científica dos ano 50).
Já o astro do filme, o ator Kevin McCarthy (cujo sobrenome compartilhado com o tal senador confere uma ironia adicional) chegou a declarar em entrevista que sentia que os seres invasores surgidos das vagens refletiam os capitalistas sem coração que trabalham na Madison Avenue, publicitários que fazem de tudo para vender qualquer coisa. Na verdade, se o comunismo era percebido pelos norte-americanos da década de 50 como uma ameaça à sua individualidade, o próprio capitalismo também era frequentemente visto da mesma maneira.
Um sistema capitalista altamente complexo necessita, para o seu funcionamento, um nível de padronização, especialmente de mão de obra. Chaplin já havia abordado o assunto na década de 30, em TEMPOS MODERNOS. Nos anos 50, no crescimento pós-Segunda Guerra, a coisa já tinha tomado uma proporção gigantesca, é a era de ouro da homogeneização das técnicas de produção de massa orientada para a máxima eficiência nos mais variados setores comerciais. Ou alguém vai me dizer que um funcionário do McDonald’s não passava por uma autêntica lavagem cerebral?
Essa dialética anti-capitalismo x anti-comunismo dá margem para muita discussão que ultrapassa os limites do filme. De todo modo, há uma questão que converge em ambos pontos de vista, que é a alienação coletiva, a desumanização e o conformismo, independente de que lado você esteja. É o grande medo do Dr. Miles, um sujeito individualista auto-suficiente que vê o mundo pelos seus próprios padrões e não pretende aceitar um pensamento imposto, um modo de vida onde todos são iguais e não possuem sentimentos. Há um certo diálogo em que um dos personagens desabafa que prefere sentir dor e tristeza do que não sentir absolutamente nada. O que acaba sendo bem mais relevante como reflexão humana do que acusar um lado em posicionamentos políticos.
VAMPIROS DE ALMAS é relativamente fiel a adaptação de um romance de Jack Finney, publicado pela primeira vez como um conto na revista Collier, em 1954, com o título Sleep No More, que aliás, é muito melhor que o título dado na versão expandida posteriormente sob a forma de romance, na qual é mais conhecida: The Body Snatchers. Grande parte do enredo e personagens criados por Finney estão intactos na adaptação, assim como o local onde a história transcorre, a pequena cidade do interior, Santa Mira.
A principal alteração é o final. Se os realizadores usassem os escritos de Finney, mostrariam um Dr. Miles numa batalha heroica contra os invasores fazendo com que os alienígenas desistissem de colonizar a terra, o que seria complicado de filmar por causa do orçamento. O que temos, no entanto, mantém um bocado o tom otimista original, com o protagonista conseguindo avisar as autoridades da ameaça. Mas não deixa de ser ambíguo, já que o filme nunca mostra se a mobilização contra a invasão teve sucesso ou não. Essa versão não me incomoda em nada, apesar de muita gente reclamar. A verdade é que ela foi imposta pelo estúdio como resposta ao final imaginado por Siegel, um desfecho pessimista em que um histérico Dr. Miles no meio do trânsito grita aos motoristas: “você será o próximo!” e terminava o filme apontando o dedo para a câmera, para o próprio público, “você será o próximo!“, o que seria simplesmente genial.
As filmagens de VAMPIROS DE ALMAS duraram algo em torno de três a quatro semanas, com um orçamento de US$ 400 mil dólares, o que já não era muito em comparação ao que estava sendo feito no gênero no período, como um FORBIDDEN PLANET, por exemplo. Mas o filme gasta muito pouco com cenário elaborados, efeitos especiais e outras técnicas visuais extravagantes. Siegel nunca deixa o tom do filme subir a um nível de espetáculo épico. Ao contrário, prefere trabalhar com um suspense intimista e atmosférico, com situações que beiram o palpável, o que a maioria dos exemplares sci-fis do período nem sonhavam em ter. O fato é que com esse tipo de suspense, Siegel consegue ser bastante preciso ao tocar nos receios básicos que a sociedade americana possuía na década de 50.
É uma pena que Siegel não tenha retornado à ficção científica. Grande parte da sua habilidade única em trabalhar a ação e o suspense que poderão ser notadas posteriormente em filmes como THE KILLERS, MADIGAN e CHARLEY VARRICK começam a dar sinais em VAMPIROS DE ALMAS. Embora seja o seu décimo primeiro longa, soa mais como um trabalho seminal que estabelecia um estilo próprio que o diretor vinha construindo ao longo da carreira. Aqui chegaria no seu ápice. A sequência que se passa na caverna, no clímax do filme, é a prova disso. De uma sensibilidade absurda, uma bela noção de como criar um clima de horror e tensão e que culmina na famosa sequência de McCarthy na rodovia no meio dos carros (não para o grande desfecho que Siegel queria, mas não deixa de ser espetacular).
De tão eficiente, universal e atemporal, a clássica história de VAMPIROS DE ALMAS ganhou mais três versões cinematográficas ao longo das décadas. Podem não acreditar, mas até hoje não vi a de 1978, OS INVASORES DE CORPOS, dirigido por Philip Kaufman e estrelado por Donald Sutherland, Leonard Nimoy e Jeff Goldblum; A versão de 1993, que por algum motivo se chama OS INVASORES DE CORPOS – A INVASÃO CONTINUA, de Abel Ferrara, não chega a ser melhor que a do Siegel, mas é um interessante exercício de horror deste grande diretor. Em 2007 tivemos INVASORES, a última versão até o momento e que nunca me despertou interesse algum.
Imagem bônus:
Dizer que o Brasil não corre o risco de sofrer um golpe comunista ja começa da premissa errada de que este golpe ainda não foi dado, ja esta sendo dado muito antes mesmo do PT chegar ao poder! muitos que dizem isso – não sei se é o caso do autor do texto – ainda creem que o comunismo é o controle estatal da economia, este conceito marxista ja esta em desuso pelos cérebros comunistas muito antes mesmo da criação do U.R.S.S. ( mesmo que ilegal la haviam em media 50% da propriedade privada não mão de alguns amigos do governo, semelhante ao Brasil nos dias de hoje onde grandes magnatas quase todos comem nas mãos do PT) Comunismo não é controle estatal da economia, mas sim o controle estatal de todo o resto: cultura, imprensa opinião publica, expressão, liberdades etc… e isso ja esta dado a passos largos no país a muito tempo. Ainda não vi o filme de Don Siegel, não duvido de que ele seja uma alegoria a esta “Histeria anti-comunista” como o autor do texto disse, afinal Hollywood é quase um playground da esquerda americana, mas se isso tem algum valor social-politico real não passa do valor de mentiras da histeria que a esquerda historicamente promove tão bem. Nos EUA com políticos como Hillary Clinton e Barack Hussein Obama todos alunos de Saul Alinsky grande estrategista politico comunista não é histeria nenhuma se precaver de ameaças a democracia como fazia o tão demonizado Joseph McCarthy. Ainda sobre a referencia de que comunistas comem criancinhas, vale lembrar que tanto na antiga U.R.S.S. como na atual Coreia do Norte a relatos de canibalismo por pessoas desesperadas com a fome que seus ditadores as impõe, alguns trocam suas crianças com os vizinhos para que possam devorá-los ja que não tem coragem de comer os próprios filhos, realmente comunistas comem criancinhas? não, quem come é o povo que vive sob um regime tão tirânico e cruel…
“(…)controle estatal de todo o resto: cultura, imprensa opinião publica, expressão, liberdades etc… e isso ja esta dado a passos largos no país a muito tempo.”
Desculpa lá, mas não.
não? onde que se vê algum veiculo de comunicação apresentar um único argumento contra o casamento gay? que órgão de imprensa hoje fala abertamente sobre a Smartmatic ou do Foro de SP? que mídia hoje no Brasil ousa falar contra Obama ou Hillary Clinton? em compensação demonizam os republicanos/cristãos/conservadores até não restar um único tom de humanidade neles aos olhos do publico. Essa é a grande questão, o controle quanto mais invisível, mais forte! A musica brasileira em declínio assombroso com funks, sambas de sertanejo rasteiros tidos como “obras de arte” enfim… a coisa é tão tendenciosa que até mesmo um texto como o seu pode ser entendido como “isento” e não me leve a mal, não estou dizendo que você não é, mas até para demonstrar que você não é petista você tem que escrever um texto que anistia o partido de suas intenções maquiavelices.
O que percebo é mais uma mídia de má qualidade feita no Brasil (tanto de direita quanto de esquerda) do que algo tendencioso, o que obviamente há, mas para ambos os lados e isso é muito claro pra mim. Simplesmente não consigo olhar as coisas de um único prisma, prefiro a neutralidade (ou ver o lado bom e o ruim de ambos os lados), prefiro o foda-se tanto ao Lula quanto ao Olavo de Carvalho. Por mais que o PT esteja fazendo merda no país, ainda acho roteiro de ficção cientifica que tenhamos um “sistema comunista” implantado aqui. Uma revista como a Veja não existiria num país com esse controle que você fala.
Sobre o declínio da música brasileira, não vem de agora, desde os anos 90 temos que aturar o crescimento de Axés estilo “boquinha da garrafa” que dominava tanto quanto qualquer funk e sertanejo de hoje. Seria um equívoco apontar um único partido responsável pelo empobrecimento cultural no Brasil, sendo que é um mal generalizado de diversos setores imagináveis e de longa data.
Enfim, é boa a discussão e por mais que eu tenha incitado, fiz uma promessa a mim mesmo que não discutiria política na internet, portanto, já estou meio que quebrando a promessa e, peço desculpas, não vou levar muito adiante essa conversa. Entendo essa sua visão, bastante definida e que vai numa direção um bocado oposta à minha (neutra, niilista e anarquista). Por aqui não vou conseguir manter esse tipo e discussão.
respeitarei sua decisão e não vou continuar com a discussão. mas não posso deixar de agradecer pois foi uma conversa bem madura, coisa rara de se ver hoje em dia.
Beleza pura.
Valeu!
Textão lindo, Ronnie. Dá vontade de rever o filme.
Acho engraçado como a versão mais fraca que fizeram (a última com a Nicole Kidman) talvez tenha um dos finais mais críticos em relação ao comportamento normal humano com o comportamento dos invasores. Quando o planeta estar dominado por eles, cessam todas as guerras e conflitos ao redor do mundo. E quando os humanos voltam ao normal, toda a bagunça volta a ser como antes.
Valeu! 🙂
Eita, talvez valha a pena dar uma conferida nessa versão então?